sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10872: Notas de leitura (443): "Diário da Guerra Colonial - Guiné 1966-1968", por Luís de Matos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2012:

Queridos amigos,
Foi graças ao nosso confrade Carlos Pedreño Ferreira que tive acesso a este diário escrito por um furriel miliciano da CCAÇ 1590.
É um documento que encerra uma nítida preocupação por ver e comentar, à cadência de uma grande saudade da namorada, dos familiares e da sua terra, Boa Nova, para os lados de Évora.
Serão meses à volta de Bissau e depois andanças que vão de Ingoré até ao Sedengal.
Somos tomados pelo seu tom despretensioso, desafectado, pela sua tentativa de compreender onde se situa aquela guerra para a qual ele não tem entendimento, aos poucos fica-se a perceber que aqueles guerrilheiros são contumazes, passeiam-se por toda a área e guerreiam prontamente quando detectados, por isso eles lhe merecem respeito.

Um abraço do
Mário


Diário da guerra colonial, por Luís de Matos

Beja Santos

Mais um diário da Guiné, em edição de autor, 2009. Começa por nos esclarecer que “Ao longo de mais de 20 meses e meio de permanência na Guiné, fui escrevendo uma espécie de diário em agendas, folhas de papel avulso, pacientemente num lenço de seda com cerca de 1 metro quadrado, com uma flor em cada canto e uma ao meio, estampadas, e quadrados brancos e verdes. Era nestes quadrados que tomava alguma das minhas notas”. Embarca em 3 de Agosto de 1966, é um furriel da CCAÇ 1590, pertencente ao BCAÇ 1894. Em 7 de Agosto, o “Ana Mafalda” fundeou no Porto Grande na Ilha de S. Vivente. Chega a Bissau a 11 de Agosto, a sua companhia fica instalada na Amura. A 14, o diário entra em atividade: “Hoje já escrevi uma carta à minha namorada. Ontem também escrevi outra. Escrevendo, sempre ficamos mais perto de quem gostamos muito”. Experimenta a vida noturna de Bissau e acorda na ressaca. É um alentejano que preza a diversão e as coisas da mesa, como escreve a 20 de Agosto: “Hoje estou livre que nem um passarinho. Não tenho nada para fazer a não ser comer umas ostras e beber um vinho verde ou umas cervejas”. A 26 a companhia parte para Mansoa, chegou a hora do treino operacional, vai detalhando com regularidade as saídas, aonde se realizam as patrulhas, as primeiras participações em operações. Em 15 de Setembro, vai numa escolta de reabastecimento até Mansabá e depois a Bissorã. A 20 de Setembro, os acontecimentos precipitam-se, o seu grupo de combate foi destacada para a segurança ao aquartelamento em Bissorã, partem em coluna para ir buscar lenha, vai apeado e conversa com o soldado condutor Matos: “Ó meu furriel, sente-se aqui ao meu lado, sempre vai um bocadinho mais descansado”. Ele responde: “Não. Eu nunca largo os meus homens. Sabe, nem me sentia bem eu ir aí montado e os moços a pé. Mas olhe, você é que pode ir andando, e quando chegar ao cruzamento, o meu amigo espera por nós, e uma vez que já picámos estrada é só andar rapidamente para o hotel”. O condutor adiantou-se não mais de 50 metros. Nisto, rebenta uma emboscada. Morreu o soldado condutor Matos, um primeiro-cabo apontador de metralhadora ficou gravemente ferido. É necessário remover os feridos, a emoção aflora: “Numa situação como esta, a gente vai buscar forças nem que se nas estrelas ou no fim do mundo. Com lágrimas de revolta, mãos sujas de sangue daqueles pobres rapazes, começámos a recolher o que foi possível do resto do corpo do infeliz condutor para juntarmos ao que restava no assento da viatura, ainda a fumegar”. Não conseguiu dormir e versejou.

Nos dias seguintes, continua a falar da morte do soldado Manuel Matos Almeida, natural de Vila Maior, S. Pedro do Sul, pertencia à CCAÇ 1419. Nos dias seguintes anda por Mansoa e presta serviço no quartel da Amura. Os seus registos decorrem num tom de acalmia mesmo com idas ao Olossato e a Farim. Nesta localidade, em 25 de Outubro, ele observa: “Fomos jantar batatas com bacalhau, regadas com uma pinga para nos anestesiar das picadas dos mosquitos. E então os nossos soldados, todos oriundos do norte, habituados aos trabalhos das vinhas, onde o garrafão está sempre à mão, não se faziam esquisitos”. Em 20 de Novembro, deixa-nos uma nota de embevecimento pelo trabalho de um artista: “Aqui na Amura está instalada a CCS do meu batalhão, a ele pertence o furriel miliciano Eduardo Magalhães e Silva, que é de Lisboa. É um moço franzino, de baixa estatura, cabelo preto, ligeiramente ondulado e penteado para trás, de boas falas e correto nos atos que pratica. O moço é um artista. Admiro o seu trabalho e dou-lhe muita atenção. Gosto de o ver pintar. Sentamo-nos cá fora, próximo dos nossos quartos, e aí o Magalhães que trouxe a paleta, papel, tintas e pincéis de Lisboa, rapidamente pinta três aguarelas lindas. Disse-lhe que as guardarei para sempre e um dia as terei em lugar de relevo em minha casa”.

Chegou a hora da partida para o Ingoré. Em 29 de Novembro, refere-se aos seus homens: “Quando falo com os homens da minha secção, que são 10 e da minha idade, rapazes altamente voluntariosos, prontos a dar tudo por tudo, tento sempre incutir-lhe algum ânimo, coragem, disciplina e respeito pelo próximo”. Continua profundamente observador: “Fiquei a saber que à saída de Ingoré para o Sedengal, do lado direito, há um comerciante branco chamado Ferreira da Silva, que compra e vende de tudo. Vive com a mulher e tem duas filhas a estudar em Lisboa. Tem por hábito sentar-se num cadeirão de bambu, no alpendre da residência, junto à loja, com os pés dentro de uma bacia com água e um preto sentado num banco à sua frente, a lavar-lhe os pés. Hoje tive a oportunidade de lhe confirmar isso mesmo”. Vão começar as andanças à volta de Ingoré. Em 16 de Dezembro, o comandante da companhia informa-os que tinha recebido cartas de vários colégios de Lisboa a incentivar os militares a passarem o Natal feliz e quem respondesse em quadras habilitava-se a um prémio no valor de 100 escudos. Luís de Matos irá ganhar esse prémio. As operações, as picagens, os patrulhamentos, sucedem-se. Envia cartas muito ternas à namorada. Em 28 de Janeiro, o diário é farto, é a descrição de uma batida e assalto à base de Sano, situada dos dois lados da fronteira. À entrada do acampamento o guia foi atingido com um tiro numa das pernas, travou-se um intenso tiroteio, passa-se a fronteira, na perseguição dos guerrilheiros: “No rescaldo da operação, apreendemos uma metralhadora, várias granadas de mão, cunhetes de munições, relógios de despertador e outro material, nomeadamente caixas de injeções de fabrico russo e chinês. Vou guardar uma carteira de injeções como recordação. Enquanto fazíamos uma pequena pausa, surgiu inesperadamente da mata um elemento inimigo armado de catana. Vinha direito a mim. Valeu-me o soldado Gomes, da minha secção, que estava atento e agiu com grande rapidez, foi a catana daquele guerrilheiro que ofereci ao capitão”. É informado de uma emboscada na estrada de S. Domingos/Suzana, onde morreu um furriel miliciano sapador, Dinis Viegas, que ele considerava um dos seus melhores amigos. Luís de Matos cobiçava a Canon de Dinis. E comenta: “Quando a notícia da sua morte chegou ao Ingoré, recebi-a com muita tristeza, consternação e lágrimas”. O diário do dia 2 de Fevereiro será reservado à exaltação desta amizade.

O mês de Fevereiro não dá tréguas: pela estrada de Barro até ao cruzamento de Canja e daqui a Uanquili e Maca; o destacamento de Sedengal é flagelado; patrulhamento das regiões de Carabane Balanta, Corombol e Santa Maria; patrulhamento ofensivo até Canchungo, junto à fronteira do Senegal; operação à base de Surance, a meio caminho entre Ingoré e Barro; batida à área de Sinchã Mamadu, Saiancototo, perto de Bigene. Em Março, vai a caminho de S. Domingos, pernoitam no destacamento do Cacheu. Escreve: “Assisti a um interrogatório feito pela PIDE a elementos inimigos. Tanta brutalidade feita a um ser humano, meu Deus. Sai daquela sala com vontade de vomitar e todo suado”. Descreve S. Domingos: “Ao fundo o cais, e ao cimo, à saída, a estrada para Ziguinchor. Na rua principal, à direita, fica a casa do administrador e do lado esquerdo o edifício dos correios. O quartel fica do lado esquerdo junto à mata e a pista de aviação". Seguem para Sonco, uma antiga tabanca abandonada, ali não existe nada, apenas uns buracos escavados que poderão servir de abrigos. A seguir vão fazer patrulhas entre S. Domingos e a fronteira do Senegal. O Sonco torna-se rotina, ele descreve o inferno. Nos intervalos, anda à procura de petiscos e diverte-se com os camaradas no Rio Grande S. Domingos.

“Lenço de seda com cerca de um metro quadrado, com uma flor em cada canto e uma ao meio “estampadas” e quadrados brancos e verdes. Era nestes quadrados que tomava alguma das minhas notas”

(Continua)
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 24 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10857: Notas de leitura (442): Três estudos sobre a Guiné Portuguesa: A população de Cacine, a cestaria e o totemismo (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Bispo1419 disse...

Complementando a referência à emboscada que matou o sold. cond. Matos da CCaç.1419, quero dizer o seguinte:

O "1º cabo apontador da metralhadora (que) ficou gravemente ferido" era o Joaquim Lencastre Santos Silva, Cruz de Guerra 3ª classe, camarada que muito prezo e que vou encontrando anualmente nos convívios da CCaç.1419.

A viatura conduzida pelo sold. António Matos, atingida pelo rocket que matou o seu condutor, era a "Paulucha", já referenciada algumas vezes neste blogue.
A "Paulucha" era um Unimog transformado numa "espécie" de auto-metralhadora, trabalho este feito pelo nosso estimado tabanqueiro e "engenhocas" Rogério Cardoso e a sua equipa de manutenção-auto (CArt. 643).
Ver imagens nos P10571 (Juvenal Amado) e P5509 (Rogério Cardoso/Carlos Brito).
O Rogério deu-lhe o nome de Paulucha em homenagem a uma sua filha.

Herdada pela CCaç.1419, esta usava a "Paulucha" em reforço da segurança nas acções realizadas próximo do aquartelamento para as quais o pessoal mobilizado era reduzido, no máximo um pelotão. E foi o que aconteceu neste caso da ida à lenha, trabalho até então considerado pouco perigoso e para o qual foi enviado um pelotão recém-chegado a Bissorã (há dois dias) e com um mês de Guiné. A ironia do caso está nas vítimas, dois homens "experientes" com quase um ano na zona e não os "inexperientes" com alguns dias de "guerra".

Votos de um bom ano de 2013 para todos os membros e outros visitantes deste blogue
Manuel Joaquim