quarta-feira, 5 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude

1. José Corceiro, no seguimento do Poste 6301 (Convívio dos Gatos Pretos), conta como a sua curiosidade lhe podia ter saído cara, pois não avaliou que estava a profanar uma cerimónia religiosa tão importante na religião islâmica.


José Corceiro na CCAÇ 5 (10)

DIA DE “FANADO” EM CANJADUDE

Tinha, se o tempo o permitisse, a ideia de relembrar o que aconteceu em Canjadude 40 anos antes, ou seja, em 24 de Abril de 1970, quinze dias antes e quinze dias depois, mas o tempo não deu para tudo.

Criei seis blocos principais com fotografias adequadas aos temas a saber: - Bloco, Hino dos Gatos Pretos - com fotos do aquartelamento e sua evolução, do que era e do que ficou, quando em Agosto de 74 foi entregue ao PAIGC, isto com a sonoridade de gravações feitas e, cantadas por Gatos Pretos em Canjadude. – Bloco, Falecidos - onde estavam incluídas as fotos, da época, dos que há conhecimento que faleceram. – Bloco, Ausentes - onde estavam as fotos daqueles que tinham desejo de estar presentes, mas que por motivo de doença, ou outros imponderáveis, não puderam marcar presença. – Bloco, Organigrama - que inclui um trabalho feito pelo nosso Gato Preto, Alberto Antunes, ex-Furriel de Transmissões, que substituiu o José Martins na Secção de Transmissões na CCAÇ 5. É um trabalho apurado, que queima muito a pestana, e só com o empenho do Alberto Antunes, se tem conseguido avançar, que consiste em elaborar uma base de dados, com fotografia de cada um e respectivos dados. – Bloco, Gatos Pretos - o bloco maior, com mais de seiscentas fotos, ordenadas por assuntos que representam o viver e a história da Companhia, onde todos os Gatos Pretos que foi possível reunir são intervenientes (actores). Por último, e é duma parte deste que vou falar – Bloco, Rituais e Costumes Indígenas - onde uma parte das fotos dizia respeito ao ritual da Circuncisão nos Homens e Excisão das Mulheres.

Foto 7 > Preparação dos meninos de Canjadude, já de cabeça rapada, para o “Fanado” (Circuncisão).

Foto 8 > Preparação das meninas de Canjadude para o “Fanado” (Excisão Feminina)

É sobre excisão feminina que vou relatar o que me aconteceu em Canjadude, no ano de 1970. Conto esta estória, não só por a ter incluído no bloco de Rituais Indígenas no convívio, mas também por o tema ter sido abordado no Poste 6243 por Filomena Sampaio.

Sempre considerei e considero, que há alguns costumes e tradições em determinadas etnias da Guiné, que são aberrantes e me arrepio só de falar nelas, entre as quais cito a circuncisão no homem, da maneira como era feita (circuncisão cirúrgica sim, quando necessária) e a excisão na mulher que é um acto repugnante, mutilando-lhe o único (e pouco) tecido eréctil que a mulher tem, que é o clítoris. Não importa que religião seja, mas jamais um ritual religioso, ou tradição por ela imposta, pode contribuir para a mutilação do corpo do ser humano. A religião deve dignificar e elevar o Homem e contribuir para um relacionamento de responsabilidade e respeito pela vida própria de cada ser humano. Só por professar determinada religião, não devemos agir às cegas seguindo os seus ditames e, acatar as suas imposições.

Corria o ano de 1970, eu sabia que estava para breve a cerimónia da excisão das meninas de Canjadude, pois já tinha havido a circuncisão dos rapazes, dos quais eu não tinha conseguido tirar fotos. Um militar africano não islamizado, com o qual tinha excelente relacionamento, que sabia do meu interesse pelo cerimonial do “Fanado,” veio ter comigo e informou-me que se realizava no dia seguinte o ”Fanado” nas meninas da Tabanca, cujo altar do ritual era logo à entrada da mata, do lado da pista aérea. Levou-me ao local, onde já havia preparativos para a execução do acto.

Eu, nesse dia, de máquina fotográfica armadilhada e meia disfarçada, despercebidamente vou-me infiltrar na mata, próximo do local da cerimónia. Em determinado momento, as meninas todas em fila, cobertas com um pano da cabeça até aos pés, caminham em direcção ao local da cerimónia. A fila é encabeçada por três ou quatro mulheres e há duas ou três que acompanham lateralmente a fila, talvez para orientar as caminhantes, porque duvido que com a cara tapada consigam ver o percurso da caminhada. De entre as mulheres, não dava para perceber qual seria a “Fanateca” (a mulher que executa o trabalho).

Foto 9 > Preparação das meninas de Canjadude para o “Fanado” (Excisão feminina)

Fotos 10; 11 e 12 > Deslocação das meninas de Canjadude, para (sacrifício) o altar dos rituais na floresta. Na foto 12, pode ver-se um pai (presumo) com uma criancinha ao colo com as vestimentas do “Fanado”.

Foto 13 > Celebração de Graças em Canjadude, vendo-se muitos militares, para que tudo corra bem no “Fanado”.

Eu, impaciente e nervoso, mantenho-me observante e sossegadinho, meio camuflado, nem pestanejava e a fila dirigia-se para o local do ritual. Mas foi Sol de pouca dura, pouco tempo depois, quando me preparava para tirar a primeira foto, fui descoberto e, gerou-se tamanho alvoroço que tive que fugir a sete pés do local para o Aquartelamento.

Não sei explicar como, mas passados uns escassos minutos, após ter chegado ao aquartelamento e me ter dirigido para o abrigo de Transmissões, já estavam todos os Homens Grandes na porta de entrada da Tabanca para o Aquartelamento, a exigir a minha presença (eles todos me conheciam por causa de andar sempre armado em fotografo). Eu receoso que o meu acto se divulgasse e chegasse ao conhecimento dos superiores e que assumisse outras proporções, pois sabia o mal que tinha feito, fui ter com eles e por intermédio do militar que estava à porta onde eles estavam, pedi-lhes que me desculpassem porque eu estava a passar acidentalmente pelo local do acontecimento. Só que eles não estavam para desculpas e exigiam, que entregasse a máquina fotográfica, ou chamavam o Capitão. Eu tentei negociar com eles, prometendo-lhe que lhes tirava fotos gratuitamente, mas estavam inflexíveis. Eu bem tentei argumentar que foi mero acaso estar ali de passagem, mas não os consegui convencer. Por fim, o militar lá os conseguiu demover das suas intenções e acordámos, que eu lhes entregava o rolo que estava na máquina e lhes tirava 20 fotos gratuitamente. Tive que cumprir o estipulado.

Andei uns dias que não me atrevi a ir para a Tabanca sozinho, porque vi ódio nos olhos de alguns. Era normal, eu ir mesmo de noite, sozinho para a Tabanca, com receio contido, fi-lo muitas vezes, pois tinha um bom relacionamento com todos os moradores. Após este episódio tornei-me mais cauteloso.

A minha intenção, ao pretender tirar as fotos, era de pureza total, e somente compreender como se executava um processo que eu considerava indigno. Era a minha curiosidade dos 22 anos de idade a actuar.

Para todos os tertulianos, muita saúde e um abraço.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

José Corceiro foi 1.º Cabo TRMS na CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71.

Vd. poste anterior de 2 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6301: Convívios (142): Encontro dos Gatos Negros da CCAÇ 5 ocorrido dia 24 de Abril de 2010 (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6188: José Corceiro na CCAÇ 5 (9): Resposta a comentário ou eu e os meus registos

10 comentários:

Luís Graça disse...

Parabéns, por trazeres ao nosso blogue o teu testemunho em relação ao "fanado"...

NO caso das raparigas, chamemos a coisa pelo seu nome: MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA (MGF), uma prática (horrorosa e hoje criminalizada pela maioria dos Códigos Penais dos países em que ainda se pratica a MGF...)

Em nome dos superiores interesses da Nação e do "relativismo cultural", as autoridades portuguesas (administrativas e militares) sempre "toleraram" a MGF, hipocritamente... (O mesmo se pode dizer do PAIGC, de Amílcar Cabral, etc.).

No nosso caso, os nossos antropólogos coloniais estudaram a MGF (excisão do clitóris e dos grandes lábios) e analisaram-na nas suas revistas científicas, mas sempre ignoraram as suas consequências e nunca fizeram nada para a combater...

Eu e o Jorge Cabarl fomos os primeiros a escrever sobre a MGF, aqui, no nosso blogue (I Série)...

Podes procurar, temos uma dúzia de postes sobre o tema... Que no tempo era tabu mesmo... Era interdito a um homem (e para mais estrangeiro) assistir à cerimónia do "fanado" feminmino... E pior ainda fotografar, o que em África significa(va) "roubar a alma"...

Foste ingénuo mas corajoso... Felizmente que a curiosidade humana é mais forte que a prudência e o medo...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Mutila%C3%A7%C3%A3o%20Genital%20Feminina

Hélder Valério disse...

Caro José Corceiro

Obrigado por nos dares testemunho destes acontecimentos.
Ficam aqui, no Blogue, muito bem. É também uma prova provada que muitos de nós foram capazes de olhar à volta com olhos de ver, de entender, de aprender.
De qualquer modo também te digo que tiveste muita sorte, ou então talvez a tua postura de convívio tivesse o condão de evitar consequências bem mais gravosas para essas tuas acções de 'desrespeito cultural'.
Um abraço
Hélder S.

Juvenal Amado disse...

Camarada Corceiro

às vezes o blogue anda com tal rapidez, que se perde postes importantes e bonitos, como é o caso deste.
O "Fanado" sempre me fez muita impressão.
Aquelas meninas a quem lhes é imposto sofrimento que não tem razão de ser, são dignas que não se pare a denuncia.
Um abraço

Juvenal Amado

Anónimo disse...

No nosso blogue (não inclui a I Série), o marcador é "Mutilação Genital Feminina" ou MGF (ou ainda "fanado"):

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Mutila%C3%A7%C3%A3o%20Genital%20Feminina

Procurar no Google, em Imagens, utilizando o descritor, em inglês
"Female Genital Mutilation"

http://www.google.pt/images?hl=pt-PT&q=female%20genital%20mutilation&um=1&ie=UTF-8&source=og&sa=N&tab=wi


Um abraço. Luís Graça

admor disse...

Caro Corceiro,
No meio de toda essa complicação que tu arranjaste (reportagem fotográfica) tiveste muita sorte porque o fanado tanto dos rapazes como das raparigas era um dos assuntos tabús não só para brancos, só alguns elementos da tabanca é que estavam autorizados a dar apoio às crianças.

Quando estive em Guidage um dos homens grandes mais influentes da tabanca veio ter comigo para pedir ajuda dos enfermeiros em caso de complicações e eu prontifiquei-me a ajudá-los, mas fui-lhes dizendo que aquela prática era muito perigosa e podia resultar até em mortes.
Ele disse-me, furriel é a tradição, nossa tradição há muitos anos, não podemos deixar de fazer. E no caso de necessitarem dos meus serviços eles traziam a menina ou menino para a enfermaria, porque auele lugar onde as crianças estavam devia ser secreto para toda a gente.
Portanto tiveste muita sorte com o que te aconteceu e com a reacção deles.

Um grande abraço para todos,

Adriano Moreira - Cart. 2412 "SEMPRE DIFERENTES" Bigene,Binta,Guidage e Barro. 1968/70.

Anónimo disse...

Parabéns pelo teu testemunho e pela tua coragem!
Podes crer que correste riscos significativos!
Já escrevi um pouco da minha experiência nesta área aqui no blogue, e contei que um militar da minha companhia que foi espreitar o fanadu, foi perseguido pelas mulheres até ao quartel onde se escondeu após grande corrida.
Não sei o que lhe teria acontecido se tivesse sido apanhado!
Parabéns ainda pelas tuas fotos! Estão um espanto!
Um abraço.
Juvenal Candeias

Anónimo disse...

Amigos, Luís Graça, Hélder Valério, Juvenal Amado, Adriano Moreira e Juvenal Candeias.

Dado o vosso apreço pelo tema, em questão e, porque em Canjadude se deu um salto de gigante, para melhor no ritual do “Fanado”, de 1970 para 1972 e ainda porque tenho fotos desse ritual, oportunamente mando outro artigo para o “Blogue” a abordar o assunto.

Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

Gostei.
Venham. então, mais essas outras fotos sobre o mesmo assunto e, creio, tiradas no mesmo dia.
Alberto Branquinho

Anónimo disse...

Parabéns José Corceiro não só pelo tema mas também pelas fotos que só por si retratam um sofrimento antecipado.
Filomena

Anónimo disse...

oi!!!
nao sabia nada sobre este acto que faziam tanto aos rapazes como a raparigas, mas através do seu blogue fiquei a saber mais sobre este acto.