1. Em mensagem de 30 de Maio de 2011, Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675 Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), recebemos esta memória:
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (10)
Oficiais não viajam em 2ª classe
Em Janeiro de 1966 vim da Guiné a Portugal em gozo de férias com viagens gratuitas, porque fui agraciado com o Prémio Governador da Guiné.
Chegado a Lisboa, tomei o comboio para Aveiro, a belíssima capital meu Distrito, conhecida também como a Veneza Portuguesa. Daqui segui para a minha terra, a aprazível vila de Sever do Vouga, viajando no velho e típico “vouguinha” arrastado modorrentamente por uma negra máquina lenta, feia e barulhenta de tracção a carvão. Ainda! Fumo e foligem a rodos!
A velociadade era tal – principalmente entre Sernada e Viseu – que nós saímos da 1ª carruagem, colhíamos uvas ou figos e, nas calmas, entrávamos na terceira (e última).
Metade de um vagão destinava-se aos solitários passageiros de 1ª, pessoas, em regra, mais abastadas; os bancos de madeira eram forrados com um tecido enfarruscado que fora branco uns anos antes; naquela data estava tão sujo como pau de galinheiro! Entre a madeira e o dito tecido mascarrado havia uma camada de palha envelhecida – talvez podre – digo eu, na tentativa frustrada de tornar o assento mais confortável.
A higiene naquele local não abundava! Eu estava ali sozinho, desterrado, desconfortável!
Passei para a parte da carruagem destinada aos passageiros de 2ª classe na esperança de encontrar ali alguém conhecido com quem pudesse agradávelmente conversar durante a viagem. Deparei lá com duas moças – eram irmãs – das minhas relações; logo começámos a... contar coisas. Como eu sentia a falta duma conversa amiga (no caso era um diálogo a três) com gente sem farda!
A conversa estava animada! O revisor apareceu; pediu os bilhestes com uma afabilidade que não condizia com a pessoa; surgiram as complicações! Depois de 20 meses na Guiné a “caçar” inimigos – alguns até nem eram – não havia pachorra para suportar a caturrice absurda dum qualquer fura-bilhetes excessivamente zeloso ou com ganas de exercer a sua autoridade exacerbada.
- O senhor não pode viajar em 2ª!
- Posso sim! E viajarei em 2ª até ao fim do meu percurso!
- Oficiais não podem viajar em 2ª!
- Eu posso! Só sairei daqui no fim da viagem!
- A lei não permite que um oficial utilize a 2ª, até porque o senhor exibe título de 1ª.
- Se não houver lugares vagos em 2ª e se os houver em 1ª, um passageiro de 2ª pode ou não ocupar um lugar vago na 1ª?
- Pode! Mas não é esse o caso!
- Se os de 2ª podem transferir-se para 1ª, a contrária também é verdadeira! Ninguem vai de pé por minha causa! Só mudarei para 1ª se o senhor limpar ou mandar limpar a imundície desmedida que lá vai e trocar aquele pano nojoso que cobre os bancos! Lá, eu sei que vou ficar com a roupa suja! Aqui não me apercebo disso! Faça o que lhe aprouver mas eu não sairei daqui enquanto aquilo não estiver devidamente limpo e decente para ser ocupado! Lembre-se que eu venho da guerra da Guiné com viagens pagas... por feitos “singulares” em combate! Dentro de 35 dias voltarei àquela famigerada guerra! E preferivel largar de vez e voluntariamente o meu pé para não ser coagido a largá-lo doutro modo!
Remédio santo! O “furador” continuou o seu trabalho longe de nós! Não reapareceu antes de a minha viagem (e a das minhas amigas) estar concluída.
Toma e vai-te... curar!
Lisboa, 19 Julho de 2011
Belmiro Tavares
Ten. Mil. Inf.
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Notas de CV:
Foto do comboio retirada do Blogue A Nossa Terrinha, com a devida vénia
Vd. último poste da série de 22 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8589: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (9): Um jogo de Xadrez... muito especial
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
PONTO
Só se podiam hospedar, no presunçoso "grande hotel" de Bissau,oficiais.
Numa das minhas idas a Bissau..estava muito doentinho..coitadinho.
Tem quartos ?
É militar?(estava à civil)..sim.
Qual é a sua patente ?
Mau..maria..perguntei-lhe se tinha um quarto vago e faz-me essa pergunta.
É que só hospedamos oficiais.
Olhe meta o quarto no cú.
Assistia à cena um capitão, que diz que é da PM, e pede-me a identificação..identifiquei-me.
Em seguida pergunta-me onde é que estou colocado.. no mato meu capitão..sim,mas em que sítio..no mato meu capitão..a coisa começava a complicar-se..
Ouça lá porque é que está a armar este sarilho todo (era compreensivo, e bonzinho este capitão da PM).
Olhe por tudo,principalmente pela estupidez desta norma.. ainda para mais sendo esta espelunca civil.
No mato..no mato...no mato..meu capitão.
C.Martins
Meu caro C. Martins,
Vou assumir que a arrecadação onde querias que a Maria metesse... o quarto...também era de Bissau.
O capitão da PM era mesmo um anjinho.
Repara no sarilho que ele te ia provocando pelo facto de não perceber nada de guerras e de arrecadações da retaguarda.
Só mesmo em Bissau! E logo com a PM.
Um abraço amigo,
José Câmara
Julgo que depois de mim, é o C. Martins o único a referir que o Grande Hotel era só para oficiais. Um outro camarada furriel me desmentiu dizendo que se tinha lá hospedado. Hipótese, não lhe ter sido perguntada a patente.
Quando precisava de dormir em Bissau, ficava instalado no "grande" Hotel Portugal, que tinha um café no r/c, onde eram servidas umas favas com chouriço que eram um mundo.
Também pernoitei em 1971 no Chez Toi, quando aquilo virou casa séria. Dormia-se sozinho, pois então!
Abraço
Carlos
Oh camarada José Camara
"o sarilho que me ía provocando"
a moi..moi maime...bahh
Com o devido respeito por todos os oficiais superiores à minha patente(alferes),com excepção de alguns "nhurros"que apenas tinham galões em cima dos ombros..o que é que me poderiam fazer.
Mandar-me para o mato ?..eu já lá estava.Enviar-me para um dos maiores "buracos"?...eu já lá estava.. em Gadamael
Era fácil para mim "armar estrilho" ..e confesso que me dava um certo gozo furar normas estúpidas ou elitistas... como ir em calções de banho para a messe de oficiais no QG..outras histórias
C.Martins
ERAM OU NÃO EX.COMBATENTES.QUE PORRA DE GUERRA ERA AQUELA QUE TÃO MAL TRATAVAM OS SEUS COMBATENTES,QUANDO TÃO SIMPLESMENTE QUERIAM TER UM POUCO DE ACESSO AOS PRAZERES DE SER CIVIL.QUANTOS ESQUEMAS NÃO FORAM PRECISOS PARA A MALTA SER TRATADA COMO ERAM TRATADOS CERTOS OFICIAIS,MESMO UTILIZANDO A MESMA FORMA DE PAGAMENTO.HÁ AINDA ALGUNS QUE HOJE SE INTITULAM DE EX.COMBATENTES,MAS QUE NA ÉPOCA ERAM TRATADOS COM TODA A MORDOMIA E HOJE ESCREVEM HESTORINHAS DA GUERRA.A QUEM NÃO SERVIR A CARAPUÇA NÃO TEM QUE SE ZANGAR.AOS RESTANTES "BOAS FESTAS"
Henrique Cerqueira
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