sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15593: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (13): Um Herói à Minha Porta

1. Em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2015, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense da CSJD/QG/CTIG, 1973/74), traz-nos o relato da reacção de um "herói" da Guiné incomodado com a passividade das autoridades metropolitanas.


Um Amanuense em terras de Kako Baldé

(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)

13 - Um Herói à Minha Porta
(bazófia militar)

Como referi anteriormente, eu prestava serviço na CSJD/QG/CTIG - Chefia de Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné, onde, como Furriel Miliciano Amanuense, coadjuvava um Alferes Miliciano na Secção de “Doenças”.
Esta Secção tratava dos processos de doenças, acidentes, ferimentos e mortes (em campanha, em serviço ou em combate) e a minha principal tarefa, para além dos registos, controle e arquivo, era a de verificar se os mesmos estavam devidamente instruídos, isto é; se continham todos os documentos obrigatórios (ficha do militar, testemunhos, relatórios médicos, etc.) e devolvê-los às Unidades instrutoras, se fosse caso disso.

Como devem calcular, durante a minha comissão militar na Guiné, passaram-me pelas mãos inúmeros processos daqueles, proporcionando-me um bom conhecimento do que, oficialmente, sucedeu em muitas das acções em que as NT (nossas tropas) sofreram baixas (ferimentos ou mortes) por acção directa ou indirecta do IN (inimigo – PAIGC).

Sendo o território da Guiné-Bissau muito pequeno (área equivalente ao nosso Alentejo), qualquer “embrulhanço” (ataque IN) sofrido pelas NT, era rapidamente conhecido em Bissau e os respectivos pormenores eram transmitidos facilmente de boca em boca. Contudo, à boa maneira portuguesa onde; “quem conta um conto acrescenta um ponto”, as notícias chegavam quase sempre exageradas, com algumas bravatas e inúmeras baixas à mistura, factos que não eram minimamente confirmados nos processos que, havendo feridos ou mortos, mais tarde me vinham “parar às mãos”.

Num determinado dia em Bissau, constou ter havido um “embrulhanço” às portas da cidade, sofrido por uma qualquer coluna de reabastecimento que dali saíra.
Falava-se então à boca cheia, entre militares, ter sido esse “embrulhanço” fruto de uma acção muito violenta do IN e onde morreram alguns militares e muitos outros ficaram feridos.

Nestes casos mais “mediáticos” eu tinha por hábito registar a notícia no meu “disco duro” e ficar a aguardar os eventuais processos referentes aos feridos e mortos, se os houvesse.
E houve! Não mortos, mas apenas dois ou três feridos ligeiros e os respectivos processos lá me vieram parar às mãos mais tarde e, se bem me lembro, o que afinal acontecera terá sido o seguinte:
Era uma pequena coluna de reabastecimento cujo destino já não me recordo. Lembro-me que na frente seguia um Unimog com milícias, no meio da coluna duas ou três viaturas com a carga e, a fechar, outro Unimog, mas com militares. A data altura rebenta um pneu da viatura da frente, o pessoal atira-se de imediato para o chão e desata a disparar a torto e a direito.

Resumindo: na queda um milícia partiu um pé, outro deslocou um braço e acho que foi só isso que aconteceu…

Passaram-me pelas mãos muitos processos do género, mas também muitos em que os nossos militares foram gravemente feridos ou mortos em circunstâncias horríveis. Muitos deles por falta de assistência, principalmente após a introdução na guerra, por parte do PAIGC, dos misseis Strella, que impediam a Força Aérea de prestar o apoio célere que até aí prestavam às forças terrestres.
Mas havia também muita bazófia e esta julgo que se estendia aos três TO’s (Teatros de Operações); Angola, Moçambique e Guiné e era usada mais frequentemente e provavelmente por quem, naquelas guerras, levou uma vida sossegada.

Um dos militares mais condecorados do Exército Português, o famoso Alferes Graduado Comando e guineense Marcelino da Mata (hoje Tenente-Coronel), embora reconhecidamente um grande guerreiro, exagerava imenso nos relatos das suas façanhas, referindo algumas vezes ter enfrentado e derrotado, com reduzido número de efectivos, um número elevado de elementos IN, verificando-se posteriormente em relatórios oficiais que nem o seu grupo era tão reduzido, nem o grupo IN tão elevado. Por vezes referia também árvores com mais de cem metros de altura [??].

Se mesmo aqueles cujos actos heróicos eram reconhecidos gostavam de acrescentar uns “pontos”, imaginem os outros que nunca se viram na necessidade de dar um tiro.
Recordo-me que, já depois do 25 de Abril e numa das minhas vindas de férias à Metrópole, ter-se passado comigo um pequeno episódio ao qual me lembrei de dar o título de : “Um herói à minha porta”.

Morava eu então na cidade do Porto, na Rua Aníbal Cunha onde, perto da minha residência, estava instalada a DORN do PCP.
Estávamos no mês de Agosto ou princípios de Setembro de 1974 e houve uma tentativa de assalto àquela sede do PCP, com tiros à mistura, pelo que havia dois cordões militares; um junto à Rua da Torrinha e outro junto à Faculdade de Farmácia (portanto, um no início e outro quase no final da rua) para impedir a passagem de pessoas. A mim deixaram-me passar por ser morador, mas fiquei por ali, junto à porta de entrada da minha residência, a ver o evoluir dos acontecimentos.

Acalmados os ânimos e abrandada a segurança, chega-se junto a mim um camarada da Guiné, dali daquelas Unidades Militares perto do QG/CTIG e que por cá se encontrava de férias, ou tinha terminado a comissão (não me recordo) e, acompanhado da respectiva namorada / mulher (?), começa com esta conversa:
- Ó Magro, estes gajos aqui a brincar às guerrinhas! Queria vê-los lá na Guiné, como nós, a aguentar aqueles ‘embrulhanços’!

Claro que não tive coragem para desmascarar o “herói do ar condicionado” junto da namorada, ou mulher, mas aquela narrativa era bem demonstrativa da bazófia que alguns dos nossos camaradas usavam junto de familiares e amigos para se arvorarem em bravos combatentes, ainda que muitos deles não tivessem dado qualquer tirito.

Provavelmente “arrumavam com eles à chapada”!
Nunca se sabe…, ele há “heróis” para tudo…!
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2014 Guiné 63/74 - P12928: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (12): Guerra copofónica

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Aqui está um assunto preciosíssimo para explicar discursos e notícias"indesmentíveis" que os que lá andaram tinham que ouvir e calar.

Só em "flagrante delito", como aqui, o caso de Abílio Magro, se pode arvorar no direito de mencionar.

Evidentemente que eu como retornado e ter vivido os 13 anos de guerra em Angola, ouvi de todas, e dou um valor muito especial a este testemunho de Abílio Magro.

Mas o facto de haver a censura, no caso de guerra, como segredos militares, ajudava a que os boatos de heróis à rambo, deixava a gente na dúvida.

Como retornado tive que ouvir mais que uma vez "também te fartas-te de matar pretos ?", a gente que nunca me tinha visto, simplesmente dizia «ouvi falar» que lá era à balda.

Cumprimentos

Luís Graça disse...

Abílio, a guerra vista do teu cantinho, também tem o seu "encanto", tal como a guerra do Solnado... Tens sentido crítico, tens humor, tens piada, e isso para mim é sempre um sinal de inteligência superior...

Uns cantam a canção do desertor, outros a canção do bandido, outros o fado da desgraçadinha outros ainda "as armas e os barões assinalados"...

A guerra, todas as guerras,prestam-se ao aparecimento de uma imensa e estranha fauna, onde se concentra o melhor e o pior dos seres humanos...Quantos heróis verdadeiros regressaram, anónimos, a casa ? Quantos pseudo-heróis não foram condecorados, medalhados, louvados ?... Hoje já nada disso é importante, mas é verdade que sabíamos distinguir os bons e os maus operacionis, os bons e os maus camaradas, os bons e os maus seres humanos... Tivemos de tudo, como em qualquer tempo e lugar... Afinal, somos iguais, independemente da cor da pele, da nacionalidade, do estatuto...

Mas o que importa sublinhar é que na generalidade os militares portugueses, no TO da Guiné, no meu e no teu tempo, souberam fazer a guerra e paz com coragem e dignidade... É pelo menos essa a minha perceção e convicção... Representávamos o melhor do nosso povo, e não necessariamente um regime, um governo, uma ideologia...

Foi pena, para todos, que não tivessemos sabido encontrar, em tempo útil, uma solução política, negociada, para um problema que nunca poderia ter uma "solução militar"... Perdemos todos, portugueses, guineenses, cabobverdianos, com aquela guerra estúpida e inútil... e que foi uma caixinha de Pandora: veja-se as dilacerações do PAIGC, em lutas intestinas, que levaram à morte do "pai" da pátria e depois dos "irmãos"...

Quanto à cena do Porto, só pode ser no "verão quente de 1975"...

Um abraço para ti e outro para os manos... Vocês é que foram, sim, uma família de heróis!... Luis

Abílio Magro disse...

Caro Luís:
Agradeço as tuas palavras, mas, no caso da nossa família, há que realçar sobretudo, isso sim, a "heroicidade" do sofrimento dos nossos pais que, em apenas cerca de dois anos e meio, viram uma casa de seis mancebos ficar vazia, com cinco filhos a cumprir serviço militar, em simultâneo. Aliás, a nossa mãe não chegou a ver tanto, já que quando faleceu, eu ainda cá estava e, nas águas do Atlântico navegava o Niassa com destino à Guiné, com o quinto filho a bordo.
Depois também eu (o sexto) "marchei" para lá.
Como diria o outro: É a vida! (era)
Quanto à cena da sede do PCP no Porto, recordo-me bem de que me encontrava de férias e, portanto, terá sido no verão de 1974. Também teve dias quentinhos (lol).
Abraço.

Luís Graça disse...

Abílio, julgo que tens uma blogue sobre essa saga familiar... Podias publicar alguns textos aqui...Não terá havido muitas famílias com seis filhos na tropa e na guerra do ultramar!... Seo que o meu amigo e camarada do tempo de Bambadinca, o José Luís Vacas de Carvalho também tinha vários irmãos, que foram mobilizados. Sei que era família numerosa (e conhecida em Montemor o Novo). Se não erro, um dos irmão terá morrido em Moçambique. Mas o teu caso, o caso da família Magro, deve ser único!... Um alfabravo fraterno para ti, o Fernando e restantes manos. Luis

Cherno AB disse...

Caro Abilio,
O Marcelino da Mata eh um puro produto da guerra colonial,era destemido,inteligente e astuto, arriscou muitas vezes a sua vida, foi usado e abusado pelo sistema e neste processo complexo aprendeu a fazer a leitura correcta das forcas e fraquezas e sobretudo da necessidade desatisfazer a complicada maquina da querra, na minha opiniao, para la das medalhas e sua importancia simbolica, o Marcelino, pelos seus feitos, so eh comparavel a Abdul Injai. o heroismo, de resto como a historia, nao eh feita so de verdades, os mitos levam sempre vantagem sobre o realismo dos factos.

o heroi que nao tiver compreendido esta realidade simples arrisca=se a ser um heroi desconhecido.

Um abraco amigo,

Cherno AB

JD disse...

Caro Abílio,
Antes do mais gostaria de subscrever o primeiro comentário do nosso Comandante Luís Graça.
Mas fico muito bem disposto com a leitura deste teu escrito, feito com medidas aferidas à realidade da guerra na Guiné, onde muitos de nós aspiravam a brilhar nas ribaltas dos heróis, mas onde todos, ou quase todos, fomos cooptados à luta que hoje se comprova por inglória. E terá sido a contraposição da basófia machista a marcar esse movimento que se reclama da glória, e conduziu os povos irmãos à desgraça e instabilidade que persiste.
Abraços fraternos
JD