segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13611: Notas de leitura (632): “Guiné: Até amanhã se Deus quiser" por Vítor Nogueira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2014:

Queridos amigos,
Do que conhecemos, este diário de um franciscano que missionou em Bula entre 1993 e 1994 é um documento singular, expõe uma confidência e um inquietação há para ali tantas emoções, confrangimento e solidariedade, que agarra o leitor do princípio ao fim.
Uma missão que soçobra, o Frei Vítor tinha feito uma entrega total, como relata neste livro onde observa, meticulosamente, o sofrimento guineense, não se escusando a críticas ao desempenho da missionação. E há uma outra leitura possível, a do cântico franciscano, encantado pela defesa dos pobres, constantemente a proclamar “é no dar que se recebe, no amar que se é amado”.
O autor recorda-nos que quem compra este livro está a ajudar os mais pequeninos.

Um abraço do
Mário


Guiné: Até amanhã se Deus quiser

Beja Santos

“Guiné: Até Amanhã se Deus Quiser”, com prefácio do padre Vítor Milícias e autoria de Vítor Nogueira, Folheto, Edições e Design, 2010, é o diário de um franciscano na Guiné, diário minucioso escrito em cadernos e a pensar em religiosos e leigos com quem conviveu, no período de Outubro de 1993 e Abril de 1994. Um franciscano de pouco mais de 30 anos, entrara na Ordem Franciscana descontente com a sua vida de prazeres imediatos, considerava-se adormecido espiritualmente. Descobre as alegrias do despojamento, esteve no Convento do Varatojo e depois da na Luz, África atraia-o, deram-lhe a Guiné-Bissau como experiência missionária. A partir de 29 de outubro, o seu diário começa sempre assim: “Queridos irmãos! Paz e Bem!”. Recém-chegado, está exuberante: “O dia de hoje já dava um livro. Os irmãos cá da missão de Bissau contaram-me ao jantar que tinham comprado 30 contos de bananas, sabem quanto custa um saco de arroz? Custa um mês de ordenado. Sabem quanto ganha um professor? 150 contos guineenses, isto é, 2 contos portugueses”. Começa a ser inteirado da realidade do país, não para de fazer perguntas: muitos carros velhos à beira da estrada por falta de peças; as casas aqui não se pintam há séculos; deu com uma grande porca preta nas ruas de Bissau, viu lixo por todo o lado, a cidade tem muito pouco tempo energia elétrica, regista no seu diário o nome de quem encontrou em Bissau, alegrou-se quando encontrou um benfiquista. Está empolgado, tem um sentimento de cruzada: “Estou a viver uma sensação de fé, de estar nas mãos do Senhor, totalmente abandonado nas Suas Mãos. Já vim sem medo. Se morrer, mordido por alguma cobra, morro feliz”. A sua veia descritiva estende-se numa enxurrada, regista tudo quanto vê em Bissau. Irá escrevendo obsessivamente, aliás, nunca esconde o seu contentamento com cartas que lhe chegam de todas as proveniências. Quer saber tudo sobre este povo sofredor.

Debate-se entre a crítica do que vê e condena e insiste na tecla que se entregou a Deus, a fonte inesgotável da sua alegria. A 6 de novembro marcha para Bula, extasia-se em João Landim, Bula é uma cidade “com as dimensões que uma aldeiazinha pobre, das mais pobres de Portugal”. É magnificamente acolhido, sente-se em família, dão-lhe um candeeiro, fundamental para a sua escrita. Sofre com o calor, vai referindo as várias missões existentes na Guiné, equipas de três continentes. Está atento a todas as dificuldades que se põem à missionação, antes de ser catequista trabalha como assiste de limpezas, na cozinha aos fins de semana, é também assistente de mecânica e nos trabalhos agrícolas. Está feliz, veio para servir. Faz visitas, vai até Cacheu, “cidade desprezada e com alguns edifícios muito bonitos”. A sua curiosidade é febril: gosta de futebol, gosta de ler, gosta de conversar, está atento à vida africana e escreve: “já deu para ver que esta Guiné tem em si tanto de bom, de belo como de mau, de horrível. Tem um lado luminoso e um lado tenebroso, tem tanto de terra bondosa, generosa, como de impiedosa e cruel, tanto de alegre como lamentavelmente triste, tem tanto de amor como tem de dor e sofrimento atroz”. Tem saudades do frio, irá estudar latim, não se percebe bem para quê, está insatisfeito e desinteressado. Adora fazer culinária. Relata ao pormenor o ano litúrgico, a catequese, as visitas às tabancas, vive compungido com a muita miséria à volta, tem sempre meninos à volta do Frei Vítor a pedir material escolar, os meninos não têm nada, só sonhos.

Foi a Cajence dar catequese, pelo caminho encontrou um rapaz que o cumprimentou friamente, cuspindo no chão e voltando-lhe as costas. Alguém lhe observa que são ressentimentos que vêm do período colonial. Quando o dia lhe corre mal não o esconde, começa a adoecer, tem grandes dores de cabeça, encara o ensino do latim cada vez mais contrafeito, sente monotonia mas escreve que já ultrapassou fases na sua vida muito mais difíceis. Sente-se consternado com os gravíssimos problemas de saúde, medicamentos só a 20 ou 30 quilómetros de Bula. No seu registo diário fala de saudades de Lisboa. Começa a ser recorrente o seu desapontamento com a natureza da missionação na Guiné: “Depois de terminada a catequese, pelo caminho eu e a irmã viemos a conversar. Desta vez foi sobre a eficácia ou ineficácia da pastoral juvenil. Os nossos pontos de vista convergem quanto ao assunto. De facto, para nós, a pastoral juvenil que fazemos na Guiné não está bem de saúde. É importante a introdução de novas dinâmicas, mas também é verdade que temos um problema, precisamos de sangue novo nesta terra. Se soubessem como vale a pena estar aqui vinham todos e largavam todas as ninharias a que vivem agarrados ou andam atrás delas a correr”.
Em meados de fevereiro de 1994 conclui 160 páginas da sua partilha diária. Começa a duvidar das suas capacidades: “acho que ainda estou muito cru e me falta vencer ainda uma grande batalha: vencer-me a mim próprio”. Ao fim de três meses na Guiné repisa que está verdadeiramente emocionado, sente-se deslumbrado no coração de África. O seu humor oscila: “Ando a sentir rotina por todo o lado, ou então a rotina é criada por nós. Se me deixo enrolar por esta ideia da vida rotineira, ainda acabo por começar a descurar o apreço devido pela vida e acabo para aí a dizer mal dela”.

Está mesmo doente, levam-no ao hospital de Canchungo: “Quando entrei no hospital foi como se entrasse num filme, num pesadelo. Vi todo o tipo de coisas. Pessoas deitadas por todo o lado no chão, enroladas em panos, gemendo ou chorando, de tal forma que me pus num estado em que não sabia se haveria de cair para o chão, havia de chorar". Os profissionais de saúde convivem com todos os tipos de doenças infectocontagiosas. Tem um paludismo que inquieta os médicos, não prega olho, com calafrios e dores como uma faca dilacerante. A febre não passa. Crescem as saudades de Lisboa: “Não imaginam o que eu dava para estar convosco alguns minutos e poder ver-vos e ouvir-vos”. Escreve revoltado sobre o comportamento dos ricos que possuem várias casas e ostentam carros dispendiosos, a corrupção é escandalosa. Escreve que não vai voltar a Portugal, a sua vida é ali: “É aqui que a minha vida tem sentido, é aqui que me sinto útil, que se lixe a teologia. Já sei o suficiente para saber o que o senhor quer de mim”. As dores não param, chega a pensar que foi acometido de paludismo cerebral. O desalento invade o seu diário, há mesmo dias reduzidos a um parágrafo, devido à febre e às dores. É transferido para Portugal. Aqui acaba o diário, o que se segue são considerações póstumas. Lembra que esteve hospitalizado ao pé da leprosaria de Cumura, descreve a impressão que lhe provocou o sofrimento dos outros. Em Portugal tratado na enfermaria da Luz. Bula não lhe sai da mente e todos os protagonistas. Vemo-lo oscilante: “Não dá para ser meio franciscano. Pelo menos para mim. Depois de vir da Guiné ainda tentei. Mas foram dias com sabor a fracasso. E os fracassos e insucessos sucederam-se”. E saiu do convento em 1996, foi morar para Lisboa na Comunidade Vida e Paz, para o meio dos sem-abrigo. Recusou voltar para casa. E um dia constituiu família. Sente a sua alma franciscana. A Guiné é uma saudade, as coisas correram mal, mas entregou-se a fundo. Pede para lhe comprarem este livro que é para ajudar os pequeninos.


Fotografias da contracapa
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13603: Notas de leitura (631): “2011 Guiné-Bissau" por Ana Vaz Milheiro (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Respeito (ou pelo menos tento compreender) as escoihas que cada indivíduo faz na vida... Ser missionário, por exemplo. Ou ir para os paraquedistas. Ou aair da igreja (ou do partido) a que se pertence. A consciência individual deve comandar as nossas escolhas. Algumas delas, porém, têm implicações nos outros... ou são suicidárias...

Não li o livro do Vitor Nogueira, o Mário Beja Santos fez isso por mim ou pelos leitores do nosso blogue. Agradeço-lhe desde já, e mais uma vez, esse serviço, valioso, prestado à nossa comunidade bloguística. Não me parece que a sua leitura seja "enviesada", e protanto polémica, há o propósito de resumir, com isenção e objetivcidade, o essencial do que nos quis transmitir o autor, ou seja , o seu duro testtemunho de vida como mission+ario franciscano na Guiné, nos aidos anos de 1993/94...

Se encontrar um dia destes o livrinho nas livrarias, sou capaz de o comprar e ler para o cotejar com o livro de memórias do Horácio Fernandes ("Francisco Caboz construção e desconstrução de um padre").

O Horácio não foi missionário, contrariamente ao seu amigo, primo e conterrâneo Júlio Alberto Maçariço Fernandes, um ano mais velho (masceu em 1934) e já falecido. Esse, sim, foi missionário em Moçambique. Ta,mbém fui *a sua missa nova. Era também meu meu primo, Maçarico. Mas ambos eram franciscanos, tal como o Vitor Nogueira.

Posso ter reservas à ação da missionação, em África, qualquer que seja o credo reliogioso ou a igreja. Mas não posso deixar de ter uma palavra de respeito e até de admiração por estes homens e mulheres que se oferecem, também, para servir os mais pobres dos pobres... Um missão ctaólica, na Guiné Bissau, é também um porto de abrigo e um janela de esperança.

Obrigado também ao Vitor pelo seu testemunho. Cada um de nós, à nossa maneira, amou (e ama) aquela terra e as suas gentes. E obrigado ao Mário por nos ajudar a alargar (e enriquecer) o nosso leque de esolhas em matéria de leituras sobre a Guiné-Bissau, de ontem, de hoje e de amanhã...

LG

Antº Rosinha disse...

Alguns missionários serviram de repasto a índios brasileiros e de outras américas.

Pelo menos no anedotário brasileiro
sobre o «português».

Mas os povos colonizados não são muito admiradores dos missionários portugueses.

O caso mais típico desta minha ideia, é a quase ocultação nos livros de estudiosos brasileiros, de uma das figuras mais importantes na «invenção» daquele mundo geográfico quase inimaginável de tão descomunal: Brasil.

Nem a Austrália, uma ilha, nasceu com aquela área.

O comum dos brasileiros desconhece o Jesuíta António Vieira.

No entanto, nenhum português ou brasileiro lutou tanto como este missionário contra a fragmentação por holandeses, franceses e espanhois, daquelas fronteiras descomunais.

Claro que ser missionário é bem um símbolo histórico do colonialismo.

Neste momemto ser missionário cristão pode não ser muito «saudável» em certas regiões africanas.



Valdemar Silva disse...

Se calhar vou escrever grandes disparates mas, com o devido respeito, cá vão.
O 'até amanhã se Deus quiser' julgo que se trata dum desejo reiterado, constantemente, pelos crentes da religião muçulmana, por isso é que é uma religião e vontade civil(e, agora, parece que não só). Os cristãos, julgo que os católicos, foram buscar esse resquício dos muçulmanos e é ouvi-los dizer que a criança vai nascer perfeitinha se Deus quiser, que grandes chuvadas ou grandes secas vão passar se Deus quiser, que a viagem a um Santuário e o regresso vai correr bem se Deus quiser, que milhares de jovens foram prá guerra, na Guiné, e não lhes aconteceria nada se Deus quiser, que ...infindável..se Deus quiser. Afinal, crianças nasceram com graves deformações e acabaram em mendigos de romarias , as tempestades e a seca criaram graves problemas de fome e morte, que na ida ou no regresso os peregrinos tiveram desastres mortais e que alguns jovens fora pra guerra e morreram ou ficaram estropiados. Valha-nos os que ficaram revoltados.
Mas, há mais. 'Não faças isso que Deus pode te castigar' parece que ficou fora de moda, ainda me lembro quando cheguei a Lisboa, em 1956, dizer umas palavras à moda do Minho e logo as senhoras me diziam: isso não se diz que Deus pode te castigar. Castigos das cidades foi o que, afinal, o homem foi inventando ao longo dos tempos pra se ir safando das suas bestialidades.
Valdemar Queiroz