1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2013:
Queridos amigos,
Após a investigação marcadamente inovadora que José Manuel Braga Dias faz na sua tese de dissertação de licenciatura às atitudes e comportamentos dos guineenses perante o fenómeno da subversão e da luta armada, mostra-se igualmente importante o registo que faz aos Congressos do Povo da Guiné, à emergência da nova força militar africana, bem como a caraterização que faz à sociedade guineense tanto em meio urbano como rural.
O autor terá gozado de um acesso privilegiado a meios de informação, respigou comunicações de grande utilidade nas entrevistas, e também por meio de consultas de personalidades sobretudo no campo da administração civil, que lhe permitiram registar impressões e dados que não se encontram noutros documentos da época. Parece, aliás, surpreendente que este trabalho sobre a mudança sociocultural na Guiné Portuguesa não tenha sido objeto de qualquer referência na historiografia mais competente.
Mistérios!
Um abraço do
Mário
Mudança sociocultural na Guiné Portuguesa (3)
Beja Santos
Trata-se de uma tese de licenciatura apresentada no ISCPU com o título “Mudança Sociocultural na Guiné Portuguesa”, e o seu autor é José Manuel Braga Dias. Em jeito de síntese, procurou-se destacar o que o autor escreveu sobre a estrutura sociocultural da Guiné anterior à eclosão do terrorismo e, aspeto verdadeiramente inovador, o que ele escreve sobre as atitudes e comportamentos das etnias guineenses diante da subversão. Oferece-nos um quadro riquíssimo de dados que permitem, inequivocamente, perceber adesões a um lado e a outro, como o PAIGC se aproveitou de tensões étnicas, como os chefes políticos vencidos se refugiaram no PAIGC, como se cometeram erros de palmatória em nomeações pela administração portuguesa, disseca região por região, e, por exemplo, fica-se a perceber o que se passou no regulado do Forreá em que os chefes políticos se refugiram na República da Guiné e não tivessem sido os dignatários religiosos e islâmicos a tomar uma posição de resistência à subversão, a presença portuguesa ficaria ainda mais comprometida do que ficou depois dos acontecimentos de 1963.
No regulado de Fulacunda, a posição dos chefes políticos tradicionais, de uma maneira geral, foi de aceitação e colaboração com o PAIGC. Tratava-se de um território de grandes tensões étnicas, os chefes tradicionais dividiram-se, o PAIGC soube captar a adesão dos chefes tradicionais que viram no movimento subversivo um meio de reconquistar o seu anterior prestígio perdido frente aos Fulas. Analisando o concelho de Catió, fica-se a perceber o que se passou nos regulados de Cantanhez, de Guileje e Cabedu; em Cacine, escreve o autor, a população viu no movimento subversivo um meio de consumar vinganças na população Fula, e em Gadamael as tensões étnicas existentes entre Fulas e Beafadas constituíram fatores de adesão de alguns elementos da população ao movimento subversivo.
Mas a dissertação de licenciatura de Braga Dias não é só muito importante no trabalho de entrevistas e seguramente de documentação restrita a que ele teve acesso junto do Comando-Chefe, quanto às atitudes e comportamentos da população face à subversão. Ele procede a uma análise detalhada aos reordenamentos, aos congressos do povo da Guiné e ao nascimento da classe militar autóctone (comandos, caçadores africanos e fuzileiros). Spínola apostara nos reordenamentos como uma resposta lapidar à subversão, os reordenamentos acabariam com a insegurança entre as populações e criariam um novo estilo de vida já distante da sociedade tradicional de onde a generalidade das populações provinha. É também minucioso, explica ao pormenor os três tipos de casa dos novos aldeamentos e a lógica subjacente, procede a um levantamento das queixas dos povos que se sentiram lesados por viver em reordenamentos. Acresce que a habitação difere de etnia para etnia, há diferenças no tipo de povoamento, a casa dos povos do litoral apareciam em povoamento disperso, aqui de um modo geral, o reordenamento não suscitou problemas. Porém as pequenas povoações dispersas ao longo dos campos de cultura viram no reordenamento uma perda de acessibilidade às bolanhas e uma desintegração da estrutura social e cultural onde viviam.
O autor faz um levantamento de todas estas dificuldades, etnia por etnia, povos do litoral dos povos do interior e elenca os cuidados que devem ser ponderados antes da aprovação de um reordenamento, não esquecendo o regime jurídico tradicional da propriedade imobiliária e dá exemplos concretos. Lembra também que as casas dos reordenamentos tinham sido inicialmente concebidas em função da família nuclear do tipo europeu e não dirigida à família extensa africana. Descreve minuciosamente o reordenamento em si, o celeiro, a escola, o posto sanitário, o bebedouro e o fontenário e expende considerações sobre os reordenamentos como centros difusores da cultura portuguesa. E cintando Spínola, conclui: “As populações reagem diferentemente às exigências do reordenamento, consoante o grau de apego que têm ao chão onde nasceram e outros fatores variáveis de natureza local”.
Os Congressos do Povo da Guiné foram a nova resposta encontrada por Spínola para a luta contra a subversão desencadeada pelo PAIGC. Os congressos eram a exibição pública de uma nova política governamental alicerçada nas elites tradicionais e definida em cinco grandes princípios – “justiça social, respeito pelas instituições, fomento económico e social, participação na administração pública e segurança interna”. O número total dos congressistas aproximava-se dos 500, eram “cimeiras” de assembleias separadas consoante o grau de afinidade étnica e cultural. Sobretudo o segundo congresso obrigou o PAIGC a mudar de agulha, não era fácil encontrar resposta para este tipo de assembleias onde estavam presentes sobretudo representantes das populações integradas nas culturas tradicionais. O governo prometia basear toda a sua política social e económica nas elites tradicionais, as promessas seriam testadas no congresso seguinte. É no contexto destes congressos que Spínola se compromete a fazer a “africanização dos quadros”. Em substância, a organização destes congressos saldaram-se no renascimento do sentimento étnico, a revitalização de estruturas tradicionais, emergiram mesmo movimentos políticos como a Liga Popular dos Guinéus e o Bloco dos Fulas Nativos, a liga era um movimento racista que pretendia a execução imediata da “africanização dos quadros” e o bloco englobava os Fulas-Pretos e que tinha como objetivo afastar dos postos de chefia os Futa-Fulas e os Fulas-Forros.
A força militar africana apresentava-se como relevante na constituição da nova sociedade guineense. Os militares auferiam vencimentos não despiciendos, gozavam de prestígio, estruturava-se em moldes militares importados de Portugal europeu. Este conceito de força africana abrangia militares das tropas regulares, militares enquadrados na guarnição normal da província, milícias e elementos da população em autodefesa. Recorde-se que a africanização começara logo nos primeiros anos da luta armada, com a constituição de milícias, a preparação de populações em autodefesa e a criação de pelotões de caçadores nativos. Depois surgiram as companhias de caçadores nativos que traziam uma ideia nova, o critério étnico, as companhias localizavam-se no seu “chão”. As companhias de comandos africanas não tinham critério étnico mas o de bravura ou valentia comprovada. A força africana trazia orgulho: a farda passava a ser um sinal de promoção social entre a juventude, os desfiles militares eram sedutores para a juventude, havia depois o acesso ao ensino, saúde e assistência, benefícios que nunca são de enjeitar, e depois este serviço militar aparecia também como atividade profissional contra o desemprego. O autor previa que a chamada “africanização dos quadros militares da Guiné” tenderia à substituição normal e gradual de uma cultura dita autóctone por uma cultura portuguesa.
Caminhando para o seu termo, a dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias aborda ainda a situação atual (ao tempo) da nova sociedade guineense, analisa o prestígio da elite tradicional islamizada, os centros urbanos como meio de acesso à sociedade moderna e os choques decorrentes entre o tradicional e a aculturação proporcionada pelo meio urbano onde são dominantes as forças modernas, refere ainda o imperativo de se encontrar uma forma de urbanização que acolha, com condições decentes de vida, a chegada do fluxo migratório sobretudo dos fugitivos da guerra.
Entre os muitos dados curiosos da tese, Braga Dias observa o seguinte: “Os indivíduos de origem cabo-verdiana apercebem-se que os lugares que até então era quase da sua exclusividade, começam a ser invadidos por guineenses, reagem procurando um isolamento perante os outros indivíduos de origem europeia ou guineense. Hoje, os cabo-verdianos residentes em Bissau tornaram-se uma comunidade fechada só admitindo relações com outros indivíduos de origem étnica diferente quando os unem estreitos laços familiares”.
O autor considera que o seu trabalho irá permitir uma melhor compreensão das mudanças sociais operadas na sociedade guineense, depois da subversão e da luta armada e da reação do governador Spínola após as medidas que envolveram reordenamentos, Congressos do Povo da Guiné, a constituição da Nova Força Africana e o clima de desenvolvimento económico a despeito dos focos de luta armada.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12592: Notas de leitura (553): "Mudança Sócio-Cultural na Guiné Portuguesa", dissertação de licenciatura de José Manuel Braga Dias (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Era interessante se BS nos dissesse se souber, se José Manuel Braga Dias viveu em África apenas aqueles meses de Alferes Miliciano, habituais.
É que deslindar aquela complicação étnica é de quem viveu de algum modo, a tarefa por dentro.
Só faltou mencionar o papel de três "etnias" e aí é que esteve o busílis:
A etnia cubana, a soviética e a católica.
A luta anti-subversiva deu muito resultado em Angola, mas lá havia muitos falantes de línguas étnicas, "conversava-se".
Na Guiné, "intrigava-se", ainda hoje assim é.
Enviar um comentário