terça-feira, 29 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Abril de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

5 - Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

O malogrado alferes Queiroz que eu fui substituir na CCaç 2616, em Buba, morreu ao pisar uma mina anti-pessoal, num campo minado nosso que penso terá já sido deixado pela Companhia anterior.

Uma das primeiras saídas que tive para o mato foi em direcção a esse campo minado que distaria 5 ou 6 quilómetros do quartel. Foi toda a Companhia e o objectivo já não sei se seria localizá-lo melhor ou fazer a sua desminagem. Ao chegar lá, à beira do carreiro, não muito longe de mim, rebentou uma mina, olhei e vi um soldado milícia com o pé desfeito e a sangrar abundantemente da perna. Comecei a sentir-me agoniado e mal-disposto, devo ter ficado branco como cal. Tentei controlar-me de forma a não denunciar a minha susceptibilidade. Consegui esse controlo com alguma dificuldade talvez também porque as atenções estavam concentradas no ferido. Teria sido um desastre em frente ao pelotão que ainda mal me conhecia e com toda a Companhia presente se o periquito desmaiasse. Não desmaiei mas apanhei um susto enorme. Os meus amigos já imaginaram se eu desmaiava, enfim seria o fim duma brilhante carreira militar!

Infelizmente houve outras situações em que houve derramamento de sangue mas passei a reagir com a naturalidade própria de quem se encontra numa situação de guerra.

Meses passados, só o pelotão perto da Bolanha dos Passarinhos a tentar tapar um corredor da guerrilha, com origem na Guiné-Conacry, por sinal desativado havia muitos meses na área de Buba, instalados debaixo de muitas árvores que nos resguardavam do sol e do calor, caiu-nos uma trovoada terrível em cima.
Não sei se era uma ou se seriam três ou quatro simultâneas, mais parecia um ataque aéreo com aviões a jato e bombardeiros a despejar água a jorros e bombas em cima de nós. A minha experiência de guardador de vacas ainda com terra idade na aldeia, muitas vezes só, por lameiros no planalto ou regadas nos vales, foi-me aconselhando a não ter medos inúteis das trovoadas fortes da primavera apesar do muito barulho dos trovões e da violência dos raios e coriscos, pois não havia conhecimento na terra, e nas próximas, de ter havido mortos ou feridos graves por causa desses fenómenos atmosféricos.

O meu optimismo tanto por cá como em terras da Guiné apoiei-o sempre na lei das probabilidades. Segundo esse calculo era muito mais provável regressar vivo da Guiné do que o contrário. Hipótese, diga-se de passagem, bastante egoísta, talvez ditada pelo instinto de sobrevivência.

Os outros camaradas do pelotão, pelo que recordo, seriam mais de áreas urbanas portanto com menos experiência de trovoadas em campo aberto que não oferecia proteção. Para todos era a pior situação dum combatente, porque face ao perigo imaginado ou real, não podíamos ter qualquer reação de defesa.

Confesso que nunca vi tanto medo no pelotão, vi alguns homens a rezar, coisa rara entre jovens da nossa idade.No terramoto de Janeiro de 69, estava em Mafra na recruta e também vi muitos camaradas a rezar. Passado um bom bocado a trovoada passou e respirámos fundo.

O alferes Meireles veio de Nhala com o pelotão reforçar a Companhia de Buba durante algum tempo e ficou alojado no meu quarto. Por temperamento era um camarada bastante discreto, pouco falador, por vezes até com o semblante carregado como quem pede que não o incomodem. Apesar disso não deixava de ser bom camarada e simpático à maneira dele.

As nossas camas que colocadas em paralelo, distariam 1 metro ou 1,5. Certa noite acordo com o Meireles aos gritos aflitivos de "cobra, cobra!" e sem ter tempo de o acalmar sinto-o voar da cama dele e cair na minha como se o seu corpo tivesse molas.

Depois acabou por acordar e acalmar do pesadelo e voltou para a cama dele e pouco depois retomamos o sono interrompido. Passado algum tempo, em dia de coluna, na época das chuvas, com muitos camaradas a precisar de alojamento, deitaram-se 3 ou 4 no chão do nosso quarto. Deitamo-nos um pouco mais tarde como era normal quando havia camaradas doutros quartéis pois ficávamos sempre algum tempo a confraternizar e a beber umas cervejas no bar.

Quando já estávamos ferrados no sono começa o Meireles a gritar e eu todo ensonado e aborrecido por me ter acordado virei-me para ele e disse:
- Oh Meireles lá vens tu outra vez com as cobras!

Bem os outros camaradas que já tinham acordado também com os seus gritos aflitivos reagiram com gargalhadas ao meu comentário. Pesadelo chato para o Meireles, acordar rabugento para mim, mas gravei também para sempre essas gargalhadas de boa disposição.

Buba, Maio de 1969 - Entrada principal da povoação e do aquartelamento 

Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados

Depois do Meireles veio de Aldeia Formosa o Rocha com o pelotão reforçar a Companhia. Ficou igualmente alojado no meu quarto, já não sei se era eu que me dava bem com todo o pessoal do Batalhão ou se o meu quarto era a modos que um albergue espanhol.

Diferente do Meireles, era mais sociável, tal como eu transmontano, eu do meio rural ele do meio urbano da cidade de Vila Real. Tal como com o Meireles já tínhamos uma boa relação de amizade das suas idas frequentes a Buba nas colunas de reabastecimento.

Ele sendo do tempo do Batalhão, tinha mais sete meses do que eu de Guiné e talvez por isso mostrava estar um pouco afectado psicologicamente. Dizia que estava apanhado pelo clima. Tirem-me daqui! - gritava ele muitas vezes. Havia outros gritos, alguns apenas sons tipo bramidos de feras.
Noites havia que ficava bastante nervoso e como os nervos dele mexiam com os meus, por vezes tínhamos discussões chatas que provinham de tudo ou de nada. Essas discussões e zangas durariam cerca de meia hora, pois ao passar esse prazo resolvíamos ir os dois ao bar beber uma cerveja e brindar à amizade. Este ritual repetia-se sempre e nós nunca tivemos uma zanga mais prolongada do que essa meia hora de nervos e terapia.

Depois da Guiné não voltei mais a ver o Rocha. Gostaria de voltar a beber uma cerveja com ele, bem como com o Meireles que também perdi de vista.
Pensando bem acho que o Meireles agora será abstémio .

Um grande abraço a todos os camaradas.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12874: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (4): O respeito pela morte

2 comentários:

manuel amaro disse...

Caro Baptista.

O que escreves sobre o Queiroz, o Meireles e o Rocha é isso mesmo... eles eram exactamente assim... Até o grito do Rocha... "tirem-me daqui"... Mas era tudo boa gente.
O Rocha só veio uma vez, há talvez uns dez anos, ao convívio da CCAÇ 2615, a Mértola (que era para ser em Serpa).
Creio que o Rocha continua a viver em Vila Real.
A propósito das trovoadas, as da Guiné e as de todo o mundo, podes crer que a tua experiência, muito semelhante à minha, ajudou e continua a ajudar muito, perante qualquer fenómeno da natureza.

Eu, além de uma dúzia de colunas de reabastecimento, também estive em Buba, em 1970, cerca 40 dias, a substituir o Dr. Sérgio Ribeiro, que veio de férias "à Metrópole".
O Fur Enf.º Antunes tinha sido ferido e estava no Hospital da Estrela.

Continua a contar as tuas memórias, as tuas estórias. Gostei de ler e recordar.

Um Abraço

Manuel Amaro


Anónimo disse...

Caro Baptista:
Estas histórias são interessantes para todos nós e particularmente para aqueles que como eu fizemos colunas naquele itinerário entre Mampatá e Buba. No meu tempo só uma vez tivemos que ficar em Buba de um dia para o outro e foi exactamente na coluna da deslocação da minha companhia de Bolama para Mampatá e isso sucedeu porque, infelizmente, num recontro de pessoal de Buba, na Bolanha dos Passarinhos, com o PAIGC, houve um ferido grave que só veio a ser evacuado no dia seguinte vindo a falecer passados dois ou três dias. Este acontecimento provocou o adiamento da deslocação para o dia seguinte. Exceptuando esta situação anormal as colunas entre 72 e 74 realizavam-se num único dia.
Um abração
Carvalho de Mampatá.