Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Meados de 1972 > CCAV 3365, Os Quixotes (Domingos,1971/1973) > Testemunhos do "inferno" que se viveu em São Domingos, em resultado de vários dias de ataques do PAIGC
Fotos : © Plácido Teixeira / Bernardino Parreira (2012). Todos os direitos reservados
Bernardino Parreira |
Data: 16 de Outubro de 2012 14:31
Assunto: Guiné 63/74 - P10525: Um história do artilheiro de Gadamael, Vasco Pires (...)
Caro amigo, Luís Graça
Aí envio essas fotografias de meados de 1972, que me foram facultadas pelo meu camarada e amigo Plácido Teixeira, que cumpriu toda a comissão em S. Domingos,[na CCAV 3365,] desde Maio de 1971 a Março de 1973, e que ilustram bem o estado em que ficou o aquartelamento de S. Domingos após mais um ataque ao quartel que durou alguns dias.
Conforme consta num relato efectuado pelo meu camarada e amigo Plácido Teixeira, que já vos facultei, em que o mesmo manifestava agradecimento ao General Spinola pela visita que fez àquele aquartelamento na sequência desses episódios.(**)
Refiro ainda que à data já não me encontrava lá, em virtude de no princípio de 1972 ter sido destacado para a companhia africana, CCaç 16, sediada no Bachile -Teixeira Pinto, onde acabei a comissão. Mas recordo-me de muitos ataques ao quartel enquanto lá estive, tendo sentido grande alivio quando saí de lá, e parti preocupado com os camaradas que lá deixei a ferro e fogo.
Enquanto estive em S. Domingos vi e vivi situações de guerra e nunca me senti num "resort". No período que lá estive, os Furrieis dos Obuses eram os meus amigos Pimenta e Rebelo. Tudo isto pode ser testemunhado pelos meus camaradas da CCAV 3365 [, Os Quixotes].
No entanto, regozijo-me que a situação estivesse calma no período em que o Alferes Vasco Pires lá esteve. Ainda acrescento ter conhecimento que, depois da minha saída de S. Domingos, o meu amigo Furriel Pimenta, dos Obuses, ficou gravemente ferido numa operação no mato, tendo sido evacuado para Lisboa.
Um abraço
Bernardino Parreira
2. Mensagem do Vasco Pires (*):
Caro Luís,
Muito obrigado pelo informe. Li o depoimento do nobre camarada Bernardino Parreira, e conclui que devemos ter estado lá em datas diferentes, pois não tenho memória de nenhuma flagelação, tão pouco me lembro de ter havido um disparo dos nossos obuses. A única hipotética acção seria uma pretensa operação perto da fronteira, para onde o Major de Operações pretendia levar os obuses. Ora a ordem do Comando do GAC 7 era de que os obuses não deveriam sair nunca do aquartelamento, se o Comando da unidade a que estávamos adidos insistisse na saída, deveria ser dada ordem por escrito, e, quando eu solicitei essa ordem, ficou por isso mesmo. Creia-me, caro Luis, que na minha memória, a palavra "resort", não é exagero, excepto, que a essa data, por direito, já devia estar em casa. abraço, VP
3. Comentário do L.G.:
Meu caro Bernardo, gostaria que transmitisses ao teu amigo e nosso camarada Plácido Teixeira o meu desejo de o ver mais perto de nós, sentado sob o poilão mágico e fraterno da nossa Tabanca Grande. No caso dele, basta-lhe mandar as duas fotos da praxe, uma do antigamente e outro do agora. Fazes isso por todos nós ?... Um abração. LG (***)
_______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Um história do artilheiro de Gadamael, Vasco Pires, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos... (Vasco Pires, Brasil)
(**) Reproduz-se, de novo aqui, o texto escrito por Plácido Teixeira, da CCAV 3365 / BCAV 3846, colocado em S. Domingos,1971/1973, e que vive atualmente nos EUA, em Boston. [O BCAV 3846, 1971/73, era composto pelas CCAV 3364 (Ingoré), CCAV 3365 (S.Domingos) e CCAV 3366 (Suzana)].
(..:) Senhor Spínola... sim, Senhor, porque outros tempos vão longe! Mas, Senhor Spínola, com muito respeito eu digo e escrevo o seguinte:
Muito obrigado pelas palavras que proferiu uma vez em S. Domingos, para uma Companhia abusada, e maltratada e deitada ao abandono. Lembro-me que uma vez, num horrível mês, do ano de 1972, a nossa Companhia foi um alvo, uma carreira de tiro. Sim, uma carreira de tiro e nós o alvo!!! Era bombardeamento diário. Não havia comida, não havia bebida ou até luz.
Lembro-me que andava a passar uma ronda e fomos apanhados no meio do campo de futebol. Todos saltámos do Jeep, uns para a direita, outros para a esquerda. Como fomos apanhados no meio do campo de futebol, a vala e os abrigos estava muito longe. Corri e cheguei finalmente a vala, sem arma, sem sapatos e sem oculos! Bonito para a minha defesa. Mais uma vez a ideia era sobreviver. Havia fumo por todo o lado. Como tinha chovido, na vala era só lama. Não havia luz e com o fumo nada se via para fora da vala. Era até impossível por a cabeça de fora. O tiroteio do outro lado do arame era intenso. Constou que estávamos a ser atacados com bombas de fumo e que até já tinham entrado para dentro do "quartel".
Ficámos toda a noite nos abrigos. Mesmo após o tiroteio ter parado, estava tudo cansado e desmoralizado, sabe-se lá até com que ideias... Sabíamos que do lado de fora do arame, o ataque estava bem organizado e como tal para sobreviver não havia que dar chances ou oportunidades.
Na manhã seguinte com a luz do dia só se via destruição. Poucos foram os que se aventuraram para fora dos abrigos. No entanto como era normal principiaram os boatos... o Jeep está destruído... o bar está acabado... ha dois mortos... há inúmeros feridos... na enfermaria só há sangue etc. etc.
Foi bombardeamento diário durante muitos dias. Era afinal S. Domingos. Era a razão pela qual a sede do Batalhão foi para lugar seguro. Foi assim o nosso pesadelo!
Durante os ataques e certas vezes podia-se ouvir o outro lado, sabiamos portanto que eles não estavam longe, e que afinal eram seres humanos como nós, só que defendiam a sua terra a qual não nos pertencia. Eles tinham razão. Nós éramos invasores, éramos seres humanos como eles, com pais e irmãos, alguns casados e com filhos. Ficámos esgotados e sem energia para sobreviver, água não havia a não ser a da chuva, comer não havia, e munições também estavam a esgotar rápido.
A lama acabou por secar e as pernas foram ficando presas como no cimento. As armas, muitas não trabalhavam de sujidade. Estávamos deitados ao abandono e à mercê da sorte ou do destino.
Não veio ajuda... nem do ar, nem por terra, nem tão pouco por água. Esperávamos somente ajuda, mas do Céu. Mais um dia e seríamos todos mortos ou prisioneiros tal foi essa semana maldita.
Os aviões não podiam vir, pois eles estavam tão perto, corriam o risco de ser também feridos ou mortos. Helicópteros não vinham mandar mantimentos, medicamentos e o necessário, pois seriam alvejados... estes foram os boatos!.
Finalmente ao fim de uma semana, fomos ajudados. Talvez tenha sido por Deus... Como ratos saímos das valas. A cara estava amarela, a barba enorme as roupas rasgadas, e havia lama por todo o lado e até ao cabelo.
O choque final foi saber quem ficou ferido, quem morreu etc.
Ficou tudo destruído. Gerador, frigoríficos, fogões até as panelas ficaram como um assador de castanhas! Água não havia. Passamos a beber água amarela dos "poços" da tabanca. Estávamos portanto sujeitos a malária etc.
Era uma Companhia desmoralizada, sem energia sem sono! Uns choravam com o stress de Guerra, outros não falavam, outros ficaram sem o sorriso da juventude.
Finalmente. um dia, um helicóptero!
Foi tudo reunido para ouvir o Governador da Guiné. Senhor Spínola, eu agradeço imenso e esteja onde estiver, esteja em paz, como em paz nos deixou! Agradeço as palavras, não de um General mas palavras de um amigo, palavras de reconhecimento. Agradeço ter compreendido estes jovens que foram deixados a mercê das armas e da sorte.
(*) Vd. poste de 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10525: Um história do artilheiro de Gadamael, Vasco Pires, à beira da peluda, no 'bem-bom' de São Domingos... (Vasco Pires, Brasil)
Plácido Teixeira (Cortesia do blogue Luar da Meia Noite)
(**) Reproduz-se, de novo aqui, o texto escrito por Plácido Teixeira, da CCAV 3365 / BCAV 3846, colocado em S. Domingos,1971/1973, e que vive atualmente nos EUA, em Boston. [O BCAV 3846, 1971/73, era composto pelas CCAV 3364 (Ingoré), CCAV 3365 (S.Domingos) e CCAV 3366 (Suzana)].
(..:) Senhor Spínola... sim, Senhor, porque outros tempos vão longe! Mas, Senhor Spínola, com muito respeito eu digo e escrevo o seguinte:
Muito obrigado pelas palavras que proferiu uma vez em S. Domingos, para uma Companhia abusada, e maltratada e deitada ao abandono. Lembro-me que uma vez, num horrível mês, do ano de 1972, a nossa Companhia foi um alvo, uma carreira de tiro. Sim, uma carreira de tiro e nós o alvo!!! Era bombardeamento diário. Não havia comida, não havia bebida ou até luz.
Lembro-me que andava a passar uma ronda e fomos apanhados no meio do campo de futebol. Todos saltámos do Jeep, uns para a direita, outros para a esquerda. Como fomos apanhados no meio do campo de futebol, a vala e os abrigos estava muito longe. Corri e cheguei finalmente a vala, sem arma, sem sapatos e sem oculos! Bonito para a minha defesa. Mais uma vez a ideia era sobreviver. Havia fumo por todo o lado. Como tinha chovido, na vala era só lama. Não havia luz e com o fumo nada se via para fora da vala. Era até impossível por a cabeça de fora. O tiroteio do outro lado do arame era intenso. Constou que estávamos a ser atacados com bombas de fumo e que até já tinham entrado para dentro do "quartel".
Ficámos toda a noite nos abrigos. Mesmo após o tiroteio ter parado, estava tudo cansado e desmoralizado, sabe-se lá até com que ideias... Sabíamos que do lado de fora do arame, o ataque estava bem organizado e como tal para sobreviver não havia que dar chances ou oportunidades.
Na manhã seguinte com a luz do dia só se via destruição. Poucos foram os que se aventuraram para fora dos abrigos. No entanto como era normal principiaram os boatos... o Jeep está destruído... o bar está acabado... ha dois mortos... há inúmeros feridos... na enfermaria só há sangue etc. etc.
Foi bombardeamento diário durante muitos dias. Era afinal S. Domingos. Era a razão pela qual a sede do Batalhão foi para lugar seguro. Foi assim o nosso pesadelo!
Durante os ataques e certas vezes podia-se ouvir o outro lado, sabiamos portanto que eles não estavam longe, e que afinal eram seres humanos como nós, só que defendiam a sua terra a qual não nos pertencia. Eles tinham razão. Nós éramos invasores, éramos seres humanos como eles, com pais e irmãos, alguns casados e com filhos. Ficámos esgotados e sem energia para sobreviver, água não havia a não ser a da chuva, comer não havia, e munições também estavam a esgotar rápido.
A lama acabou por secar e as pernas foram ficando presas como no cimento. As armas, muitas não trabalhavam de sujidade. Estávamos deitados ao abandono e à mercê da sorte ou do destino.
Não veio ajuda... nem do ar, nem por terra, nem tão pouco por água. Esperávamos somente ajuda, mas do Céu. Mais um dia e seríamos todos mortos ou prisioneiros tal foi essa semana maldita.
Os aviões não podiam vir, pois eles estavam tão perto, corriam o risco de ser também feridos ou mortos. Helicópteros não vinham mandar mantimentos, medicamentos e o necessário, pois seriam alvejados... estes foram os boatos!.
Finalmente ao fim de uma semana, fomos ajudados. Talvez tenha sido por Deus... Como ratos saímos das valas. A cara estava amarela, a barba enorme as roupas rasgadas, e havia lama por todo o lado e até ao cabelo.
O choque final foi saber quem ficou ferido, quem morreu etc.
Ficou tudo destruído. Gerador, frigoríficos, fogões até as panelas ficaram como um assador de castanhas! Água não havia. Passamos a beber água amarela dos "poços" da tabanca. Estávamos portanto sujeitos a malária etc.
Era uma Companhia desmoralizada, sem energia sem sono! Uns choravam com o stress de Guerra, outros não falavam, outros ficaram sem o sorriso da juventude.
Finalmente. um dia, um helicóptero!
Foi tudo reunido para ouvir o Governador da Guiné. Senhor Spínola, eu agradeço imenso e esteja onde estiver, esteja em paz, como em paz nos deixou! Agradeço as palavras, não de um General mas palavras de um amigo, palavras de reconhecimento. Agradeço ter compreendido estes jovens que foram deixados a mercê das armas e da sorte.
Senhor Spínola... muito e muito obrigado por ter dito a todos nós, em frente do Comandante da Companhia que... a culpa não foi nossa... que: "a culpa foi do vosso Comandante que deixou que o vosso quartel fosse uma carreira de tiro..."!
Resta-me portanto dizer que fomos bombardeados diariamente, que sofremos porque gente sem escrúpulos, sem dignidade, gente agarrada à
s ideias fascistas e de poder, orgulhosos de uma farda e de peso nos ombros famintos por medalhas ao peito, nunca pediu ajuda! Esse Comandante não teve dignidade humana...
Senhor Spínola, muito obrigado é verdade... aquele senhor desumano, realmente deixou fazer do nosso quartel uma carreira de tiro, onde todos nós fomos o alvo.
Bem-haja.
Plácido Teixeira (...)
(***) Último poste da série > 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10523: Memória dos lugares (192): Cufar (Mário Fitas, 1965/67; Eduardo Campos, 1972)
Senhor Spínola, muito obrigado é verdade... aquele senhor desumano, realmente deixou fazer do nosso quartel uma carreira de tiro, onde todos nós fomos o alvo.
Bem-haja.
Plácido Teixeira (...)
(***) Último poste da série > 13 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10523: Memória dos lugares (192): Cufar (Mário Fitas, 1965/67; Eduardo Campos, 1972)
3 comentários:
Nobre Camarada Bernardino Parreira,
O meu e-mail enviado para o Luis Graça, com cópia para ti, era, tão sòmente, para esclarecer que deveríamos ter lá estado em datas diferentes, como está bem claro no texto, no qual não há qualquer contestação a relatos seus ou quaisquer outros.
Quanto aos factos relatados por mim, reitero-os integralmente. Acrescentaria sòmente
a minha homenagem aos Ilustres Furriéis Artilheiros, dos quais lamentável e injustamente não lembro os nomes, que coordenaram com maestria o PelArt, durante a minha permanência.
cordiais saudações
Vasco Pires
Caro Camarada Vasco Pires,
O meu esclarecimento tem apenas como objectivo o situarmo-nos no tempo, pois também chego à conclusão de que estivemos em S. Domingos em datas diferentes, senão terias presenciado alguns episódios idênticos aos que relatei. A sede do Batalhão que chegou a estar em S. Domingos, teria mudado para Ingoré, julgo que em 1970, por razões de segurança, devido ao intensificar da guerra naquela zona fronteiriça. Quando lá cheguei em Maio de 1971 ainda apanhei dias mais ou menos calmos, que nos permitiam nas horas livres jogar à bola. Mas aos poucos o IN começou a atingir alvos que até aí nunca havia conseguido atingir. Até os helicópetros deixaram de aterrar em S. Domingos, inclusivé o que transportava o correio passou a atirar do ar o saco com a correspondência.
Como já disse, quando de lá saí, transferido para outro Quartel, em 1972 a situação estava a ferro e fogo com bombardeamentos diários tendo sido atingidas, ainda quando eu lá estava, o refeitório das praças, e outras instalações. Depois foi bombardeamento atrás de bombardeamento, atingindo quase todas as instalações e viaturas lá estacionadas, conforme documentam fotografias de camaradas que lá ficaram até ao final da comissão.
Um abraço.
Bernardino Parreira
Ilustre Camarada Bernardino Parreira,
Cordiais saudações.
Muito obrigado por seus esclarecimentos.
A minha permanência lá, foi no segundo trimestre de 72.
Já descrevi o cenário desse tempo em depoimentos anteriores, que confirmo integralmente.
forte abraço.
Vasco Pires
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