1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 2 de Abril de 2012:
Viva Carlos,
A propósito de um pedido de entrevista sobre memórias que envolvessem militares gay's durante a guerra de África, aqui partilho um texto que reflecte um triste acontecimento ocorrido na minha Companhia, e pode reflectir a podridão humana.
Abraços fraternos
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (48)
Entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão
Os portugueses partiram à descoberta movidos pela expansão da Fé, e pela aventura de dar novos mundos ao mundo, mostrar-lhes a civilização do homem europeu, partilhá-la e desenvolver sociedades de progresso e justiça social. Era assim, quiçá ainda será, que a história era ministrada no jardim lusitano; não se referiam as estórias horrorosas sobre violações, roubos, raptos e esclavagismo, mortes e destruição. Como é comummente aceite, a história é escrita pelos vencedores; ou ainda, uma mentira é tantas vezes apregoada, até passar a ser considerada como verdadeira. Talvez, por isso, a fantástica odisseia de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, é tão pouco divulgada entre nós. Notoriamente, não convinha ao regime, onde o governo desempenhava o papel de bom entre os bons, e o chefe apresentava-se como imaculado e imprescindível, donde, a verdade era de somenos. E, para melhor acentuar o poder, convinha que o povo não tivesse grande instrução, sentisse que os sacrifícios terrenos teriam compensação eterna, agradecesse a caridade como expressão de equilíbrio generoso, e que, sob um regime corporativo, os pobres não chateassem os ricos, sob pena de criarem fissuras no edifício social.
De facto, a manipulação da memória é obra de todos os tempos conhecidos (constitui uma técnica de sedimentação de grupo), das civilizações que exercem com superioridade o domínio sobre as mais fracas. E os povos, por inércia, por comodidade, por medo, por laxismo, aceitam-na, mesmo, quando essa manipulação é denunciada, como no caso recente da primeira invasão do Iraque, mesmo, quando os efeitos colaterais no Kosovo foram referidos como insuperáveis para que se atingisse a paz. É a alienação, tanto dos que praticam com bestialidade, como dos que não se incomodam com a verdade.
Esta introdução serve para ilustrar, que entre as NT não havia apenas gente movida pelo espírito cristão e, modernamente, que a nossa deslocação para a Guiné correspondeu a um arrebanhar de pessoas, de muitas e diferentes formações de ordem moral e ética; que a instituição militar não tinha capacidade para descortinar em cada um as falências de que seria portador, bastando-lhe o Regulamento de Disciplina Militar para, na sua força coerciva, manter as tropas alinhadas, direita volver, de preferência acéfalas e obedientes.
Em Bajocunda, os militares não tinham praticamente nada, senão obrigações. No entanto, os vinte aninhos imberbes sempre descobriam diferentes actividades, mesmo quando resvalavam para a imoralidade, que permitiam desenvolver a chamada camaradagem, e, unidos na desgraça, arranjar as forças, que as refeições, e o cansaço moral e físico não proporcionavam. Jogava-se a isto ou aquilo, seguiam-se curiosamente as estórias de engates de lavadeiras, discutiam os benfiquistas com os sportinguistas e os portistas, descortinavam-se estórias da juventude, e comungava-se das experiências comuns a todos os jovens.
No entanto, cada um era diferente dos restantes, como acontece em todos os lugares e circunstâncias, se tivermos em conta, não só as diferenças genéticas, como as de educação, nível sócio-económico, instrução, e todas as que contribuem para a formação da personalidade e do carácter. Por isso, também havia os fracos de espírito, os mais facilmente alienáveis, e a consequente diferença de conceitos sobre a vida.
Lembro-me de uma ocasião em que um militar se gabava de ter feito sexo com um homossexual a troco de uma importância e, quando o interrompi, tratando-o de "panasca", para acabar aquela conversa, muito surpreendido, ripostou-me, que paneleiro era o outro, ele apenas teria tido ocasião para ganhar dinheiro. Era difícil transmitir ideias novas a quem tinha tido um desenvolvimento com outras coerências, mas proibi aquele género de conversas.
Mais tarde, já "velhinhos" com alguns meses de "guerra", durante uma paragem no mato surpreendi uma conversa muito animada, em que três ou quatro desafiavam um outro, a contar-lhes o que se tinha passado no abrigo onde dormia, e que metia cenas escabrosas de sexo. E o desafio prosseguia com grande à-vontade, a que o visado, talvez pela minha proximidade, respondia com sorrisos de quem não podia falar, mas sem problemas pessoais.
Interessou-me o assunto, e fiquei a saber que um graduado, individuo de fraquíssima personalidade e comportamento, um dos que pertencia à seita, que sacava do erário e enchia o bornal a coberto das contas da Companhia, tinha fama de colaborar com a PIDE, era medroso e embriegava-se mais do que devia, tinha participado e estimulado. Ao anoitecer, costumava levar bebidas para o abrigo onde pernoitava, e assim semeava um esquema de amizade conivente e colheita de informações, com que exercia a sua influência.
Dessa vez, provavelmente com alguns copos bebidos, e com o bolso a abarrotar de notas, a conversa terá enveredado para o sexo, em termos que nem me interessou esclarecer. Mas soube, que um militar mostrou uma erecção, e o graduado terá oferecido vinte "paus" a quem roçasse o traseiro no membro erecto. Para quem não tinha nada, e sugestionado pelo graduado "amigo", todo-poderoso naquele abrigo, houve quem possa ter dado ares de aceitar o desafio, e ganhou, ou ganharam, aquela importância. Depois, em crescendo, ofereceu cinquenta "pesos", que equivaliam a mais de dez cervejinhas, a quem beijasse. E pagou. Quase a atingir um climax emocional fácil de imaginar, o graduado subiu a oferta para cem escudos a quem se deixasse penetrar um bocadinho. Segundo o relato da época, esta importância foi recusada, porque, obviamente, feria a dignidade masculina da meia-dúzia dos presentes.
Foi tudo a "brincar", claro, muito provavelmente a raciocinarem conforme o álcool, o fumo e a javardice condicionavam, mas não tive conhecimento da motivação do graduado. Do que não restam dúvidas, é que, à bebedeira, à maluqueira, à falta de carácter dos intervenientes, temos que considerar o abuso de poder de um militar em tempo de guerra, que para gaudio pessoal, se permitia explorar daquela maneira abjecta as fragilidades humanas. Depois, as razões do costume foram suficientes para abafar o caso, onde eu só vislumbro um culpado.
JMMD
Nota: Título do texto da responsabilidade do editor
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9502: História da CCAÇ 2679 (47): Um Brigadeiro de visita a Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
J.Dinis
Gostei desta tua forma de abordar a questão e da dissertação introdutória ao tema que fazes.
Sei hoje que homossexualidade sempre existiu em todos os extratos sociais. Quem não se lembra durante a recruta nos regressos aos quartéis, se era seguido de forma mais ao menos visível por indivíduos que buscavam a troco de algum dinheiro, a satisfação dos seus impulsos? Alguns soldados sem dinheiro, longe de casa onde só iam quando de férias, encaravam essa actividade sem muitos pruridos e ficavam para trás para esses encontros. Depois era como tu dizes, continuavam a considerar-se muito machos, não aceitando que tanto é ladrão o que vai à vinha, como o fica de fora. Lá apareciam com a tal nota de 20$00, como se tivessem executado um grande feito e até se vangloriavam, que nada tocava a sua masculinidade.
Na Guiné deparei-me com alguns casos, que na gíria nós chamávamos de “Maria Amélia”, “Tonys” e “Zéquinas”, bem como alguns casos mais discretos esses eram os “incompreensíveis”. Mas para quem como eu, pensava que a homossexualidade era uma consequência de degeneração de costumes, uma dia deparei-me com um caso que me deixou um bocado à perplexo.
Numa coluna em que participei, acabamos de parar numa aldeia no meio de nada, pois era só mato e só ia dar a um destacamento quase esquecido. Qual não é o meu espanto juntamente com as crianças e alguns populares, vejo aproximar-se uma figura muito estranha. Um nativo todo enfeitado e com modos muito femininos. Verdade é que nem as mulheres andavam naqueles preparos. Perante a minha incredulidade por tal fenómeno aparecer num local como aquele, perguntamos ao homem grande o que era “aquilo”. O que o homem grande nos disse, confirmou as nossas suspeitas, mas o engraçado é que aquele individuo não era objecto de discriminação por parte dos outros habitantes, antes pelo o contrário era bem aceite.
O caso que relato, passa-se num local em que os habitantes vivem próximo da idade da pedra, daí a minha perplexidade quanto ao fenómeno.
Va lá um tipo tentar perceber a natureza humana.
Viva Juvenal,
Obrigado pelo teu comentário. A homossexualidade era mal encarada pela nossa geração, exactamente porque pensávamos tratar-se de degeneração de costumes, de aberração contra-natura. Depois, admitiu-se (e classificou-se) tratar-se de uma patologia (doença). Actualmente, segundo uma fonte da psicologia, trata-se de uma orientação sexual diferente.
Mas nem por isso merece desprezo, salvo quando entra em confronto social (marchas exibicionistas), ou excessos de comportamento.
Aliás, só o RDM discriminava a homossexualidade, pois a lei geral era omissa.
Um abraço
JD
Enviar um comentário