1. Texto José Teixeira* (ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/7), alusivo à chegada da sua Companhia a Lisboa, faz hoje 40 anos**.
DIA 8 DE ABRIL DE 1970 – O REGRESSO À MÃE PÁTRIA
Uf. Cheguei !
Não. Ainda não cheguei.
Estou estacionado no Tejo, mais propriamente no Mar da Palha. Ali, mesmo ao lado de Lisboa.
É noite. Ao longe a marginal iluminada convida-nos a entrar, abrindo-nos as portas de regresso. Os automóveis da noite relembram-nos outras noites, em Lisboa, no Porto, na terra de cada um desde o Minho ao Algarve. Já lá vão dois anos.
Para lá se dirigem milhares de olhos. Os comentários “apimentados” sucedem-se. Há quem aposte que já vê a família lá ao longe no cais que se imagina para além da curva do rio.
Niassa > Navio misto (carga e passageiros) da Companhia Nacional de Navegação. Fonte: Navios Mercantes Portugueses Página de Carlos Russo Belo com a devida vénia.
Podíamos ter desembarcado hoje. O destino que alguém ainda controla marcou a hora do desembarque. O NIASSA ao avistar a costa reduziu a velocidade. Entrou na Barra ao pôr-do-sol e estacionou, para raiva dos milhares de homens que queriam fugir daquele mundo e esquecer para sempre aqueles dois anos na Guiné.
Como estavam enganados! Comprova-se hoje, nos encontros de convívio das Companhias e dos Batalhões, das tabancas e tabanquinhas que vão surgindo aqui e além. Nos grupos organizados que todos os anos, agora de forma voluntária, se deslocam à Guiné, levando amizade e fraternidade. Levando os bolsos cheios (leia-se contentores) de coisas úteis para aquela pobre gente que sonhava com a liberdade, como sinal de mudança de vida para melhor e encontraram um inferno ainda maior.
Ali ficamos mais uma noite, às ordens de sua senhoria os “senhores do exército” que naqueles dois anos foram os gestores do nosso destino. Seria a última.
Toda a gente debruçada na amurada do barco. Cotevelada daqui. Empurrão dacolá. Um palavrão pelo meio, porque me estás a calcar oh cabrão!
Cantou-se, dançou-se… sobretudo sonhou-se, bem acordados que estávamos, naquela noite, talvez a mais longa, depois das que tínhamos passado debaixo de fogo. Noite que nunca mais passava. Noite em que aprisionados no meio do Tejo vislumbrávamos com esperança (quase certa) a liberdade.
A manhã chegou. Os motores do Niassa dão sinal de vida. É o princípio do fim.
Ao longe, o cais espera-nos.
Não. Não são fantasmas!
São milhares de pessoas expectantes. Muitas delas montaram tenda, sem tendas, naquele lugar, naquela noite, para nos verem chegar.
São os nossos queridos familiares e amigos.
Outros, chegaram com a manhã, cedinho, na esperança de assistirem ao desembarque.
Chegada ao cais. As pernas tremem de alegria, as lágrimas teimosamente deslizam pela face abaixo. Os olhos ávidos de esperança vasculham o cais à procura de um sinal. O sinal combinado para o feliz encontro que teima em não chegar.
Por fim, lá ao longe, uma silhueta, um aceno, um grito de felicidade. Está ali! Está ali!
Aonde? Não o vejo!
Ali ao fundo…
Porto de Lisboa > NTT Niassa > Estação Marítima de Alcântara > 09/Abr/70 > Momento da tentativa de acostagem na Gare, com a emoção para visualização dos seus.
Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > 09/Abril/1970 > Multidão aguardando a chegada de Militares, apresentando dísticos.
Fotos e legendas: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados
Seguem-se os abraços sem fim. O beijo afectuoso de uma mãe que sempre acreditou. A sua promessa de ir a Fátima a pé, agradecer à Virgem Maria, valeu. A Senhora protegeu o seu filho.
Agora vamos cumpri-la e ele vai comigo. Ai vai, vai!
A esposa que soube esperar e lhe trás o filho que ele ainda não conhecia. A namorada que teve a coragem de resistir por amor.
Ali estão todos. Ah felicidade de um raio! Finalmente chegou o dia do regresso.
Não sei porquê, mas nestas alturas as lágrimas são teimosas e continuam a deslizar pela face ao mesmo tempo que o coração rebenta de alegria e a boca deixa sair as mais ternas palavras de afecto, carinho e amor.
Mas o drama tem mais um acto que é preciso cumprir.
Há que partir para a GMC que nos espera. O comboio especial está em Santa Apolónia à nossa espera.
Porra! Nem agora que chegamos, nos dão uns momentos para a família!
Sim. Depois de ires a Abrantes, entregar a merda da rota e gasta farda e receberes o pré. Oito dias de pré são oito dias e a lei é para se cumprir.
O comboio parte abarrotado de ex-combatentes. Confesso que ainda duvido em me considerar ex-combatente. Ainda não entreguei a farda. “Eles” têm sempre razão. Quem sabe, se…
Àquele barulho ensurdecedor dos milhares de homens que se acotovelam nas janelas do comboio, correspondem os moradores que vêm às janelas, varandas, porta da rua e transeuntes, com acenos de alegria e… com lágrimas. Umas de alegria, outras, quem sabe… talvez de tristeza, porque recordam os seus queridos que estão “perdidos” lá na tal guerra de que nos safámos.
Abrantes. A farda entregue. Qual pré, qual carapuça. Boa noite e meia volta, (já não precisava de bater a pala) ainda a tempo de ouvir o pulha do primeiro-sargento dizer para o cabo que conferiu a farda: “Mais um que se esqueceu de receber o pré.”
Foda-se a guita, quero-me ir embora já!
A caminhada até à estação do comboio, que teimava em não chegar.
Entroncamento e novo comboio que parecia ter substituído os rodados por chancas. Parou em todos os sítios onde havia uma gare.
Por fim, já o sol despontara na manhá seguinte. Se fosse hoje, ouviria, “senhores passageiros, dentro de momentos chegaremos à Estação das Devesas - Vila Nova de Gaia. Pedimos desculpa pelo atraso”. Mas, não. Gaia surgiu e do lado de lá do rio, o meu Porto.
Foi agora e só agora. Aqui nas Devesas ao ver o Porto ao longe que senti.
Finalmente estou livre, carago!
Passaram quarenta anos. Pensava eu que a Guiné fora uma etapa para esquecer e que a vida continuava. Como estava errado. A Guiné grudou-se a mim, vive comigo todos os dias e irá comigo para a cova. O meu espírito vagueia por aquelas tabancas, olha de frente aquela gente terna e meiga que me acolheu, quando eu era “agressor” e me acolhe agora com terno carinho, sempre que vou até lá matar saudades.
Empada 2005 > José Teixeira com um ex-Milícia e sua filha
Zé Teixeira
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Notas de CV:
(*) José Teixeira é co-fundador da Tabanca Pequena - Grupo de Amigos da Guiné-Bissau - Apoio e Cooperação ao Desenvolvimento Africano.
Vd. último poste de José Teixeira de 20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6024: Convívios (119): Convívio Anual da CCAÇ 2382 & CCAÇ 2381, no próximo dia 1 de Maio de 2010, em Fátima (José Teixeira)
(**) Vd. poste de Arménio Estorninho de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)
Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6095: Os nossos regressos (22): Os cruzeiros da minha vida (Armandino Alves)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro Zé Teixeira
Quando chegaste ainda eu não tinha partido...
De qualquer modo muitos dos sentimentos que revelas no teu relato são perfeitamente comuns a muitos de nós.
Em todo caso a frase com que terminas é completamente esclarecedora.
'Guiné, nunca mais!' dissemos quase todos e no entanto, é como dizes, está permanentemente nos nossos pensamentos.
Um abraço
Hélder S.
Caro José Teixeira,
Tiveste sorte...ainda comemoraste o 9 de Abril de 1970!
Eu parti em 25 de Abril de 1970 para aquela mártir Terra/País!
Todos os ex-combatentes deixaram uma parte de si na Guiné...
Rico escrito o teu passados 40 Anos.
Um abraço do,
António Tavares
Zé Teixeira.
"Fermero",digo-te que o meu foi esquisito à brava.
Desembarcamos em Figo Maduro após uma viagem de aeronave em que as hospedeiras eram de "xicote" e o vinho foi servido de canecão tropeiro de aluminio.
Do Ralis,onde nos "despedimos" da Tropa, o pessoal desapareceu como por magia não dando tempo a nada. Só (à excepção duma minoria)ao fim de p´raí 30 anos nos começamos a reencontrar
Um abraço
Luis Faria
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