Queridos amigos,
Do que conhecemos, este diário de um franciscano que missionou em Bula entre 1993 e 1994 é um documento singular, expõe uma confidência e um inquietação há para ali tantas emoções, confrangimento e solidariedade, que agarra o leitor do princípio ao fim.
Uma missão que soçobra, o Frei Vítor tinha feito uma entrega total, como relata neste livro onde observa, meticulosamente, o sofrimento guineense, não se escusando a críticas ao desempenho da missionação. E há uma outra leitura possível, a do cântico franciscano, encantado pela defesa dos pobres, constantemente a proclamar “é no dar que se recebe, no amar que se é amado”.
O autor recorda-nos que quem compra este livro está a ajudar os mais pequeninos.
Um abraço do
Mário
Guiné: Até amanhã se Deus quiser
Beja Santos
“Guiné: Até Amanhã se Deus Quiser”, com prefácio do padre Vítor Milícias e autoria de Vítor Nogueira, Folheto, Edições e Design, 2010, é o diário de um franciscano na Guiné, diário minucioso escrito em cadernos e a pensar em religiosos e leigos com quem conviveu, no período de Outubro de 1993 e Abril de 1994. Um franciscano de pouco mais de 30 anos, entrara na Ordem Franciscana descontente com a sua vida de prazeres imediatos, considerava-se adormecido espiritualmente. Descobre as alegrias do despojamento, esteve no Convento do Varatojo e depois da na Luz, África atraia-o, deram-lhe a Guiné-Bissau como experiência missionária. A partir de 29 de outubro, o seu diário começa sempre assim: “Queridos irmãos! Paz e Bem!”. Recém-chegado, está exuberante: “O dia de hoje já dava um livro. Os irmãos cá da missão de Bissau contaram-me ao jantar que tinham comprado 30 contos de bananas, sabem quanto custa um saco de arroz? Custa um mês de ordenado. Sabem quanto ganha um professor? 150 contos guineenses, isto é, 2 contos portugueses”. Começa a ser inteirado da realidade do país, não para de fazer perguntas: muitos carros velhos à beira da estrada por falta de peças; as casas aqui não se pintam há séculos; deu com uma grande porca preta nas ruas de Bissau, viu lixo por todo o lado, a cidade tem muito pouco tempo energia elétrica, regista no seu diário o nome de quem encontrou em Bissau, alegrou-se quando encontrou um benfiquista. Está empolgado, tem um sentimento de cruzada: “Estou a viver uma sensação de fé, de estar nas mãos do Senhor, totalmente abandonado nas Suas Mãos. Já vim sem medo. Se morrer, mordido por alguma cobra, morro feliz”. A sua veia descritiva estende-se numa enxurrada, regista tudo quanto vê em Bissau. Irá escrevendo obsessivamente, aliás, nunca esconde o seu contentamento com cartas que lhe chegam de todas as proveniências. Quer saber tudo sobre este povo sofredor.
Debate-se entre a crítica do que vê e condena e insiste na tecla que se entregou a Deus, a fonte inesgotável da sua alegria. A 6 de novembro marcha para Bula, extasia-se em João Landim, Bula é uma cidade “com as dimensões que uma aldeiazinha pobre, das mais pobres de Portugal”. É magnificamente acolhido, sente-se em família, dão-lhe um candeeiro, fundamental para a sua escrita. Sofre com o calor, vai referindo as várias missões existentes na Guiné, equipas de três continentes. Está atento a todas as dificuldades que se põem à missionação, antes de ser catequista trabalha como assiste de limpezas, na cozinha aos fins de semana, é também assistente de mecânica e nos trabalhos agrícolas. Está feliz, veio para servir. Faz visitas, vai até Cacheu, “cidade desprezada e com alguns edifícios muito bonitos”. A sua curiosidade é febril: gosta de futebol, gosta de ler, gosta de conversar, está atento à vida africana e escreve: “já deu para ver que esta Guiné tem em si tanto de bom, de belo como de mau, de horrível. Tem um lado luminoso e um lado tenebroso, tem tanto de terra bondosa, generosa, como de impiedosa e cruel, tanto de alegre como lamentavelmente triste, tem tanto de amor como tem de dor e sofrimento atroz”. Tem saudades do frio, irá estudar latim, não se percebe bem para quê, está insatisfeito e desinteressado. Adora fazer culinária. Relata ao pormenor o ano litúrgico, a catequese, as visitas às tabancas, vive compungido com a muita miséria à volta, tem sempre meninos à volta do Frei Vítor a pedir material escolar, os meninos não têm nada, só sonhos.
Foi a Cajence dar catequese, pelo caminho encontrou um rapaz que o cumprimentou friamente, cuspindo no chão e voltando-lhe as costas. Alguém lhe observa que são ressentimentos que vêm do período colonial. Quando o dia lhe corre mal não o esconde, começa a adoecer, tem grandes dores de cabeça, encara o ensino do latim cada vez mais contrafeito, sente monotonia mas escreve que já ultrapassou fases na sua vida muito mais difíceis. Sente-se consternado com os gravíssimos problemas de saúde, medicamentos só a 20 ou 30 quilómetros de Bula. No seu registo diário fala de saudades de Lisboa. Começa a ser recorrente o seu desapontamento com a natureza da missionação na Guiné: “Depois de terminada a catequese, pelo caminho eu e a irmã viemos a conversar. Desta vez foi sobre a eficácia ou ineficácia da pastoral juvenil. Os nossos pontos de vista convergem quanto ao assunto. De facto, para nós, a pastoral juvenil que fazemos na Guiné não está bem de saúde. É importante a introdução de novas dinâmicas, mas também é verdade que temos um problema, precisamos de sangue novo nesta terra. Se soubessem como vale a pena estar aqui vinham todos e largavam todas as ninharias a que vivem agarrados ou andam atrás delas a correr”.
Em meados de fevereiro de 1994 conclui 160 páginas da sua partilha diária. Começa a duvidar das suas capacidades: “acho que ainda estou muito cru e me falta vencer ainda uma grande batalha: vencer-me a mim próprio”. Ao fim de três meses na Guiné repisa que está verdadeiramente emocionado, sente-se deslumbrado no coração de África. O seu humor oscila: “Ando a sentir rotina por todo o lado, ou então a rotina é criada por nós. Se me deixo enrolar por esta ideia da vida rotineira, ainda acabo por começar a descurar o apreço devido pela vida e acabo para aí a dizer mal dela”.
Está mesmo doente, levam-no ao hospital de Canchungo: “Quando entrei no hospital foi como se entrasse num filme, num pesadelo. Vi todo o tipo de coisas. Pessoas deitadas por todo o lado no chão, enroladas em panos, gemendo ou chorando, de tal forma que me pus num estado em que não sabia se haveria de cair para o chão, havia de chorar". Os profissionais de saúde convivem com todos os tipos de doenças infectocontagiosas. Tem um paludismo que inquieta os médicos, não prega olho, com calafrios e dores como uma faca dilacerante. A febre não passa. Crescem as saudades de Lisboa: “Não imaginam o que eu dava para estar convosco alguns minutos e poder ver-vos e ouvir-vos”. Escreve revoltado sobre o comportamento dos ricos que possuem várias casas e ostentam carros dispendiosos, a corrupção é escandalosa. Escreve que não vai voltar a Portugal, a sua vida é ali: “É aqui que a minha vida tem sentido, é aqui que me sinto útil, que se lixe a teologia. Já sei o suficiente para saber o que o senhor quer de mim”. As dores não param, chega a pensar que foi acometido de paludismo cerebral. O desalento invade o seu diário, há mesmo dias reduzidos a um parágrafo, devido à febre e às dores. É transferido para Portugal. Aqui acaba o diário, o que se segue são considerações póstumas. Lembra que esteve hospitalizado ao pé da leprosaria de Cumura, descreve a impressão que lhe provocou o sofrimento dos outros. Em Portugal tratado na enfermaria da Luz. Bula não lhe sai da mente e todos os protagonistas. Vemo-lo oscilante: “Não dá para ser meio franciscano. Pelo menos para mim. Depois de vir da Guiné ainda tentei. Mas foram dias com sabor a fracasso. E os fracassos e insucessos sucederam-se”. E saiu do convento em 1996, foi morar para Lisboa na Comunidade Vida e Paz, para o meio dos sem-abrigo. Recusou voltar para casa. E um dia constituiu família. Sente a sua alma franciscana. A Guiné é uma saudade, as coisas correram mal, mas entregou-se a fundo. Pede para lhe comprarem este livro que é para ajudar os pequeninos.
Fotografias da contracapa
____________ Nota do editor
Último poste da série de 12 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13603: Notas de leitura (631): “2011 Guiné-Bissau" por Ana Vaz Milheiro (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Respeito (ou pelo menos tento compreender) as escoihas que cada indivíduo faz na vida... Ser missionário, por exemplo. Ou ir para os paraquedistas. Ou aair da igreja (ou do partido) a que se pertence. A consciência individual deve comandar as nossas escolhas. Algumas delas, porém, têm implicações nos outros... ou são suicidárias...
Não li o livro do Vitor Nogueira, o Mário Beja Santos fez isso por mim ou pelos leitores do nosso blogue. Agradeço-lhe desde já, e mais uma vez, esse serviço, valioso, prestado à nossa comunidade bloguística. Não me parece que a sua leitura seja "enviesada", e protanto polémica, há o propósito de resumir, com isenção e objetivcidade, o essencial do que nos quis transmitir o autor, ou seja , o seu duro testtemunho de vida como mission+ario franciscano na Guiné, nos aidos anos de 1993/94...
Se encontrar um dia destes o livrinho nas livrarias, sou capaz de o comprar e ler para o cotejar com o livro de memórias do Horácio Fernandes ("Francisco Caboz construção e desconstrução de um padre").
O Horácio não foi missionário, contrariamente ao seu amigo, primo e conterrâneo Júlio Alberto Maçariço Fernandes, um ano mais velho (masceu em 1934) e já falecido. Esse, sim, foi missionário em Moçambique. Ta,mbém fui *a sua missa nova. Era também meu meu primo, Maçarico. Mas ambos eram franciscanos, tal como o Vitor Nogueira.
Posso ter reservas à ação da missionação, em África, qualquer que seja o credo reliogioso ou a igreja. Mas não posso deixar de ter uma palavra de respeito e até de admiração por estes homens e mulheres que se oferecem, também, para servir os mais pobres dos pobres... Um missão ctaólica, na Guiné Bissau, é também um porto de abrigo e um janela de esperança.
Obrigado também ao Vitor pelo seu testemunho. Cada um de nós, à nossa maneira, amou (e ama) aquela terra e as suas gentes. E obrigado ao Mário por nos ajudar a alargar (e enriquecer) o nosso leque de esolhas em matéria de leituras sobre a Guiné-Bissau, de ontem, de hoje e de amanhã...
LG
Alguns missionários serviram de repasto a índios brasileiros e de outras américas.
Pelo menos no anedotário brasileiro
sobre o «português».
Mas os povos colonizados não são muito admiradores dos missionários portugueses.
O caso mais típico desta minha ideia, é a quase ocultação nos livros de estudiosos brasileiros, de uma das figuras mais importantes na «invenção» daquele mundo geográfico quase inimaginável de tão descomunal: Brasil.
Nem a Austrália, uma ilha, nasceu com aquela área.
O comum dos brasileiros desconhece o Jesuíta António Vieira.
No entanto, nenhum português ou brasileiro lutou tanto como este missionário contra a fragmentação por holandeses, franceses e espanhois, daquelas fronteiras descomunais.
Claro que ser missionário é bem um símbolo histórico do colonialismo.
Neste momemto ser missionário cristão pode não ser muito «saudável» em certas regiões africanas.
Se calhar vou escrever grandes disparates mas, com o devido respeito, cá vão.
O 'até amanhã se Deus quiser' julgo que se trata dum desejo reiterado, constantemente, pelos crentes da religião muçulmana, por isso é que é uma religião e vontade civil(e, agora, parece que não só). Os cristãos, julgo que os católicos, foram buscar esse resquício dos muçulmanos e é ouvi-los dizer que a criança vai nascer perfeitinha se Deus quiser, que grandes chuvadas ou grandes secas vão passar se Deus quiser, que a viagem a um Santuário e o regresso vai correr bem se Deus quiser, que milhares de jovens foram prá guerra, na Guiné, e não lhes aconteceria nada se Deus quiser, que ...infindável..se Deus quiser. Afinal, crianças nasceram com graves deformações e acabaram em mendigos de romarias , as tempestades e a seca criaram graves problemas de fome e morte, que na ida ou no regresso os peregrinos tiveram desastres mortais e que alguns jovens fora pra guerra e morreram ou ficaram estropiados. Valha-nos os que ficaram revoltados.
Mas, há mais. 'Não faças isso que Deus pode te castigar' parece que ficou fora de moda, ainda me lembro quando cheguei a Lisboa, em 1956, dizer umas palavras à moda do Minho e logo as senhoras me diziam: isso não se diz que Deus pode te castigar. Castigos das cidades foi o que, afinal, o homem foi inventando ao longo dos tempos pra se ir safando das suas bestialidades.
Valdemar Queiroz
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