sábado, 2 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11044: Do Ninho D'Águia até África (49): Eram guerreiros (Tony Borié)

1. Quadragésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2013:


DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (49)




Já não eram militares, eram GUERREIROS. Tinham a pele do seu corpo queimada do sol quente e húmido do Equador, alguns tinham cicatrizes e outras marcas no corpo, manuseavam a G3, com uma habilidade tal que dificilmente erravam o alvo, já não choravam e gritavam uns com os outros para afugentar o medo, alguns diziam que já não tinham lágrimas. Tinham barba e cabelo crescido, grandes bigodes que os faziam mais velhos mas, por baixo, tinham cara de adolescentes, já sabiam matar quando, num momento de aflição, debaixo de uma emboscada, mantinham a calma e um certo sangue frio, cerravam os dentes, premiam o gatilho, ou tiravam a cavilha a uma granada com precisão. Ouvir tiros ou rebentamentos de granadas era um som já familiarizado, eram feras com faro apurado, conheciam o cheiro da aproximação do perigo, ver sangue quente, a sair do corpo de um companheiro, que tinha sido atingido, fazia parte do seu dia a dia, durante uma patrulha, os seus olhos estavam sempre numa direcção, um pouco acima do capim ou outra vegetação, e sabiam detectar qualquer movimento suspeito, eram profissionais de combate.

Esta era a análise que o Cifra fazia do grupo de combate do Furriel Miliciano que andava sempre com um cigarro, feito à mão, na boca e de onde entre outros, faziam parte o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Marafado e o Mister Hóstia. O Cifra, chamava-lhes, Os guerreiros da tribo do furriel. Iam para as matas e bolanhas, com o seu camuflado, já coçado, alguns com as mangas cortadas, levavam sempre um “lenço tabaqueiro”, que compravam na loja do Libanês, pendurado no cinto, diziam que era para lhe dar sorte, onde também ia o máximo de carregadores possível assim como uma granada, às vezes duas, que lhes eram distribuídas antes de saírem, alguns também levavam uma faca bastante afiada, com uma protecção de cabedal, colocavam os restos das meias, que lhes saíam das botas, algumas rotas, por fora das pernas das calças, e às vezes amarravam um fio ou uma tira de pano, que normalmente era feito de uns restos de uma camisa, pois aproveitavam-se todos os trapos da farda, logo a seguir às botas, para que as calças assim ajustadas protegessem a pele das pernas, o cantil também à cinta, e sempre que passavam por uma bolanha ou rio, enchiam de novo, à superfície, com gentileza, para entrar água, com poucos insectos, ou germes, a sua amada G3, sempre apontada para o chão, com bala na câmara, pronta a disparar,  ia debaixo do braço, junto ao seu corpo.
De vez em quando apalpavam-na, para se certificarem que a levavam, alguns levavam por fora, amarrada, uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, e por dentro, entre o forro do capacete, ia o maço de cigarros e o isqueiro, às vezes embrulhado num farrapo, nos bolsos do casaco e das calças ia normalmente, um canivete, algumas munições avulso, alguma comida, que podia ser um pouco de chouriço de conserva, ou qualquer outra porção de comida sólida, que tinham trazido do refeitório, da refeição anterior, embrulhado num bocado de folha de bananeira e depois num farrapo, o naco de pão que ia nos bolsos, se não fosse rijo, era comido quase à saída do aquartelamento, pois com o andar e com os movimentos do corpo, desfazia-se em migalhas, e a ração de combate, que eles veteranos, não gostavam muito, pois era feita à base de dieta americana, e o Arroz com Pão, também veterano, sempre lhes arranjava algo para irem entretendo o estômago, que não fosse ração de combate, que alguns diziam lhe dava a volta aos intestinos, e que na linguagem local era, “panga bariga”.


Normalmente, antes de saírem, entregavam alguns bens ao Cifra, como dinheiro e outros objectos, com algumas recomendações em caso de acidente, bens esses que o Cifra guardava no centro cripto. Eram GUERREIROS, já não eram militares, eram homens de combate, tinham os seus regulamentos internos, às vezes tinham pequenas zangas no dormitório, como por exemplo, quando chamavam o Trinta e Seis, que era baixo e forte na estatura, parecia de facto uma “bola”, passe o termo, diziam:
- Trinta e Seis, rola para aqui! Ou, o Trinta e Seis, não caminha, rola!.

Claro, ele não se calava, e respondia, com a mão nos seus orgãos genitais:
- Para aqui, queres tu dizer!.

E vinha logo o Curvas, alto e refilão em sua defesa, os ânimos exaltavam-se, e havia uma barafunda, com alguns a acalmarem outros, mas quando saíam para o interior das matas, em patrulha ou para desactivarem alguma base de guerrilheiros, eram amigos e solidários, protegiam-se davam a vida uns pelos outros, eram irmãos de sangue.

Havia uns mais valentes do que outros, neste grupo, o Furriel Miliciano e o Curvas, alto e refilão sobressaíam dos demais, e até contavam uma história, que o Cifra nunca soube se era verdade, ou se alguém tinha visto em algum filme do John Wayne, que foi passada numa ocasião em que se encontravam numa normal patrulha, e verificando que vinha um grupo de guerrilheiros em fila indiana, o Furriel Miliciano e o Curvas, alto e refilão, já experientes, com a calma própria de um guerreiro experimentado, apontam a G3, disparam e depois dizem um ao outro:
- O meu chegou ao chão mais depressa!

E o outro responde:
- O meu, era mais alto!

Coisas de combatentes que já não eram militares, mas sim GUERREIROS, homens de combate, com cara de adolescentes, que já sabiam matar, por baixo de grandes bigodes, cabelo e barba também grandes que os tornavam mais velhos.

Como o Cifra dizia antes, tinham os seus regulamentos, e como o comando a que o Cifra pertencia, às vezes os mantinha “encurralados”, passe o termo, no aquartelamento, como eram GUERREIROS, sentiam a falta de combate, do som dos tiros, e o comando tirava vantagem dessa situação, “soltando-os”, também passe o termo, para irem em patrulha para as zonas mais remotas e perigosas, mas eles já veteranos, se lhe davam ordens para irem encostados à zona norte, eles iam encostados à zona sul, portando evitavam o contacto, e assim possíveis confrontos com guerrilheiros, protegiam-se, a sobrevivência já era muito importante para eles, eram veteranos na guerra, e alguns diziam ao Cifra:
- Da próxima vez que sair em patrulha, quero levar o teu comandante, e o resto desses majores das operações especiais comigo, para eles verem as zonas para onde nos mandaram. Filhos da p..., eu tenho família em Portugal, e quero vê-la de novo!
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 29 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11022: Do Ninho D'Águia até África (48): Guiné... Minho e... Algarve (Tony Borié)

2 comentários:

JD disse...

Olá Tony,
Hoje romanceaste um bocado. Aquela cena dos dois surpreenderem com dois tiros certeiros um grupo do IN, deixando supor que o resto do IN deu às de vila Diogo, e que o restante pelotão ficou na plateia a assistir, parece ficção.
Mas admito que numa situação dessas os dois se tivessem destacado para uma acção surpresa, e para uma rápida retirada, que de outro modo poderia comprometer-se.
Quanto à descrição de comportamentos entre o pessoal, as fisionomias retocadas de bigodes e barbas atrasadas que "faziam" envelhecer, as crenças protectoras, desde as santinhas, até certos fetiches, está em conformidade.
Um abraço
JD

Luis Faria disse...

Caro Tony Borié

Como de outros,gostei deste pedaço de"Ninho D'Aguia...",em que exaltas um GRCOMB pelo seu profissionalismo e competencia,enquadrados na amizade dos seus elementos.
A par, retratas muita da realidade do comportamento no dia-a-dia da Rapaziada que por lá passou.
Já agora digo-te eu gostava das rações de combate!!Julgo que eram Sul-Africanas,bem boas!

Abraço
Luis Faria