As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)
B. TERCEIRA CARTA - EM BISSAU
O fôlego da companhia [, a CCAÇ 728,] (**) estava a esvair-se rapidamente com tanta intervenção nas matas. Os intervalos de tempo entre elas, passados não davam para recompor.
- Para onde e quando será a próxima? - Era a pergunta que assoberbava a cabeça de todos nós.
A baixa do alferes Sasso (***) estava presente. Quando se sai ao mato, não se sabe se se voltará... A sensação que tínhamos era de que, uma vez atirados às feras, tínhamos de nos "desenrascar", fosse como fosse.
As dúvidas sobre a razão da nossa presença ali, cresciam e alastravam descontroladas. Não havia qualquer semelhança entre a tropa que desembarcou na Guiné e a que tinha de sobreviver em cada dia.
Os dias que faltavam estavam todos contadinhos, embora ninguém soubesse quando. Nunca mais ninguém esquece a hora em que a tão esperada notícia se espalhou. Foi uma explosão de alegria como nunca mais sentimos na vida. Tinha chegado a ordem da nossa rendição. A uns breves quinze dias. Que longos nos pareceram.
- E se ainda temos de sair para o mato?... - essa era a grande incógnita.
E assim aconteceu. O meu sargento Gaspar que era um voluntário das guerras, repetente, tinha cumprido duas comissões em Angola, e estava ali por troca duns contitos de rei... que lhe deu o paizinho do Madail. Na véspera da operação assisti eu à sua consulta ao médico do batalhão. Ele era um peso pesado, gorilão. Pesava p'raí uns cento e vinte kg. Largo de tronco e uma agilidade desproporcionada. Pois, ainda conseguia fazer com facilidade impressionante um flic-flac à rectaguarda. Ali estava ele na saleta do médico na enfermaria a desbobinar, com uma convicção, um rosário de maleitas que, a serem verdade, o impossibilitavam de sair para o mato. O poriam de ambulância no hospital…
- Para onde e quando será a próxima? - Era a pergunta que assoberbava a cabeça de todos nós.
A baixa do alferes Sasso (***) estava presente. Quando se sai ao mato, não se sabe se se voltará... A sensação que tínhamos era de que, uma vez atirados às feras, tínhamos de nos "desenrascar", fosse como fosse.
As dúvidas sobre a razão da nossa presença ali, cresciam e alastravam descontroladas. Não havia qualquer semelhança entre a tropa que desembarcou na Guiné e a que tinha de sobreviver em cada dia.
Os dias que faltavam estavam todos contadinhos, embora ninguém soubesse quando. Nunca mais ninguém esquece a hora em que a tão esperada notícia se espalhou. Foi uma explosão de alegria como nunca mais sentimos na vida. Tinha chegado a ordem da nossa rendição. A uns breves quinze dias. Que longos nos pareceram.
- E se ainda temos de sair para o mato?... - essa era a grande incógnita.
E assim aconteceu. O meu sargento Gaspar que era um voluntário das guerras, repetente, tinha cumprido duas comissões em Angola, e estava ali por troca duns contitos de rei... que lhe deu o paizinho do Madail. Na véspera da operação assisti eu à sua consulta ao médico do batalhão. Ele era um peso pesado, gorilão. Pesava p'raí uns cento e vinte kg. Largo de tronco e uma agilidade desproporcionada. Pois, ainda conseguia fazer com facilidade impressionante um flic-flac à rectaguarda. Ali estava ele na saleta do médico na enfermaria a desbobinar, com uma convicção, um rosário de maleitas que, a serem verdade, o impossibilitavam de sair para o mato. O poriam de ambulância no hospital…
O médico piscava-me o olho. Sabia que o sargento Gaspar era casado e com filhos à espera, no Cais da Rocha, em Lisboa, dentro de breve tempo. Eu, como seu comandante de pelotão, também fechava os meus. Não fazia falta nenhuma. Pelo contrário. Seria menos uma eventual fonte de problemas...
E ficou mesmo em casa. Já não me recordo do tempo que levamos a chegar a Bissau, desde Catió, numa grande LDM. Vínhamos todos nas nuvens, como num sonho de libertação dum degredo imposto, onde a nossa vida esteve em perigo cada minuto.
Só me lembra que não éramos só nós os viageiros felizes. Uma série de mulheres e crianças nativas vieram, com galinhas e açafates, de boleia, até Bolama e Bissau. De novo no quartel de Santa Luzia, como companhia de serviço, nos três meses antes de regressar, olhávamos para tudo com outros olhos. Era só deixar correr o tempo.
Havia que fazer o rastreio de saúde no hospital [, HM 241, Bissau, foto à esquerda, arquivo do nosso blogue] . Eu fui lá passar uma semana para expulsar a bicharada toda que bebemos nas bolanhas e se alojaram nas nossa tripas… os …trico céfalos trykiuros...
Também deu para tirar a carta militar… de moto e ligeiros, que depois era só trocar no continente. E não é que no preciso dia em que estava a fazer o exame de mota, com a preparação de duas ou três lições, me ia estampando contra uma parede, ao fim duma descida, como quem vem de Bissau para SantaLuzia. Confundi o pedal do travão com o do acelerador…Por momentos, eu que estava safo da guerras todas, vi a morte à minha frente… Não tenho dúvida de que foi um milagre da minha devota Senhora de Pedra Maria. A primeira coisa que fiz quando recebi a carta de mota, foi rasga-la aos pedacinhos. Não fosse o mafarrico tecê-las… e uma jura eu fiz, solene:
- De que nenhum filho meu, com minha autorização, haveria de guiar mota. E cumpri à risca.
A de carro, ainda é a mesma, à boa maneira do desleixado portuguezinho, troquei-a exactamente no último dia do ano que dispunha para o fazer…para não ter de repetir o problemático exame na metrópole. Foi em Bissau, desta vez, que pude conviver de perto com um casal amigo. Ele, o Silvestre, era alferes no quartel da Amura. No quadro da Administração. Viviam numa parte de casa alugada. Torturados pelo lento e penosíssimo decorrer dos dias à espera do fim da comissão… Era o seu grande lamento. Tinha sido meu companheiro de seminário. Fora pescado para a tropa, quando já tinha o 3º ano de direito. Ela já estava licenciada em românicas. Dava aulas no liceu de Bissau. [Foto acima: vista aérea do Liceu Honório Barreto e da Escola Industrial e Comercial de Bissau; arquivo do blogue].
Para mim, viviam remansosamente. Entretanto, nasceu-lhes lá o primeiro filho, aliás, menina. Fizeram questão de que fosse seu padrinho… e fui. O baptizado foi na Sé de Coimbra. E pasme-se!
- Nunca mais os vi, aos três!...Que vergonha de padrinho!?... Acho que a minha afilhada se chamou e chamará ainda - Luisa.
Esta conta não deu mesmo certa…
Outro que eu lá conheci, desde as minhas surtidas do mato até Bissau, era um outro alferes da administração militar, colega do Silvestre. Este tinha sido obrigado a interromper o curso de filosofia em Lisboa. Era um apaixonado pelos clássicos, gregos e romanos, pela escolástica. Ficou assombrado comigo, quando entabulou conversa lá no bar de oficiais, em Santa Luzia. Eu ainda tinha bem presentes todas essas figuras do pensamento, conhecia bem as suas ideias e achegas.
- Também andas em filosofia? – perguntou.
- Não. Andei.
- E que vais tirar?
- Direito, talvez.
- Oh!, não faças isso. Andei lá ano e meio e abandonei. Aquilo não presta para nada. É só fogo de vista. Dá para ganhar dinheiro… e mais nada.
-E eu estou cansado desse mundo antigo. Passou. O que deixaram está esgotado…
Ficou de cara à banda. Nunca mais o vi.
De facto, ele tinha toda a razão. Cedo o reconheci. Tirei o curso de direito, a ferros, jogava no campo inimigo, pois não tinha estofo para o mundo dos tribunais e das obrigações civis. Só me serviu para ganhar a vida…
Também recordo outro episódio, daqueles que só o destino sabe explicar. Eu estava de oficial de dia ao quartel de Santa Luzia. Onde ficavam altos comandos militares. Uma responsabilidade que não metia medo a quem chega do mato.
Estava a preparar tudo para passar a pasta ao oficial sucessor. Nisto, oiço uma voz conhecida, muito familiar, não daquelas paragens.
- Dá licença, meu alferes?- exclamou a voz.
- Entra.
Levantei os olhos e dei de caras com um 1º cabo, também de farda amarela, um velhote, como eu… muito sorridente, o que, de repente, me deu tempo para pensar:
- Mas que é que deu a este figurão, para estar a sorrir, sem, antes, me ter visto os dentes?..
Era o meu primo Alberto, um meio irmão, que estava ali à frente. E regressaria à metrópole daí a pouco. Lançámo - nos num grande e sentido abraço… como irmãos - os pais dele eram irmãos dos meus.
- Espera aí que eu vou passar o serviço e vamos já conversar… temos muito que dizer um ao outro…
Ainda me ocorre outro episódio de assinalar. Em Julho próximo [, de 1966,] eu ia fazer vinte e cinco anos. Um número que se me afigurava então como digno de respeito. A sensação era de que tinham custado muito a decorrer estes vinte e cinco anos.
Na infância, o que desejamos é ser grandes… os anos nunca mais passam, são longos como séculos. A escola primária é uma escada dura de subir. O tempo de seminário foi um calvário doloroso que parecia não ter fim. A tropa foram só uns vinte e dois meses, mas pareceram vinte anos.
Tinha muito presente em mim que iria completar um quarto de século. Um pouco depois, iria regressar à vida civil. Tudo muito incógnito e inimaginável. A descontracção e autoconfiança que sentia ali ao serviço do batalhão, deu-me uma saborosa sensação de êxito pessoal. Muito benéfica para o meu psicológico, sempre muito complicado.
Cumpria o meu dever com naturalidade e exactidão. Pela primeira vez, senti-me admirado. Um superior reparou em mim. O segundo comandante major Jasmim de Freitas.
Antes meu lugar foi sempre nas filas de trás. Lembrei-me de promover uma festa, sob o pretexto dos meus anos. Todos os oficiais do batalhão foram convidados. E anuiram muito prontos e prazenteiros.
Mandei assar uns leitões na padaria geral da Amura [, foto à direita, do nosso camarada João Martins], comprei uns petiscos e umas bebidas e , na hora marcada, depois da parada, a alegria e fraternidade chegaram em abundância. Foi uma linda festa.
O segundo comandante, cuja mulher era familiar muito próxima do administrador dum banco na metrópole, fez questão de me dar uma carta de recomendação para eu apresentar ao seu cunhado quando chegasse a Lisboa. Estaria afiançado.
Só que, uma vez chegado à vida civil, fui acometido por uma tremenda crise de adaptação. Senti um choque psicológico estranho e muito perturbador. Insónias sobre insónias. Um frenesim incontrolável. Os comprimidos para regularizar somaram e caí prostrado no extremo oposto. O da letargia apática.
Primeiro que me sentisse apto a defrontar uma entrevista daquela importância, como seria essa com o administrador, demorou muito. O rumo da vida alterou-se. E a oportunidade perdeu-se totalmente. Pelo menos foi o que senti.
- Dá licença, meu alferes?- exclamou a voz.
- Entra.
Levantei os olhos e dei de caras com um 1º cabo, também de farda amarela, um velhote, como eu… muito sorridente, o que, de repente, me deu tempo para pensar:
- Mas que é que deu a este figurão, para estar a sorrir, sem, antes, me ter visto os dentes?..
Era o meu primo Alberto, um meio irmão, que estava ali à frente. E regressaria à metrópole daí a pouco. Lançámo - nos num grande e sentido abraço… como irmãos - os pais dele eram irmãos dos meus.
- Espera aí que eu vou passar o serviço e vamos já conversar… temos muito que dizer um ao outro…
Ainda me ocorre outro episódio de assinalar. Em Julho próximo [, de 1966,] eu ia fazer vinte e cinco anos. Um número que se me afigurava então como digno de respeito. A sensação era de que tinham custado muito a decorrer estes vinte e cinco anos.
Na infância, o que desejamos é ser grandes… os anos nunca mais passam, são longos como séculos. A escola primária é uma escada dura de subir. O tempo de seminário foi um calvário doloroso que parecia não ter fim. A tropa foram só uns vinte e dois meses, mas pareceram vinte anos.
Tinha muito presente em mim que iria completar um quarto de século. Um pouco depois, iria regressar à vida civil. Tudo muito incógnito e inimaginável. A descontracção e autoconfiança que sentia ali ao serviço do batalhão, deu-me uma saborosa sensação de êxito pessoal. Muito benéfica para o meu psicológico, sempre muito complicado.
Cumpria o meu dever com naturalidade e exactidão. Pela primeira vez, senti-me admirado. Um superior reparou em mim. O segundo comandante major Jasmim de Freitas.
Antes meu lugar foi sempre nas filas de trás. Lembrei-me de promover uma festa, sob o pretexto dos meus anos. Todos os oficiais do batalhão foram convidados. E anuiram muito prontos e prazenteiros.
Mandei assar uns leitões na padaria geral da Amura [, foto à direita, do nosso camarada João Martins], comprei uns petiscos e umas bebidas e , na hora marcada, depois da parada, a alegria e fraternidade chegaram em abundância. Foi uma linda festa.
O segundo comandante, cuja mulher era familiar muito próxima do administrador dum banco na metrópole, fez questão de me dar uma carta de recomendação para eu apresentar ao seu cunhado quando chegasse a Lisboa. Estaria afiançado.
Só que, uma vez chegado à vida civil, fui acometido por uma tremenda crise de adaptação. Senti um choque psicológico estranho e muito perturbador. Insónias sobre insónias. Um frenesim incontrolável. Os comprimidos para regularizar somaram e caí prostrado no extremo oposto. O da letargia apática.
Primeiro que me sentisse apto a defrontar uma entrevista daquela importância, como seria essa com o administrador, demorou muito. O rumo da vida alterou-se. E a oportunidade perdeu-se totalmente. Pelo menos foi o que senti.
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 23 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)
(**) Informação sobre a independente CCAÇ 728 (recolhida pelo nosso colaborador permanente José Martins):
Companhia de Caçadores n.º 728
Unidade Mobilizadora: Regimento de Infantaria n.º 16 – Évora
Comandantes: Capitão de Infantaria António Proença Varão, substituído pelo Capitão de Cavalaria Ramiro José Marcelino Mourato e posteriormente pelo Capitão de Infantaria Amândio Oliveira da Silva.
Divisa: Os Palmeirins
Partida: Embarque em 8 de Outubro de 1964
Desembarque em 14 de Outubro de 1964
Regresso: Embarque em 7 de Agosto de 1966
Locais por onde passou: Bissau, Cachil, Catió, Bissau
(***) Vd. série anterior, Crónica de um Palmeirim de Catió:
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez
5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu
2 comentários:
Grande palmeirim do caqui amarelo: Hoje tens um ar de avô babado e bonacheirão, destilando ternura por todos os poros...
Os teus netos ficarão orgulhosos das cartas que lhe escrevestes contando histórias de há meio século atrás...
Como o tempo passa, camarada!
Ainda continuas por Berlim ? Manda novas... LG
Olá Homem Grande!
Obrigado pelas tuas palavras. Os netos são rebuçados carregadinhos de mel...é o que vale. Com tanto fel à volta.
Tivemos de vir em socorro da filha. Recém-divorciada e sem um filhinho de 3 anos. De manhã para a noite...Estava de rastos. Felizmente, 3 semanas depois, as coisas estão a melhorar...
Tenho andado muito pelo facebook...a janela donde se enxerga o mundo em cada dia. Encontro lá uma " Maria da Fonte" chamaa Maria Alice Carneiro incansável combatente...como faz falta. Na hora que passa.
Um grande abraço, extensivo a todos os tertulianos.
Joaquim
Fica bem
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