quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13571: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (28): Guileje?!... Outra vez?!... (António Martins de Matos, TGen Pilav )

1. Mensagem do nosso camarada António Martins de Matos, TGen Pilav Ref (ex-Tenente Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 2 de Setembro de 2014:


Guileje, outra vez!

Após alguns eventuais estudos de EM, as Altas Chefias tinham chegado à conclusão que a melhor maneira de prepararem os jovens militares acabados de sair da Academia para uma vida de “futuras comissões no Ultramar” era dar-lhes uma primeira “experiência ao vivo” por terras da Guiné.
E qual o melhor local para “sentirem a coisa”? Guileje!!!

Não sei quantos Aspirantes eram, mais de 4 e menos de 8, alguém os terá levado até ao Guileje, visita e pernoita no quartel, devem ter aguentado uma manga de briefings, mosquitos, pius e … blá blá….
Até arrisco a dizer (especulação, alguém pode vir a confirmar ou negar tal pensamento) que terão visto e ouvido uns tiros de obus.
Depois havia que os trazer de novo à civilização, a missão da FAP consistia em ir recolhe-los e transportá-los de novo para Bissau.

20 Junho 72, já tinha um mês de Guiné e 11 horas de DO-27, completado o treino operacional (aterrar em Bula, Binar e Biambe), feito a minha primeira missão e, para além das do treino operacional já conhecia outras duas pistas, Tite e Fulacunda.
Coube-me ser o n.º 2 de uma formação de dois DO-27, o meu era o 3329, o piloto que liderava a operação parece que era daqueles que já tinha barbas, eu ainda era um imberbe periquito, nada de importante, não fazia a mínima ideia onde era o Guileje mas também não era importante, bastava-me seguir o chefe, havia de chegar ao destino.
Como ultimo conselho alguém amigo tinha-me dito para ter atenção à travagem já que a pista acabava na porta do quartel (que era de cimento).

 Posições relativas de Bula, Binar e Biambe

Posições relativas de Tite e Fulacunda

Ao fim da tarde lá descolámos de Bissau rumo Sul, apontados a Guileje, só que….

Época das chuvas, trovoadas, cumulo-nimbos, dilúvios à frente, ao lado, por detrás, nunca tinha visto chover tão grosso e por tanto tempo, lá me fui aguentando sem perder de vista o outro avião, mas com aquela sensação estranha de, em vez de avançarmos para o destino, andarmos às voltas.
Uma hora depois deste bailado vi algo que me fez disparar a adrenalina, um raio passou perto de mim a acertou lá em baixo no capim que, apesar de tanta chuva, logo começou a arder.
Devo ter dito algo pelo radio do tipo “Ó Janeca, olha lá o pingo da solda” de modo que o vetusto chefe da missão resolveu deixar-se de voltas e voltinhas e aterrar na pista mais próxima, esperando que aquele mau tempo acabasse por passar.
Depois de mais umas voltas finalmente lá encontrámos uma pista e aterrámos, só então me apercebi que, apesar de estarmos a voar há mais de uma hora, ainda só estávamos em … Bolama.
Os aviões apenas estacionados na placa, ao olharmos para Sul ia-me dando uma “travadinha”, vimos uma enorme mancha de “borrasca”, ali mesmo ao pé e a avançar para nós.
“Vamos embora JÁ”… e o grande chefe abalou.

 Localização de Bolama

Vide Carta da Provícia da Guiné 1:500.000

Sozinho, triste e abandonado, 40 dias de Guiné, lá me tentei desenvencilhar o mais rápido que podia e sabia, uma coisa era certa, tinha de descolar antes daquele mau tempo chegar, se ficasse no chão de certo que o vento me partia o avião.
Procedimentos a correr e muito atabalhoados, o inicio da descolagem acabou por coincidir com a ventania a chegar à pista, durante algum tempo ainda consegui manter o avião direito, depois as rajadas de vento tornaram o controlo da direcção difícil, o avião ficou tipo cata-vento, vi-me apontado a um dos embondeiros que ladeavam a pista.
Abortar a descolagem era má opção, continuei com o motor aos copos, em direcção à árvore.
Aqui um parêntesis, era periquito e com poucas horas no DO-27 mas tinha tido um grande instrutor.

Ao chegar perto do obstáculo… manche à barriga e flaps (todos) , o DO-27 parecia um elevador, logo passei por cima do embondeiro, como os pilotos costumam dizer… “na cagadinha”.

O regresso a Bissau demorou uns 15 minutos, os Aspirantes acabaram por ficar mais uma noite no Guileje, eu conheci mais uma pista (Bolama) e, com a ajuda do “Joãozinho Caminhante” … dormi que nem um justo!

Amigo José Almeida Brito [, foto de jornal, à direita], tenho saudades tuas, obrigado pelos teus ensinamentos, onde estiveres, este texto é para ti.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13415: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (27): De visita, com o seu neto, ao Museu do Ar, em Sintra, o Vitor Oliveira reencontra o T6, nº 1737, no qual voou no CTIG

5 comentários:

Luís Graça disse...

António, é uma grande lição (, que continua a ser válida para os instruendos e aspirantes da Academia, e para os seus mestres)...

Mas é sobretudo uma homenagem, discreta, comovida e justa, a um camarada esquecida que deu o melhor (a sua vida) pela FAP e pela Pátria...

Infelizmente não temos sequer, no blogue, um foto digna do José Almeida Brito! Vê se nos arranjas!...

Vasco Pires disse...

Caríssimos AMM/Luis,

Cordiais saudações.

Como o Luis disse certa data, é raro lembrar superiores, camaradas e subordinados,que nos ajudaram a viver a guerra com dignidade e voltar.

Parabéns!!!, por esse gesto de gratidão, "produto" atualmente em falta "no mercado".

forte abraço
VP

Anónimo disse...

Olá Camarada
Nunca tinha ouvido falar daquela de mandar os alferes piriquiros dormir a Guileje é um achado! Ukeles aprendiam!
É a sério? Eu estava numa "Guiné Melhor", nessa altura e não ouvi falar da facécia.
ora explicita...
Um Ab.
António

Hélder Valério disse...

Caro AMMatos

Peço desculpa pelo comentário tardio mas não tive possibilidade de o fazer antes.

Pois é para dizer que fiquei muito, mas mesmo muito, agradado por este relato.

Antes de tudo é uma homenagem a um amigo a um camarada teu e nosso e isso, em si mesmo, é sempre louvável, principalmente por ser, nos tempos que correm, uma 'actividade rara'. Escolheste esta forma de o fazer e todos ganhámos com isso.

Comungamos do teu sentimento e usufruímos das revelações que transmitiste, as quais mostram aspectos que julgo desconhecidos para a maioria de nós (se não na totalidade).
Não resta a menor dúvida que a Guiné, pelas suas características, de território, na extensão e aspectos de flora, fauna e bacia hidrográfica, operacionais , envolvimento na quase totalidade dos locais, etc., constituiu uma boa escola experimental:
veja-se o que o António nos relata quanto à 'ambientação' dos novatos, uma espécie de praxe naqueles tempos, veja-se também a grande 'escola' que constituiu o Hospital Militar, veja-se ainda a forma como se desenvolveu o ambiente que conduziu à criação do 'movimento de oficiais', depois 'das forças armadas'....

Caro António, tens 'arte' ao contar as tuas peripécias pois consegues sempre introduzir não 'um pingo de solda' mas sim de ironia e as situações mais susceptíveis de se dramatizarem são levadas 'com uma perna às costas'... para além de que o relato 'operacional' é bastante 'vivo' e capaz de nos envolver mentalmente.

Obrigado.
Abraço
Hélder S.

Henrique Cerqueira disse...

No ano de 1972,estando eu no Biambe,tive a possibilidade de viajar em dois dos principais meios aéreos utilizados nessa altura na Guiné.
Uma das vezes foi ainda no Cumeré no IAO em missão de treino a saltar dum heli-transporte,outra foi quando iria ser colocado em Bissorã na CCAÇ13,mas em primeiro fui novamente de heli fazer a zona das companhias pertencentes ao batalhão com o 2º comandante na altura em Bissorã e com o Capelão ou o médico,já não posso precisar.Como iam essas patentes todos (aplidadas de "aramistas"),talvês por estarem sempre na sede do batalhão tinham esse aplido e vai daí os "patifes dos pilotos pregavam umas partiditas fazendo voos rasantes e elevações repentinas,fazendo assim a malta deitar "carga ao mar" ou antes no meu caso foi sempre "carga na boina".
Bom viajei ainda na celebre DO e também numa dessas deslocações e finalmente na minha ida para Bissorã,pois que das veses anteriores o piloto em conivência com um camarada meu que por sua ves era amigo do piloto arranjava sempre maneira de me retornarem ao Biambe pois essa era a vontade do meu camarada,mas era inevitável a minha partida para Bissorã e CCAÇ13.
Mas isto tudo para dizer que o avião que mais prazer me deu foi precisamente a DO,pela sua simplicidade de equipamento e até pela sua aparente fragilidade.Mas os nossos pilotos eram mesmo do mais "maluco" que havia e sabiam mesmo tirar partido da "maquinaria"voadora.
A propósito tinha nessa altura um amigo de infância que também era piloto na BA12.O seu apelido é PINHO.
Um abraço António Martins a tua estória despertou uma ves mais em mim o meu muito grande apreço pelos pilotos da nossa força aérea que sempre tiveram o dom de nos transmitir confiança e em especial nos momentos de evacuações no mato
Um bem aja a todos os nossos grandes pilotos e restante pessoal das FAP não esquecendo os especialistas que grandes milagres operavam na maquinaria voadora.
Henrique Cerqueira