1. Em mensagem de 24 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o oitavo episódio da sua série Fragmentos de Memórias.
FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS - 8
1 - MEADOS DE JULHO DE 1966
Se houve quem nasceu com o dito virado prá lua, eu fui um desses.
Do horror ao paraíso, foi um ápice.
Pois, agora por Bissau fiquei, cheio de imerecidas mordomias, com muitos afazeres... mas até ao cinema ia... vejam bem! E ao futebol pois então!
Lá na minha repartição, comecei a perceber muitas coisas, procurei alterar as que me pareciam menos bem e foi assim que elaborei um estudo que deu em relatório, onde propunha que os familiares de vítimas de acidentes não tivessem de pagar para que sepultassem os seus na Metrópole.
O Senhor General Arnaldo Schulz foi sensível à questão e resolveu-a de imediato, concordando connosco.
Para essas situações era assim que funcionava, contrariamente ao que acontecia com os vitimados em combate, ou resultantes disso.
Recentemente muito se falou dos casos em que houve camaradas que tiveram de ser sepultados lá mesmo.
Há contudo que analisar e pelo que me passou pela mão deixem-me que elucide:
- Em mensagem a dar conhecimento para Lisboa, do falecimento, e consequente informação às famílias, também se pedia o seu acordo para aceitar a trasladação sem custos.
Por muito estranho que possa agora parecer e que na altura para mim, representou uma verdadeira dor de cabeça, houve, poucos... diria um ou dois por cento, em que ou a família recusava ou nem família se conhecia.
Assim ali ficavam, no talhão próprio em Bissau, mas sempre com as honras militares prestadas, e quando possível com acompanhamento também de camaradas das Companhias de que tinham feito parte.
Esclareço contudo, que também não concordo que por ali estejam hoje ainda muitos dos nosso camaradas sem uma flor, sem uma furtiva lágrima em Novembro pelo menos.
O próprio País poderia ter criado um local qualquer em Lisboa e que poderíamos venerar como quando visitamos o monumento junto à Torre de Belém.
Na verdade nem tudo está perfeito e que se recupere, assim hajam vontades.
Depois?
Bem depois, fui-me adaptando e integrando naquele doce bem-estar mas sem perder de vista o que se passava lá pelo meu K3 e recebendo a rapaziada que por motivos de saúde ou em férias vinham até à capital.
Junto dos órgãos competentes fui conseguindo algumas poucas atenções, particularmente no que se refere ao fornecimento de géneros alimentícios de que a Companhia tanto necessitava.
************
2 - O FUTEBOL MOVE MONTANHAS
Mas nem tudo foram tristezas.
Certo dia 23/7 apareceram dois gigantes que nos deram uma grande alegria apesar de terem provocado o caos, com "bazookas" partidas por tudo o que era estrada ou caminho. É que estivemos a perder por 3 a 0, mas na 2.ª parte tudo mudou com as 4 batatas do rei Eusébio e mais uma do Zé Augusto.
Pode parecer estranho, mas foi como que recuperássemos novo alento. E ver também os autóctones contentes, foi demais.
Primeiro bebeu-se para afogar o desalento da 1.ª parte... depois rebebeu-se... rebebeu-se... lindo mesmo, bem como lindo foi ver aquela desordem toda.
A PM bem tentou evitar o reboliço provocado nas ruas, dada a euforia qu'os 5 a 3 originaram, mas desistiu pressionada pelos Fuzileiros que mais contidamente lá iam resolvendo a coisa.
Tal como hoje, a paixão do futebol movia montanhas... fazia esquecer o sofrimento.
************
3 - O NATAL DE 1966 PASSADO EM FAMÍLIA
Aproximava-se o Natal que poderia festejar como pertence e passou-me pela cabeça que o deveria fazer ali em Bissau com a família, ou melhor, com a minha mulher e a minha filha de 3 anitos.
Considerando a boa estrela que me acompanhava fui fazendo démarches pr'áqui e pr'áli, e na verdade em Outubro chegam as autorizações para a viagem em avião militar.
Arrendei casa, preparei-a nos conformes e em meados de Novembro aí estão para uma estadia que durou mês e meio ou seja permaneceram comigo até 28 de Dezembro.
Aí vai uma foto da chegada e outra tirada no dia de Natal de 1966, esta junto ao cais.
Reparem bem na minha felicidade.
E ENTÃO? Nasci ou não com o dito virado prá lua?
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12487: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (7): A minha ida para Bissau
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Amigo Veríssimo este foi de certeza o melhor mês "fora as borras como dizem lá para as nossas terras" da tua vida, certo.
Um abraço e até um próximo almoço na tabanca da linha,esperamos que o comandante Rosales recupere.
Colaço.
Caro camarada Veríssimo Ferreira
Ora bem, aqui está, agora, 'um homem feliz'....
Dizes que achas que nasceste com o 'dito cujo' virado para a lua... muito bem, se o dizes, quem sou eu para te desdizer!
E acho que tens razão!
Vejamos:
Depois do K3, Bissau.
Papelada a tratar, cuidar do cemitério, reconhecer e 'despachar' os mortos... tudo 'coisas fáceis'....
Não sei, não!
Pelo que tenho lido (e também pelo que já conversámos, de viva voz e através de mails), foi necessária uma boa dose de força de vontade e também de praticares 'tratamento especial adequado' para conseguires lidar com essas coisas, sem aquilo que hoje existe e que é constantemente referido na comunicação social a pretexto de quase tudo e que é o "acompanhamento psicológico".
Tanto quanto me tenho apercebido ainda hoje 'praticas' a terapêutica do "Famous Grouse", sem bem que agora na versão "avô". Em 'equipa que vence...'
Gostei de tomar conhecimento das tuas diligências e foi bom saber essa questão do 'repatriamento' sem custos para os 'acidentados'. E a tua sugestão para a criação dum local único para a deposição dos corpos dos 'outros' também não é de descartar. Não há é 'verba'....
Quanto ao futebol e ao momento dos 5-3 do Mundial de 66, deixa-me que te diga que também o vivi com intensidade.
Para cada golo de Portugal 'marchavam' dois cálices de porto, de modo que no final, só a beber, sem comer, já estava também bastante 'eufórico'.
E como ainda estava longe de passar de 'mancebo' a 'recruta' também te digo que nessa altura não pensava nem sonhava que iria também 'ver cinema em Bissau'....
Agora, a parte melhor.
O Natal de 66 passado em família, em Bissau.
Já tive oportunidade de comentar uma foto que vi no "Face" e sobre ela questionar se o 'pimpolho' que lá aparece e que neste 'post' está ao colo, a jovem Tila, se teria lembranças desse tempo.
Na realidade, terá sido um tanto 'estranho', à partida, para os restantes familiares, entender como é que uma jovem mãe e sua filhota de 3 anos, ia para uma zona de clima difícil, em ambiente hostil.
Certamente teriam pensado que eram 'maluqueiras' do marido e pai, que já estaria 'apanhado do clima', mas lá teria que se fazer a vontade....
Ora bem, meu amigo, acho que fizeste bem.
Proporcionaste uma experiência única, irrepetível, e que muito deve ter contribuído para teres um melhor 'final de comissão'.
Sei que a Tila não tem grandes recordações desses dias a não ser alguns cheiros e cores mas já é alguma coisa.
Abraços
Hélder S.
Enviar um comentário