segunda-feira, 28 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13057: Notas de leitura (584): "PAIGC - Sobre a Situação em Cabo-Verde", por Sá da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de uma peça relevante para apreciar o argumentário do PAIGC em vésperas do 25 de Abril, como se apresentava a unidade Cabo Verde-Guiné como dado indiscutível, usando-se a independência da Guiné-Bissau como alavanca automática para a independência de Cabo Verde.
Ao longo de anos, foi forte a tensão entre Abílio Duarte e Amílcar Cabral, o primeiro exigia ação direta que o segundo sabia perfeitamente não haver condições.
Na sua última entrevista, Aristides Pereira tece considerações muito críticas ao trabalho do PAIGC em Cabo Verde a seguir ao 25 de Abril, é preciso ler e comparar o sonho político do PAIGC com a idiossincrasia do cabo-verdiano.
Questão para muitos debates, obviamente.

Um abraço do
Mário


Relatório do PAIGC apresentado na ONU em 29 de Março de 1974

Beja Santos

Abílio Duarte, destacado dirigente do PAIGC apresentou no Comité de Descolonização da ONU, em 29/3/1974, um relatório sobre a situação em Cabo Verde. Teria pouco sentido proceder-se aqui à sua análise caso não houvesse, como efetivamente há, uma íntima associação com o processo guineense, como se verá adiante.

O relatório prima pelas palavras de ordem da época, o uso de repetitivo de chavões e, há que confessar, o uso subtil de uma linguagem em que se procura dar por demonstrada, e inquestionável, a unidade Cabo Verde-Guiné. É esse exatamente o primeiro capítulo do relatório, o reconhecimento que desde meados do século XV a Guiné e as ilhas de Cabo Verde estão ligadas a um destino comum: identidade no comércio de troca, nos navios que faziam viagens circulares e que se dedicavam ao comércio de escravos e dentro desse tráfico de escravos proveniente da Costa da Guiné presidiu ao povoamento das ilhas de Cabo Verde. Que se saiba, nunca ao tempo se viu contestada a inverdade deste elemento. É que a Costa da Guiné frequentada pelos portugueses e pelos traficantes de escravos nem de longe nem de perto se circunscrevia à Guiné do tempo da luta da independência.
A unidade propalada pelo PAIGC respeitada ao comércio, à navegação. Nada se diz sobre o abismo cultural, a religião, a aristocracia local de Cabo Verde, a gastronomia e outros dados que identificam qualquer país. Cabo Verde tinha bispo, seminário, estabelecimentos de ensino, um grau de cultura incomparável com qualquer outra colónia portuguesa, veja-se o seu número de escritores ainda no período colonial. Com outra omissão do relatório: a classe administrativa cabo-verdiana na Guiné e os negociantes cabo-verdianos por conta própria ou ao serviço de empresas nacionais ou estrangeiras. O cabo-verdiano era um grupo elitista, frequentemente despótico, quase sempre sem vida social com o guineense. O relatório adianta a estrutura político-administrativa de Cabo Verde ao tempo da guerra de libertação e só se pode entender aquela estrutura como própria de uma colónia que tinha História de participação local a diferentes níveis. O documento expõe as fomes e as secas, fala em levantamentos, revoltas e outros atos de resistência “ao inimigo”. E como se um processo automático houvesse adianta-se com o programa do PAIGC em que os resultados foram a contribuição para a resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas, da insurreição na Guiné e menciona-se a marcha progressiva da ação política clandestina em todo o arquipélago de Cabo Verde, isto a par dos sucessos militares na Guiné e da criação na Guiné-Bissau de um Estado soberano.

Marcello Caetano é citado abundantemente como político hipocrática que se vangloria das medidas tomadas para evitar que a população cabo-verdiana passasse mais dificuldades face a uma seca tão prolongada. Apresenta seguidamente um quadro da situação económica do arquipélago, refere-se haver demagogia em torno dos pretensos planos de fomento e dos subsídios concedidos pelo Governo Central ao arquipélago. Segundo o relatório os planos de fomento destinam-se essencialmente a reforçar e a melhorar a infraestrutura militar. E daí salta-se para outra rubrica, a criação de infraestruturas militares para transformar o arquipélago numa base aeronaval. Assim como havia uma “Guiné melhor” tinha-se agora à última hora arranjado uma política de “Cabo Verde melhor”. No documento destaca-se o reforço da presença militar e policial no arquipélago, aumentara a verba destinada à polícia política e à PSP. E mais: “A verba militar para as ilhas de Cabo Verde duplicou. As instalações da Base de Fuzileiros Navais da Ribeira de Julião (S. Vicente) foram modernizadas. O Aeroporto Internacional da Ilha do Sal, reconstruído e modernizado pela África do Sul para receber todo o tipo de aviões modernos, inclusive os supersónicos, foi aperfeiçoado em 1971, na Ilha de Santiago, no aeroporto da Praia, vai ser construído um novo hangar de 4 mil metros quadrados e, com a ajuda da NATO, a pista de aterragem será aumentada para receber os Boeing 747. O aeroporto da Boavista também vai poder receber aviões militares. Na Ilha de S. Vicente, no Monte Verde, foi instalado um dos centros mais modernos do mundo em matéria de telecomunicações…”. Na lógica deste documento, o governo de Lisboa procurava obter maior ajuda económica e militar manifestando insistentemente o desejo de ver as ilhas de Cabo Verde sob a cobertura da NATO.

Segue-se uma análise do incitamento à imigração designadamente com o estudo das condições dos emigrantes cabo-verdianos em S. Tomé e Angola.

E por fim, a apresentação da declaração unilateral de independência e as suas implicações no desenvolvimento da luta nas ilhas de Cabo Verde. Para o dirigente Abílio Duarte, a proclamação de 24 de Setembro de 1973 eliminara uma contradição flagrante que decorria do próprio desenvolvimento da luta na Guiné, já havia o embrião de um Estado, havia seguidamente de o dotar de personalidade jurídica reconhecida no plano internacional. O Estado independente não incluía as ilhas de Cabo Verde, mas invocava-se o artigo 1.º da Constituição aprovado em Madina de Boé para justificar, designadamente quanto ao conteúdo do artigo 3.º que o Estado independente ia acelerar por todos os meios a expulsão do colonialismo português das ilhas de Cabo Verde. Este princípio também aparece legitimado pelo facto do PAIGC, segundo a Constituição ser “a força dirigente da sociedade” e que os deputados ficam obrigados a tudo fazer para liquidar o regime colonial no objetivo da unidade Guiné e Cabo Verde. E conclui-se: “O nosso povo está disposto a todos os sacrifícios nas ilhas de Cabo Verde para conquistar a sua total personalidade e dignidade de povo africano livre. Os 17 anos de luta realizados, sob a direção do PAIGC, contra os criminosos colonialistas portugueses, não nos deixam nenhuma ilusão quanto as sacríficos que o nosso povo deve ainda consentir para a realização desta legítima aspiração”.

Menos de um mês depois, a situação alterava-se profundamente. De conversação em conversação, chegou-se ao reconhecimento da Guiné-Bissau independente sob a égide do PAIGC. E com o aprofundamento do processo revolucionário, altamente controverso, como é hoje estudado em Cabo Verde, o PAIGC assenhoreou-se do poder.
Mas isso já é outra história.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13036: Notas de leitura (583): "Capitãs de Abril - A revolução dos cravos vivida pelas mulheres dos militares", por Ana Sofia Fonseca (Mário Beja Santos)

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