sábado, 16 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)

1. Quinquagésimo oitavo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




Estava a ser difícil, mesmo muito difícil, quase penoso, o Cifra tinha momentos de completo descontrolo, não sabia quem era, nem onde estava, nada lhe importava, não tirava o cigarro da boca, acendia uns aos outros, a sua companheira de quase todos os momentos, que era a tal garrafita da coca-cola, cheia de tudo, menos coca-cola, essa, andava sempre consigo, tinha um aspecto um pouco desleixado, mas quando chegava o momento de entrar de serviço e executar as suas tarefas, apresentava-se limpo, usando a camisa comunitária, que era a que sempre estava pendurada no centro cripto, e que todos usavam para ir entregar as mensagens no comando, especialmente quando havia contacto com o comandante.


Quando estava de serviço, executava as suas tarefas com toda a precisão, fazia-lhe bem, pois andava ocupado, mas quando fora delas, tinha um problema na sua mente, era uma espécie de triângulo, era uma “tripeça”, como a que havia na casa de sua avó materna, já velha e com uma perna quase a partir, ele, também tinha uma “tripeça” na sua mente, e a velha “tripeça”, também tinha uma, ou mesmo duas pernas a partir, pois neste momento tinha três famílias, eram três queridas famílias.


A primeira família eram as pessoas amigas que viviam na tabanca com casas cobertas de colmo, um pouco ao norte do aquartelamento, onde passava quase todos os dias, que, debaixo da maior miséria que um ser humano pode viver, palhotas com chão térreo, com uma simples panela, que às vezes nem era panela, era uma lata de qualquer coisa, dormiam em cima de um lastro feito de ervas secas, coberto com um simples pano, o pouco com que se alimentavam, repartiam com os animais, que também famintos e cobertos de insectos, com o rabo entre as pernas, procuravam aproximar-se deles, e essas pessoas, vivendo miseravelmente, davam tudo ao Cifra, tudo que era possível dar, sem nunca pedirem nada em troca, sempre com um sorriso, olhando o Cifra nos olhos, sinceras e humildes, com uma maneira própria, que o Cifra, nunca tinha visto em toda a sua vida, e agora estava quase a abandoná-los, e com toda a certeza para sempre. Só de pensar ficava com lágrimas, que limpava nas costas das mãos, dizendo às vezes baixinho, só para si:
- Desejava ansiosamente o dia do meu regresso e agora quero ficar aqui para sempre.

A segunda família eram os seus companheiros, em especial o seu grupo com quem conviveu dois anos, o Curvas, alto e refilão, o Marafado, o Trinta e Seis, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Furriel Miliciano, conheciam-se como tivessem vivido toda a vida juntos, sabiam os costumes uns dos outros, zangavam-se e estavam amigos, bebiam, fumavam, roubavam pão, vinho e álcool, quando um tinha fartura de alguma coisa, todos tinham fartura e quando não havia para um, também ninguém tinha nada, era uma família com todos aqueles problemas, que ficavam resolvidos quando se deitavam, quase sempre sobre influência, pois no dia seguinte ninguém sabia se estava vivo.

E a terceira família era a que o esperava em Portugal, que lhe mandava os aerogramas e as cartas, algumas com fotos, essa família andava sempre junto de si, no seu pensamento. Ficava por momentos a imaginar como seriam as suas caras quando os visse de novo, alguns aparentavam ser mais velhos, outros talvez não, alguns tinham nascido depois de vir embora, outros já não estavam vivos, enfim iria ser com toda a certeza uma grande surpresa, mas uma agradável surpresa, mas estas três famílias traziam a mente do Cifra confusa e um pouco angustiada.


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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 12 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11243: Do Ninho D'Águia até África (57): Andava desesperado (Tony Borié)

1 comentário:

JD disse...

Viva Tony!
Não foi grande a revelação desta vez, mas corresponde à experiência de muitos de nós. Curioso, mesmo, é a relevância que dás à família guineense, e às saudades antecipadas desses que te "acolheram".
Um abraço
JD