1. Terceiro episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 11 de Janeiro de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
3.º EPISÓDIO
Sempre que ia ver um filme trocava algumas impressões com o porteiro Ibraim. Ibraim como o filho do profeta. Este, em determinada altura, diz-lhe que tornando-se sócio do Sporting Club de Bafata os bilhetes para o cinema lhe ficam mais baratos, pois as sessões tinham lugar no ringue de patinagem do Sporting Club. Passam a conviver com mais assiduidade. Muitas vezes se vê o Alferes com o Ibraim na esplanada do Restaurante Transmontana, o Alferes bebendo uma “meia cerveja” enquanto o Ibraim, muçulmano, toma uma “fanta”. Tornam-se verdadeiros amigos. Muita coisa o Alferes fica a saber sobre os hábitos dos africanos, que duma maneira geral são bastante fechados. O Ibraim conta-lhe episódios passados com as suas namoradas e o Alferes imagina o dia em que “sairá” com uma bajuda. Chega a levá-lo a um baile nativo na tabanca da Ponte Nova, onde o nosso Alferes, jogador como é, se sente como uma carta fora do baralho. A casa de “bajudas” existente na tabanca da Rocha, perto do início da estrada para Bambadinca também não o motiva, pelo que os seus estados depressivos se sucedem. A “lerpa” é o seu refúgio.
A ordem para seguir para Madina Xaquili foi entendida pelo Alferes Magalhães como um bom presságio. Ia mudar de ares. Contrariamente às bajudas da cidade, talvez as das tabancas fossem mais “acessíveis”.
Neste KA KONTRA, na ida para Madina Xaquili, o Alferes Magalhães segue primeiro numa coluna auto, de Bafata para Bambadinca onde pernoita. Antes, e cumprindo ordens, permanece junto de um abrigo até depois da meia noite, tudo porque o pessoal e sobretudo o comandante, mais conhecido por “Pimbas”, ainda está traumatizado com o primeiro ataque a Bambadinca, quinze dias antes. Nada se passa nessa noite e no dia seguinte parte, sorte a dele, noutra coluna para Galomaro, onde ouve o segundo ataque a Bambadinca. Aí e porque ainda se está a construir o novo quartel, dorme num antigo celeiro de mancarra, juntamente com todos os elementos da Companhia, do último soldado ao Capitão. No dia seguinte uma coluna de três Unimogs leva-o a Madina Xaquili.
Bambadinca.
Dentro duma normalidade castrense e porque já se vinha ouvindo o barulho dos motores da coluna há algum tempo, o Alferes de segunda linha, João Sanhá, comandante do Pelotão de Milícia, está à sua espera. Descarregado todo o material e géneros que tinham vindo de Galomaro para possibilitar a vida naquele fim do mundo, a coluna rapidamente se põe a caminho da sede da Companhia tanto mais que já se está no princípio da época das chuvas e os caminhos começavam a ficar intransitáveis. A pedido do Alferes Magalhães o João Sanhá indicou as moranças disponíveis para instalação dos oito elementos metropolitanos acabados de chegar.
Enquanto o elemento que mais tarde se viria a saber já ter pertencido à Legião Estrangeira ia tratar de fazer o primeiro almoço, outro trata da instalação de uma antena para se comunicar com Galomaro e os demais vão à procura de alguns paus para, com a ajuda de umas tábuas que tinham trazido, construírem uma mesa e dois bancos corridos para futuramente se poder comer decentemente e não como na primeira refeição, que se comeu em cima dos joelhos.
Cabe ao Alferes Magalhães, juntamente com o João Sanhá, dar uma volta pela tabanca ver com o que pode contar, nomeadamente os abrigos, para depois pensar em tudo o que havia a melhorar para a defesa de um possível ataque do PAIGC.
Não foi preciso andar muito. Junto a uma morança, uma mulher que mais parece uma bajuda, tem ao colo uma criança de cerca de ano e meio. A beleza da mulher, o olhar meigo, o transvazar do seu sorriso ternurento, o peito desnudado, causaram alguma perturbação ao Alferes.
– Estou na tabanca certa, teria pensado.
Depressa se apressou o João a explicar:
- Esta é a Bobo, mulher do milícia Sadjuma, com o meu filho Bonco ao colo.
A Bobo com o Bonco, filho do João Sanhá.
Continuam a inspecção, tendo o Alferes Magalhães manifestado interesse em ver a zona da fonte, tanto mais que a água que tinham recolhido na passagem pela tabanca de Umaro Cossé, era branca, parecia leite ou cal de pintar paredes. Descem a pequena encosta desembocando numa zona ensombrada onde mulheres lavam roupa. Por se ter passado duma zona com muita luz para a obscuridade o nosso Alferes tem alguma dificuldade em distinguir todos os vultos presentes. Porém um sobressai de imediato pelo seu porte altivo. Rapidamente os olhos do Alferes, forçados pelo desejo incontido, se adaptaram àquela luz difusa não precisando de antes ter fechado um olho como tinha aprendido na instrução no Quartel do Convento de Mafra. O que tinha à frente dele reportou-o por momentos ao tempo em que, na Escola de Belas Artes do Porto, tinha estudado a história da Grécia antiga e a perfeição das suas mulheres representadas na profusa estatuária da época.
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7589: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (38): Na Kontra Ka Kontra: 2.º episódio
1 comentário:
Conforme referido no 1º comentário do 1º Episódio:
Glossário do 3º episódio:
MANCARRA: Amendoim.
TABANCA: Povoação, aldeia.
UNIMOG: Marca da viatura militar mais usada na guerra da Guiné.
Um abraço a todos e até amanhã.
Fernando Gouveia.
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