segunda-feira, 9 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9719: Notas de leitura (349): Os Últimos Governadores do Império, coordenação de Paradela de Abreu (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 5 de Março de 2012:

Queridos amigos,
Nesta coletânea, a Guiné é contemplada com três entrevistados. Silva Tavares, que depois partirá para Angola e ali ficará até 1961, exalta com humildade e admiração o importante trabalho do seu antecessor, Sarmento Rodrigues; António de Spínola concede um depoimento para ler de fio a pavio, tudo aquilo que constitui o desentendimento com Marcello Caetano e a redução da área a defender quando passou a ser manifesta a possibilidade de defender povoações e aquartelamentos fronteiriços, aparece aqui descrito com curta margem para equívoco; e Bethencourt Rodrigues protege-se com dados factuais sem alguma vez explicar o que pretendia fazer ao longo de 1974.
São depoimentos que valem pelo que deixam insinuado nas entrelinhas.

Um abraço do
Mário


Os Últimos Governadores do Império 

Beja Santos 

“Os Últimos Governadores do Império” (coordenação de Paradela de Abreu, Edições Neptuno e Edições Inapa, 1994) acolhem o registo de Governadores que se dispuseram a desfiar as suas memórias no período em que estiveram à frente de parcelas do Império. No que toca à Guiné, o volume guarda os testemunhos de Álvaro da Silva Tavares (a partir de 1956 e até 1958), António de Spínola (de 1968 a 1973) e de Bethencourt Rodrigues (entre 1973 e 1974).

Álvaro da Silva Tavares foi magistrado do Ministério Público de 1945 a 1956 na Guiné, Moçambique, Angola e Estado da Índia, em que foi nomeado Secretário-Geral daquele Estado. Abandonou as funções de Governador da Guiné para tomar posse como Secretário de Estado da Administração Ultramarina e foi Governador-Geral de Angola de 1960 a 1961. O seu depoimento engancha no relevante trabalho no seu predecessor, Sarmento Rodrigues, não é por acaso que Silva Tavares recorda o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, a importante colaboração que a instituição estabeleceu com o Institut Français d’Afrique Noire, Dakar, e o seu incontornável Boletim e o manancial de monografias. Refere igualmente a Missão de Combate à Doença do Sono e a Missão Geo-Hidrográfica da Guiné. Discreteia sobre o ensino, pondo em paralelo com o trabalho das missões católicas e as escolas corânicas. No tocante à saúde, não esquece o que Raoul Follereau, a grande notabilidade na lepra escreveu sobre a Guiné, dizendo que era o primeiro território do mundo em condições de erradicar a lepra como endemia, e exalta o trabalho da Missão do Sono. Centra a sua memória na agricultura guineense.

Diz que a cultura do arroz conheceu uma alteração radical na gestão de Sarmento Rodrigues quando este mandou proceder à recuperação das bolanhas. E deixa uma crítica velada: “Depois dele, porém, o interesse dos serviços provinciais cessou e até surgiram certas críticas em relação a trabalhos feitos de lama, alvo de constante manutenção. De fato, os terrenos tinham de ser defendidos das marés por muros de lama, fortalecida por uma estrutura interna de vegetais e ramos de arbustos. O que se alterou foi o sistema regulador, que permite impedir a entrada de água salgada das marés altas e a saída da água das chuvas na maré baixa, e os métodos, visto terem sido utilizadas máquinas como as motoniveladoras”. Foi assim que se procedeu à recuperação dos terenos e se viveu o período áureo da cultura em que a Guiné era conhecida como exportadora de arroz. Refere igualmente as culturas de amendoim, palmeiras, mandioca, caju, manga e o desenvolvimento da granja de Bissau. Considera que as eleições do Presidente da República, em 1958, na Guiné, foram modelares, Américo Thomaz obteve 60 % e o general Delgado 40 %.

António de Spínola narra a extensa conversa que teve com Salazar em que expendeu os seus pontos de vista sobre o Espaço Português, a sua heterogeneidade e descontinuidade geográfica, propondo para a Guiné um novo estatuto, pelo que pretendia acelerar o desenvolvimento económico da província. Salazar não comentou esta exposição, limitou-se a dizer: “É urgente que embarque para a Guiné”. Considera que a sua política de promoção social foi um dos eixos bem-sucedidos da sua gestão, orientado para a justiça social, pleno respeito pelas instituições tradicionais africanas, incremento económico, participação na Administração Pública das gentes da Guiné, referindo concretamente os Congressos dos Povos.

Dentro desta visão reformadora do conceito de permanência em África, Spínola incentivou contactos com os chefes da guerrilha do PAIGC e encontrou-se com Senghor, este apoiou-o no processo de autonomia interna da Guiné com uma duração não inferior a 10 anos, seguida de uma consulta popular que, escreve Spínola, possivelmente conduziria à independência no quadro de uma comunidade luso-afro-africana. Esta proposta não foi aceite por Caetano. E escreve: “Perante a decisão do governo de Lisboa, foram suspensos os contactos com Senghor, sem que deixasse transparecer as verdadeiras causas de interrupção das conversações. O desconhecimento do facto e a situação de impasse que se seguiu levaram determinada fação do PAIGC a pressionar Amílcar Cabral no sentido de este se substituir a Senghor nas diligências iniciadas. E assim, na sequência do processo em desenvolvimento, Amílcar Cabral propôs, em Outubro de 1972, encontrar-se comigo em território português, eventualmente em Bissau. Informei pessoalmente o Presidente do Conselho da nova perspetiva que se abria, esgotando toda a gama de argumentação, para que não se perdesse a oportunidade oferecida por Cabral. Caetano opôs-se dizendo que estava fora de causa qualquer hipótese de acordo político negociado e que se encontrava preparado, para aceitar, se necessário uma derrota militar”.

Para Spínola, estava perdida a última oportunidade de se resolver com honra e dignidade o problema da Guiné. E continua: “Arreigou-se profundamente no meu espírito a convicção de que Portugal, em contradição com a sua própria vocação, caminhava para um fim trágico”. Descrevendo os acontecimentos críticos de 1973, depois do aparecimento dos mísseis Strella e da operação “Amílcar Cabral”, foi enviado ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas um memorando com três alternativas: redução da área a defender; conservação do atual dispositivo sem qualquer reforço, à luz de um espírito de defesa a todo a custo; reforço do teatro de operações em ordem a manter a superioridade sobre o inimigo. O General Costa Gomes visita a Guiné em Junho de 1973 e emitiu a opinião de que, perante a impossibilidade de dotar a Província com os meios necessários à sua defesa, a única alternativa seria a de um retraimento do dispositivo com o abandono de largas áreas do território ao longo da fronteira. Spínola escreve ao ministro do Ultramar comentando que não será ele a abandonar as áreas e as populações em cuja proteção se empenhara pessoalmente e termina assim: “Agudiza-se o problema da minha substituição, que peço a Vossa Excelência seja considerado a tempo de possibilitar a alteração do dispositivo militar que é mister fazer”.

O General Bethencourt Rodrigues tomou posse em 14 de Setembro de 1973, chegou a Bissau em 29 de Setembro. O texto de caracterização da situação político-económico-social da Guiné é praticamente o mesmo que publicou no livro de testemunhos “África, vitória traída” (Editorial Intervenção, 1977). Fala no V Congresso, na viagem do ministro do Ultramar à Guiné, de 15 a 20 de Janeiro, de que aumentara o orçamento da Província, de que estavam em construção as estradas Jugudul-Bambadinca, Piche-Buruntuma, Catió-Cufar e Aldeia Formosa-Buba, que entrara em laboração a CICER, que aumentara o preço do arroz e que em Março de 1974 estavam desviados para fins exclusivamente civis 37 oficiais, 50 sargentos e 182 praças. Entende que estavam a funcionar bem os órgãos do governo, a rede administrativa que cobria o território e que a produção agrícola satisfazia em grande parte as necessidades da população. E afirma: “Não cuidei de interesses pessoais ou de grupos e tive sempre como objetivo único o interesse da Guiné”. Bethencourt Rodrigues foi forçado a abandonar a Guiné em 26 de Abril de 1974. Neste seu depoimento não carateriza a evolução político-militar enquanto que em “África, vitória traída” afirmara que estava em curso a retração do dispositivo, supõem-se na linha aprovada pelo general Costa Gomes.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9707: Notas de leitura (348): Les Batisseurs D'Histoire, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

"E assim, na sequência do processo em desenvolvimento, Amílcar Cabral propôs, em Outubro de 1972, encontrar-se comigo em território português,"...explica Spínola.

E "explico humildemente eu": De Outubro de 1972 a 20 de Janeiro de 1973, vão mais ou menos 3 meses, tempo suficiente para alguem programar o assassinato de Cabral.

A quem é que interessava mais que Cabral desaparecesse?

Provavelmente interessava apenas aos intervenientes passiva ou activamente:

Portugueses, PAIGC, guineenses em geral,caboverdeanos, cubanos, soviéticos, guineenses-conakry, senegaleses, MPLA e FRELIMO.

De toda esta gente, ficou a versão soviética para a história oficial do assassinato de Amílcar:

"Mandantes suspeitos, Spínola e PIDE.

Cumprimentos

João Carlos Abreu dos Santos disse...

É muito bem conhecido, desde há quase 35 anos, todo o conteúdo de «África, a vitória traída».
Nele não consta que um seu co-autor - no caso, o (há menos de um ano a esta parte) falecido, Gen. Bethencourt Rodrigues -, tenha afirmado que antes do 25A «estava em curso a retracção do dispositivo»; e se, da leitura que esta recensão pressupõe, uma tal "retração" foi deduzida como "estando em curso" no CTIG antes de 26Abr74 (!), apenas se perspectiva como plausível fundamento um enviesado 'wishful thinking' por parte do esforçado recensor, sendo certo que o então CEMGFA general Costa Gomes - numa célebre reunião do CSDN, havida na sequência da citada última visita à Guiné -, apresentou tal manhosa proposta que, obviamente, não colheu aprovação... mas ficou para "execução futura"... !
Quanto ao que o governador e CCFAG general Spínola, "disse e fez" e/ou "disse que fez": (tosse-tosse), nem vale a pena gastar cera na apreciação da verborreia, de quem antes do final de 68 se tomou como "vice-rei da Guiné" mas em meados de 71 se demonstrou incapaz de vir a chefiar o Estado Português...
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Anónimo disse...

Mais Velho Rosinha

A ter que negociar o que quer que fosse, Amilcar Cabral fa-lo-ia com o regime estabelecido em Portugal...e nao com Spinola...que provou nao ter nem poderes,nem influencia alguma junto de Lisboa...

Um mero bluff do governador....

Nelson Herbert

Antº Rosinha disse...

Herbert, penso que jamais haveria algum dia qualquer diálogo.

Logo que se internacionalizou aquela guerra, nem Portugal nem aqueles corajosos militantes da FRELIMO, MPLA ou PAIGC, tinham controle sobre aquela "bola de neve".

Os 13 anos de guerra que eu vivi em Angola, conheci o procedimento do MPLA, irmão do PAIGC, conheci o procedimento da FNLA, vendida aos irmãos evangelistas e outros americanos, e a UNITA que até já se tinha vendido aos chineses e até à PIDE.

E, hoje com calma podemos ver que todos estavam de olho com o que se passava na Guiné.

Até o próprio Amílcar escreveu essa ideia que os outros olhavam para o que os guineenses faziam.

E eu não creio que tanto Portugal, pequenino e sem Salazar, nem Agostinho Neto ou Amilcar, fossem senhores da situação.

Porque nem os americanos, nem Cubanos ou soviéticos permitiriam qualquer vacilação.

E, para mim, Amilcar vacilou e foi o fim dele.

Mas isto é a minha análise pessoalíssima após tantos anos a ouvir e a assistir ao sentir e agir dos americanos, Cubanos e Russos, tanto na Guiné como em Angola.

Só sabemos que Amílcar e Agostinho Neto morreram "matados".

Algum passo errado eles deram!

Cumprimentos