quarta-feira, 27 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8610: Efemérides (73): 27 de Julho de 1970: Amélia teve um menino (José Marcelino Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70) [, foto à direita, no seu escritório,] com data de 27 de Julho de 2011:

Bom dia a todos

Não sei como, algo me recordou que o penúltimo Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, Prof António de Oliveira Salazar, faz 41 anos que morreu.

Houve muitas anedotas, incluindo aquela que perguntava em que posição, no cortejo fúnebre, ocupava o sucessor,  Marcelo Caetano... Obviamente que ocupava o lugar "atrás das coroas".

Bem, segue um texto do [meu] livro não publicado, REFREGA, sobre os antecedentes, desta efémeride.

Um abraço
José Martins


AMÉLIA TEVE UM MENINO
por José Martins

Se na metrópole algumas notícias levavam tempo a chegar ao conhecimento das pessoas, lá longe, em plena África, só chegavam as notícias triviais que os familiares e amigos enviavam aos militares, cientes de que não haveria problemas, quer para uns quer para outros, se fossem interceptadas.

Por isso, era sempre ansiado o regresso dos companheiros que tinham vindo gozar os seus dias de férias à metrópole. Nessas alturas, além dos petiscos que era normal levarmos, havia noticias frescas, isto é, noticias mais recentes, ou com menos antiguidade, daquelas que os jornais que nos chegavam através do correio levavam, e, sobretudo, aquelas que corriam à boca pequena, e que eram transmitidas quase em surdina.

A uma distância de mais de trinta anos, já não me recordo bem como a notícia da queda do Presidente do Conselho, Doutor Oliveira Salazar, enquanto passava férias na Forte de S. João do Estoril, chegou ao nosso conhecimento nas matas da Guiné. Recordo-me, isso sim, de que pouco ou nada sabíamos.

O acidente tinha acontecido no dia 6 de Agosto de 1968. Muito provavelmente a notícia chegou através de alguém que, depois dessa data, regressou ao nosso convívio.

Naturalmente, especulámos o que se poderia seguir, já que nos encontrávamos numa zona bastante activa, e, entre nós e a fronteira da Guiné-Conacri,  só havia terreno sem controle das nossas tropas.

Como outros, este assunto era tabu e apenas comentado em “círculo” muito restrito. Com as praças europeias, e nessa altura estava connosco a Companhia de Artilharia n.º 2338, não havia comentários e, se alguma tentativa houvesse, decerto que seria desviada; para as praças africanas Salazar era apenas o “Homem Grande de Lisboa”.

Passou, então, a haver um acordo para que, assim que o falecimento do ex-presidente ocorresse, já que tinha sido exonerado em 27 de Setembro de 1968, quem estivesse na metrópole enviaria, para o capitão da CART [2338] , que era o autor da ideia, um telegrama com o texto “Amélia teve um menino”.

É evidente que, quando vim de férias em Novembro de 1968, não deixei de comentar o facto com pessoas de confiança, no caso o meu pai, e dei-lhe a “senha” para o caso de ser tempo de a usar.

E o tempo foi correndo. A CART [2338] saiu de Canjadude em Março de 1969 para Nova Lamego e daí para Buruntuma em Maio, passando por Pirada até ao seu regresso em Novembro de 1969, pelo que nunca mais tive contacto com qualquer elemento da unidade. Eu próprio viria a terminar a comissão em Maio de 1970 e regressado à vida civil, tudo “voltou ao normal”.

Estava a findar a mês de Julho de 1970, era dia 27, e pouco mais de um mês tinha passado desde o meu regresso. Como habitualmente fazia, depois de ir buscar a Manela, minha noiva, ao emprego e deixá-la em casa da mãe, fui para casa para jantar.

O meu opai, com ar de caso, chamando-me à parte, disse:
- “Amélia teve um menino”.
- Amélia ? Que Amélia ?...

A resposta veio rápida, pausada e em voz baixa, como convinha à época:
- Quando cá vieste de férias em Novembro de 68, não me pediste que, caso acontecesse algima coisa na política, em resultado da queda da cadeira do então Presidente do Conselho, para te mandar um telegrama com esta frase para a Guiné...?

Realmente a frase não me era estranha, mas nesse dia ainda não tinha ouvido noticias que, decerto, já corriam de boca em boca.

E concluiu:
- Este telegrama é falado! Salazar morreu!

5 de Setembro de 2002
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8538: In Memoriam (84): No dia 5 de Maio de 2011 morreu o último combatente da I Grande Guerra (José Martins)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8441: Efemérides (51): A nossa malta no 10 de Junho, em Belém (2) (Arménio Estorninho)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Zé Martins:

Eu sabia que havia para aí um "manuscrito", mais ou menos esquecido, perdido entre os papéis que um homem vai juntando, à medida que que vão caindo as folhas das árvores do jardim e as do calendário...

E também sabia do teu "special sense of humor", que tem algo de "British"... Um TOC (Técnico Oficial de Contas) é, por definição, tão discreto, meticuloso e diligente como um "homem das secretas"... Mas é capaz de nos surprender com uma história como essa, de antologia... De facto, essa da "Amélia teve um menino" merecia ver a luz do dia!

Parabéns, Zé, é a "pequena história" dentro da História... O tal capitão da CART 2383, tal como o teu pai, tal como tu, eu, todos nós, interiorizou perfeitamente os "códigos de conduta da época": Falava-se por senha e contra-senha... Cá e lá...

Eu estava já na tropa, no RI 5 (desde 15 de Julho de 1968), quando o "acidente" se deu... E em 29 de Setembro fui para o CISMI, em Tavira... De algum modo o assunto era "tabu"... Só se falava dele à boca pequena, na caserna, em casa, nos cafés, em círculos muito restritos...

A morte, física, de Salazar já não teve a mesma emoção... Nessa altura estava já eu na Guiné, há mais de um ano...

Bom, venham mais histórias do teu livro "Refrega", para alimentar as nossas leituras de Agosto, que é um mês em que o "negócio" é tradicionalmente fraco... Até podemos abrir uma série só para ti...

Ah!,...boas férias, boas leituras!

Juvenal Amado disse...

J.M.Martins

Uma estória muito bem humorada mas também uma lembrança que uma notícia tão normal, pois na vida só uma coisa temos a certeza que é a morte, tinha de ser tratada com todo o cuidado.
Notícia essa se não envolvesse a pessoa em questão seria normalíssima mas no caso não fosse o diabo tecê-las todo o cuidado era pouco.
Na altura contou-se muitas anedotas de humor mais ao menos negro.
Na TV passou uma reportagem com imagens do comboio que transladou o corpo. Dizia-se que a CP estava cada vez pior, pois este comboio tinha um atraso de 40 anos.

Um abraço

Anónimo disse...

José Marcelino, tiveste conhecimento imediato do desaparecimento da figura mais responsável pela guerra colonial.

E gente mais responsável e mais poder que tu (nós) tambem soube imediatamente.

Mas visto a esta distância, ficamos com a ideia que se respeitou "luto" por Salazar, por 4 anos bem longos.

Talvez por isso, agora se festeja o aniversário do "menino da amélia" em 1974 e não em 1970.

Antº Rosinha