segunda-feira, 25 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8599: Notas de leitura (259): No Pincha, por Vasco de Castro (Mário de Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Era uma vez um artista plástico coroado de glória, irreverente, esquerdista. Alguém que no Maio de 1968 andou todos os dias na rua, teve a dita de ser um artista na revolução, e por causa. O artista vira entrar a Guiné na sua vida, não se lembrava bem como e quando. Depois teve uma noite de insónia, telefonou-me, referiu o episódio e prometeu passar tudo a escrito. Assim aconteceu.
O blogue tem o exclusivo de alguém que, algures em Setembro de 1969, viu um filme sobre luta de guerrilha, no seu território de eleição, Montparnasse, no fundo a sua aldeia, a um tiro da Sorbonne e do Bairro Latino.
O resultado aqui está. O manuscrito segue para o blogue, é nossa propriedade.

Um abraço do
Mário


Vasco de Castro e o documentário No Pintcha, Paris, 1969

Beja Santos

Sou amigo de peito do Vasco (de Castro), vai para mais de 30 anos, comecei por lhe admirar o talento daquele desenho satírico que fez furor em publicações como Le Monde, Le Figaro e Paris Match, ele teve sempre guarida nos principais títulos de grande circulação em França (viveu exilado em Paris entre 1961 e 1974), depois, por agradável ocaso da fortuna, fomos robustecendo cumplicidades e esgravatando intimidades. Tinha o Vasco acabado de ler “Mulher Grande”, quando me telefonou a dizer que, numa daquelas atormentadas noites de insónia lhe viera à mente o nome do Tobias Engel que, como eu devia saber, era autor de um importante documentário sobre o PAIGC, na fase acesa da luta armada. Desconhecia inteiramente o nome de Engel, e nunca vira tal documentário. Do outro lado do telefone o Vasco gargalhou, recordou-me a sua colaboração rotineira com a extrema-esquerda francesa que, aliás, veio continuar na militância que o levou a fundar o jornal Página Um, ainda bastante antes da sua colaboração durante décadas em jornais como o Diário de Notícias e o Público. Palavra puxa palavra, o Vasco acedeu a escrever esta memória para o nosso blogue. Entregou-ma ontem, quando o fui visitar a Fontanelas, onde ele se refugiou há muito tempo, é ali, na sua incrível mesa de trabalho, que saem esses portentosos “bonecos” cheios de carácter e nitroglicerina. Aqui vai, tal como ele escreveu à mão e será entregue para o arquivo histórico do nosso blogue:


No Pintcha

Naquele princípio de tarde de Setembro de 1969, espreguiçava-me na esplanada do “Select”, em Montparnasse, Paris, regressado, fresco e tostado, de praias do Sul de França. Revia caras conhecidas, recuperava praticamente o tom e o ritmo de um quotidiano familiar de que sentia a falta.
Surgiu o Tobias, excitado. Sentou-se rápido – cheguei agora da Guiné!

Vasco de Castro em exposição recente

Junho antes, o Tobias Engel, jovem actor que frequentava comigo o Dôme, o Select e a Coupole em suaves convívios, anunciava-me que conseguira contactos com o PAIGC, via Argel, e mais, os financiamentos para o projecto de um filme sobre a luta dos guerrilheiros na Guiné e de que havia muito pouca notícia.

Trazia consigo bobines a abarrotar filmes e preparava a montagem do No Pintcha. Rebentava de entusiasmo.
Dois anos antes, o Tobias, ainda estudante do liceu, iniciara uma carreira de actor com um colega que dava passos promissores como encenador, Patrick Chéreau. Estrearam-se com uma comédia de Labiche, o “Chapéu de palha de Itália”, autor e peça do século XIX em sombrio esquecimento.

O fulgurante talento de Chéreau, na fresca renovação do velho Labiche, surpreendeu. Foi um sucesso de crítica e de público.

Tobias, nas exaltações do “Maio de 1968”, deixou-se seduzir pelos ecos guevaristas que fascinavam então a intelligentsia parisiense mais disponível, seja a Cuba castrista, as guerrilhas latino-americanas, o Vietnam de Ho-Chi-Min e as colónias portuguesas em armas. Que a sedução pela acção política, directa, foi sempre apelo aceso e libertário, irresistível para alguns intelectuais e artistas, quando jovens, nos seus labirintos solitários nas sociedades ocidentais… Byron, nas lutas gregas de independência, os nossos Garrett e Herculano na guerra civil e liberal, Malraux, Hemingway e Orwell na guerra civil de Espanha, e então, o jovem universitário francês Regis Debray, nas montanhas da Bolívia, como mensageiro do mítico Che.

Camilo Castelo Branco por Vasco de Castro

Em Outubro, o Tobias tinha o seu filme montado, anunciava exibição privada numa pequena sala-estúdio, próxima da gare Montparnasse. O No Pintcha, para uma vintena dos seus amigos. Filmara os guerrilheiros do PAIGC, algures nas matas da Guiné. Filmara um desfile militar, o dia-a-dia das nascentes estruturas do novo Estado, uma reunião de quadros político-militares em mesas toscas de tábuas de madeira, um hospital artesanal de campanha, um serviço de comunicações com aparelhos-rádio, uma escola sobre ramagens de árvores, patrulhamentos a céu aberto. E, sobretudo, uma sessão solene com discurso político e militares em parada, Amílcar Cabral de olhar tenso, à frente do seu comité político e Estado-Maior Militar.

O Tobias Engel fez dezenas de cópias do seu No Pintcha que correram o mundo. Em Lisboa, um silêncio pardo fingiu nada saber. Mas a história avançava, o 25 de Abril não andava longe.

Procurei no Google França imagens do Tobias. Vem lá referências aos seus filmes e às suas actuações. O No Pintcha terá estreado em 1970. Não consegui obter imagens. E não vale a pena misturar nesta história o nome de Patrick Chéreau, nome supremo da encenação no teatro, na ópera, no cinema e no bailado.

Coube-me a honra de apresentar o mais recente livro de Vasco Montparnasse até ao esgotamento das horas, em 2008. É a narrativa de um jovem que a terra na Meca das belas artes, que vai percorrendo o seu percurso assombroso que o guindou às grandes publicações e a grandes polémicas, graças ao seu traço inconfundível; o Vasco que percorreu as vielas e travessas do exílio de muitos portugueses, que passava diariamente ao lado de alguns dos nomes sonantes de grande cultura francesa e internacional e com quem, nalguns casos, conviveu, sobretudo ao nível do desenho de humor. Esse mesmo Vasco que deitou para trás o seu nome sonante e veio militar pelas suas causas no terrunho, como bom português cheio de saudades.

A Guiné dizia-lhe alguma coisa. E naquela noite apareceu-lhe na insónia o Tobias Engel, cujo caminho se cruzou com o PAIGC. Bom seria que quem tem histórias semelhantes luso-guineenses delas aqui fizesse eco.
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Notas de CV:

- Vasco de Castro (Vila Real, 1935) é um cartunista e pintor português de referência, com pintura e desenhos expostos em múltiplos eventos e participação em antologias internacionais de humor. É sócio correspondente da Academia Nacional de Belas-Artes desde 1992. Filho do poeta trasmontano Afonso de Castro.
Extraído da Wikipédia, com a devida vénia.

Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8582: Notas de leitura (258): Caderno de Memórias, por José Manuel Villas-Boas (Mário Beja Santos)

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