sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7460: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (6): Uma história de Natal (José da Câmara)

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 17 de Dezembro de 2010:

Meu caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás uma História de Natal. Para ti, para os nossos amigos da Tabanca, para os vossos familiares.

Um abraço do tamanho do oceano que nos une,
José Câmara




O MURAL DO PAI NATAL DA TABANCA GRANDE 2010 (6)

Uma história de Natal

Em 1971, o Destacamento de São João foi o palco da meu primeiro Natal passado na Guiné, o terceiro passado fora do aconchego familiar sanguíneo e o segundo entre uma família diferente, uma família militar.

Preparei-me a preceito para aquela noite. Vesti o meu melhor facto multicolorido, adornei a cintura com as melhores jóias que possuía, umas que faziam Pum e outras faziam Pam quando devidamente utilizadas. Acabei por dar o braço à minha companheira de todos os dias que, em abono da verdade, nunca se fazia rogada em me acompanhar e estava sempre preparada para qualquer cerimónia eventual. Foi esse espírito de colaboração que me fez apaixonar por ela.

Quando cheguei à messe de oficiais e sargentos já lá se encontravam alguns graduados. Os outros chegariam logo a seguir. Reparei, com alguma mágoa, que a única praça presente era o militar de serviço. Porque éramos poucos nunca cheguei a perceber os porquês dessas decisões, que não eram minhas.

A minha companheira ao aperceber-se da presença de algumas amigas alinhadas e encostadas à parede entendeu fazer o mesmo. Para que não se sentisse envergonhada perante as amigas, eu coloquei-lhe nos braços os meus adornos. No dizer dela, sentia-se bem e envaidecida com eles junto ao peito.

Entre os convivas do momento, as conversas foram rolando pelas picadas das recordações familiares, de histórias de outros natais na Guiné e não só e das diferentes experiências pessoais de cada um. Tudo em nome de uma sã camaradagem.

Entre o calar de cada história éramos entretidos com o striptease masculino, muito em voga no tempo, providenciado pelo John Walker. As puras donzelas que ajudavam a alegrar a noite, as loirinhas Cuca e Sagres, invejosas do John, não paravam de dar o seu pézinho de dança e retorciam-se sensualmente com as carícias e os beijos que lhes dávamos. Também não faltou quem pedisse um ar de graça ao velho Vinho a Granel que todos os dias se deliciava com banhos de sol ao fundo na parada, sem estragar a pele. Certamente que invejávamos a capacidade do velho amigo, fosse ele Tinto ou Branco, para aguentar, sem queixas, as carícias do astro rei dos trópicos.

A noite já ia um pouco avançada e alegrada de prazeres, ofertas dos deuses bacos, quando soou a hora do jantar.

A ementa especial dessa noite tinha como entrada uma sopa de legumes, à moda da cidade, uma raridade por aquelas bandas e a primeira vez que acontecia desde que eu chegara ao Destacamento, havia várias semanas, e javali assado no forno, à moda do nosso cozinheiro. Para sobremesa tínhamos aquilo que tinha sido um grande chocolate americano, lembrança da minha madrinha de guerra, que chegou feito em papas, obra de sua majestade o calor africano, que ninguém ousou tocar.

Em boa verdade, foi uma delícia de jantar!

A besta suína que nos servia de repasto tivera a infelicidade de perder um ajuste de contas com um militar nativo. Os dentes grandes da fera, sua única defesa, foram insuficientes perante a heroicidade do nosso camarada, gentio da Guiné. Este acto de bravura, bem merecedor do reconhecimento público dos camaradas, foi pago em folhas de serviço apropriadas e medalhas ultramarinas, tantas quanto nos pediu, às quais acrescentamos mais algumas e os nossos agradecimentos.

Destacamento de São João - Militares nativos preparando o Javali que foi servido na Noite de Natal de 1971

O jantar já ia adiantado, quando alguém se lembrou que não tínhamos agradecido as iguarias que devorávamos com apetite e regávamos ainda melhor. Natal não é Natal se não rezarmos ao Menino e agradecermos a Deus as iguarias presenteadas.

A primazia da reza coube ao Furriel Miliciano Teixeira, do Pel Caç Nat 66 que, por ironia das voltas que demos pelo território guineense, eu fui substituir no Palácio do Governador.

O Teixeira era um homem casado e já sabia o que era ser pai. Calmamente, pegou num pedaço de pão e partiu-o em dois bocados sensivelmente iguais. Após este primeiro gesto, próprio de quem está habituado às grandes ribaltas, que espicaçou a curiosidade dos presentes, botou oratória que não ficou muito longe destas palavras:

- Hoje, se em minha casa apenas houvesse este pão para a consoada, era assim que o partia. Dava esta metade à minha filhinha. A outra metade (juntando a palavra ao gesto) partia-a em dois bocados diferentes e dava a parte maior à minha esposa. Nessa altura, como a minha filhinha já tinha acabado de comer o seu pão, eu dava-lhe o bocadinho que era para mim!

O prato do Teixeira não mingava. Pelo contrário enchia-se tal era o caudal das ribeiras que lhe desciam em cascata pela cara. Por simpatia, o Fur Mil João Fevereiro, homem de grande arcaboiço, do mesmo pelotão, também tinha dado o seu nome a uma jovem que o aguardava nas províncias alentejanas, também fazia o mesmo.

Os alferes Cavaqueira (? - a memória falha-me na certeza do nome) e Ribeiro, e os furriéis Carvalho, André e eu eram as outras testemunhas daquela extremosa manifestação de amor.

Ninguém ficou insensível àquela manifestação. Um pouco por todas aquelas caras de meninos, feitos homens à pressa, se viam lagoas, à altura dos olhos, prestes a transbordar.

Levantei-me, dirigi-me à minha companheira e aos meus adornos, peguei-lhes com sensibilidade desusada, dei as boas noites aos meus camaradas e dirigi-me ao encontro da escuridão que pairava sobre o Destacamento de São João. Não fui o único maricas dessa noite!

Com o coração apertado pelas saudades, procurei no firmamento pela estrela Alva.

Naquela noite de Natal de 1971, ela foi a testemunha silenciosa das minhas lágrimas e da minha prece. Pelos meus familiares e pela minha madrinha de guerra. Pelos meus amigos e camaradas. Pela CCaç 3327 e pela minha secção que não conseguia arrancar do coração.

Dei uma volta pelos postos de vigia. Para uma pequena conversa com os sentinelas, todos eles gentios da Guiné. Também eram gente. O Natal pouco ou nada lhes dizia, mas eles já me diziam muito. Senti-me melhor!

Hoje, passados todos estes anos sobre aquele inesquecível Natal de 1971, continuo a olhar para o firmamento e a procurar a estrela que foi minha companheira cúmplice daquela noite e de muitas outras.

Ainda continuo a ouvir aquele sussurrar cálido e suave como a brisa da noite guineense, quando nos despedimos antes de me retirar para o reino de Morpheus:

- O Menino é um presente de amor e carinho, de amizade e compreensão, que se dá com alegria. Mantem-no bem perto do coração como companheiro de todos os dias!

Hoje, com vossa licença, vou parar o meu trenó às vossas portas. Deixem que o meu companheiro, o Menino, entre nas vossas casas e se sente às vossas mesas. Ele precisa de descansar um pouco e nenhum lugar melhor para o fazer, que no seio das vossas famílias.

Dos States, do fundo do coração, para todos vós e famílias Boas Festas e Bons Anos!
José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7149: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (22): Aventuras em terras manjacas

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7457: O Mural do Pai Natal da Tabanca Grande (2010) (5): Boas-Festas da Tertúlia

6 comentários:

Jorge Fontinha disse...

Meu caro e bom José.
Não sei porquê, mas comovi-me ao ler a tua história de Natal.A de 1971, foi a última que passei na Guiné e foi em Mato Dingal (Bula), juntamente com o meu Grupo de Combate, foi alegre e bem disposto e até tenho uma certa nostalgia, ao visionar a foto que tirei com a minha secção e que alguns já não estão entre nós!
Bem hajas por teres contado um belo conto de Natal.
BOM NATAL, para ti, para os teus e para todos os camarigos (O Luis Graça assim o determinou), que lerem este comentário.

Aquele abraço.

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

José Câmara,

gostei e foi bonita a descrição do teu Natal.

Aí vai um abraço,

Mário Fitas

Anónimo disse...

Camarigo José Câmara

Como sempre tens uma tal arte de contares as tuas histórias, que nos deixam desejosos da próxima, que irás contar. Mas esta, dada a quadra a que se refere, tem ainda outro sabor especial e, além de me comover como ao Jorge Fontinha, transportou-me para o Bachile, pois como já aqui contei, foi lá que passei a noite de Natal de 1971, a 2.ª e última da Guiné.

Aproveito para desejar um Bom Natal, não só para ti e tua Família, mas igualmente para TODA A FAMÍLIA DA TABANCA GRANDE E DEMAIS TABANCAS.

Um xi-coração muito apertado

Jorge Picado

Luis Faria disse...

Amigo José da Camara

Muito bonita esta tua estória de Natal assim relatada.

E,José da Camara ,não precisas de me pedir licença.Entra com o teu Companheiro e Amigo Menino, que tambem o é Meu,sentem-se à nossa mesa e o Menino que descanse todo o tempo que achar merecermos desfrutar da Sua companhia.

Luis Faria

Fátima Câmara Vargas disse...

Olá mano,

Como os teus colegas e companheiros de longa data, também me comovi ao ler "Uma História de Natal" escrita por ti. Parece que tudo se torna mais melancólico e mais triste por estarmos tão longe um do outro, da nossa família, apenas tenho o nosso querido e doce velhinho por perto, mas sem poder vê-lo. Aproveito para desejar a esta grande família que andou por terras Guineenses e a todos aqueles que são amados por ela, um Feliz e Santo Natal e que 2011 venha cheiinho de Saúde, Paz, Alegria e Amor.
Com todo o meu respeito, envio um abraço a todos! Bem Hajam!
Fátima

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Câmara

Bela história!
Comovente, sentida, real...

Também passei dois Natais na Guiné, um em 1970 em Piche e o outro em Bissau e reconheço os sentimentos descritos.

Abraço
Hélder S.