sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15592: Notas de leitura (794): "Autópsia dum livro proibído", por Armor Pires Mota, edição de autor, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Armor Pires Mota é alguém com papel determinante na literatura da guerra colonial. O seu romance "Estranha noiva de guerra" é obra incomparável, está no topo dos grandes legadas literários. "Tarrafo" é um documento assombroso, não conheço outro diário escrito e publicado semanas depois num órgão da imprensa regional.
Como também não podemos desmerecer de "Cabo Donato Pastor de Raparigas" e de "A cubana que dançava flamengo".
Toda a sua obra em torno da guerra é de perda e redenção, o herói atasca-se nas circunstâncias e em dado momento roça o sublime, cruza civilizações, culturas, supera preconceitos, apresenta-se no quotidiano sempre com o passaporte da coragem.
Lamento que a sua obra ande dispersa em edições de autor e que a crítica o desconheça, não conheço tão grave injustiça.
A todos incito a que leiam Armor Pires Mota.

Um abraço do
Mário


Autópsia dum livro proibido, por Armor Pires Mota

Beja Santos

Com data de Novembro de 2015, temos novo regresso de Armor Pires Mota à Guiné. O livro intitula-se “Autópsia dum livro proibido”, edição de autor. O ponto de partida é “Tarrafo", livro publicado primeiro sob a forma de crónicas no Jornal da Bairrada, e depois sob a forma de livro. A censura esteve indiferente ao que saía no jornal, depois surgiu o livro, bem recebido pela crítica, intelectuais afetos ao regime saudaram vivamente esta prosa nova. Em Dezembro de 1965, a PIDE recolheu Tarrafo das livrarias e foi a casa do autor. O livro terá gerado polémica nas Forças Armadas, alvoroço no Ministério da Defesa. Para o autor, “Trata-se de um livro que fala da extensão de guerrilha no Norte, Centro e Sul, das diversas ações das nossas tropas, do tipo de armamento do inimigo, da violência dos guerrilheiros sobre os chefes gentílicos, nomeadamente a matança de muitos régulos que, de início, não alinhavam muito com o PAIGC". A edição censurada de Tarrafo viria a ser publicada em 2013. O parecer das Forças Armadas foi transmitido à Comissão de Censura, encaminhada para o ministro da Defesa, a PIDE fez o resto. De que era acusado Armor Pires Mota? De vários delitos, com se transcreve:
“Quase todas as crónicas relatam operações com acentuada crueza, descrição amiudada e pormenorizada de mortes e de feridos, valorizando o inimigo”; “O retrato que faz da província da Guiné é de miséria”; “No seu conjunto, a obra é desmoralizante para a retaguarda e para todos aqueles que tiverem que servir na província”.

Mas houve, na época, reação viva a esta apreensão. O chefe de gabinete do ministro do Exército enviava ao ministro da Defesa o parecer do Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército:
“Não alcanço, realmente, as razões da apreensão de um livro escrito por um alferes na disponibilidade que viveu a guerra na Guiné durante dois anos, e através de cujas páginas o esforço das nossas tropas, as suas dificuldades e os seus problemas são devidamente realçados.
A meu ver, julgo que fazem falta livros destes, escritos por autores desconhecidos e independentes mas sinceros, a contar ao povo o que fazem os nossos soldados no Ultramar”. Resta ainda esclarecer que houve uma segunda edição, incluía novas crónicas, e com pequenos cortes relativamente à edição anterior. O autor confessa-se:
“O livro perdia alguma genuinidade, mas ganhava alguma performance literária nas novas crónicas que, não compensava a genuinidade da primeira edição, reconheço, passados todos estes anos”.

Armor Pires Mota apensa dados novos: a recruta e a mobilização, a formação do Batalhão 490, em Janeiro de 1963, meses depois partem para a Guiné. Ao batalhão foi atribuída a pior das missões, unidade de intervenção às ordens de Louro de Sousa, lá vão a caminho de Mansoa, Mansabá e Bissorã, são várias as operações ao Morés. Estamos em Novembro de 1963:
“Morés acabou por ser ocupado pelas nossas tropas, depois de muita luta, alguns mortos e feridos. Ali foi hasteada até a bandeira nacional. Visitou o local o comandante-chefe”. No início de 1964, Armor parte para a “Operação Tridente”. O PAIGC reagiu fortemente à ocupação do Como, mas acabou por se retirar. Foram destruídos dois acampamentos, houve 76 mortos confirmados, as nossas tropas sofreram oito. No fim da operação, já um pelotão atravessava sem problemas a ilha. E transcreve a carta em que Nino pedia ajuda às forças do PAIGC na vizinhança, hoje um documento muito citado:
“Camaradas achei obrigado a dirigir-vos estas linhas porque sei que já não tenho nenhuma safa a não que dirigindo-me a vós. Hoje já se faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Queria que os camaradas retirassem juntamente com a população conforme na solução tomada pelo nosso secretário-geral. Mas o que é certo é que é impossível, porque não temos caminho de fazê-los sair. Por isso agradecia-vos que me mandassem reforços, vindos de todas as partes. Camaradas tenham paciência porque não tenho outra safa a não ser o vosso auxílio”.

É um documento muito pessoal o que Armor Pires Mota nos oferece neste livro, enchendo-o de peripécias, casamentos, alegrias e tristezas. E chegamos a um parágrafo fulcral, como não conheço outro, a propósito da nossa tão desejada correspondência, não resisto à sua transcrição integral:
“A carta era a oração de mão, trespassada de dor e de viva esperança em Deus e nos santos da sua devoção. A carta era a fotografia, o sorriso, o coração grande da noiva, derretendo-se em palavras melodiosas, abrindo-se em sonhos e projetos, em beijos. A carta era o conselho e a força de amigo. A carta era a seara verde em promessas de ouro e o vinho acetinado de uvas amadurecidas. A carta era o melhor sedativo para uma cicatriz ou um rasgão, uma couraça para um estilhaço. Uma couraça forte que podia salvar uma vida das garras terrivelmente aguçadas e sangrentas da metralha atroz. A carta era a terra, o arraial, a Romaria do padroeiro de cada um. As cartas eram a coragem e a fé, a força renascida, a esperança mais viva e mais larga, do tamanho da distância”.

Desembarque em Lisboa em 14 de Agosto de 1965:
“Fui recebido como um herói, que nunca fui. Não tive um único louvor, e muito menos uma medalha, mas sei que cumpri todas as missões que me confiaram”. Com os anos, fortaleceram-se certas amizades de guerra. Transcreve lindos parágrafos de aerogramas que enviou a Lili, sua madrinha de guerra, namorada e mulher, datadas de Bissorã, Ilha do Como, Jumbembem, Bissau e Bula. Transcreve crónicas, ficamos a saber que houve interrogatórios desalmados, que havia forças do PAIGC que cortavam as orelhas a quem não se queria juntar à guerrilha. Há parágrafos lindos nas suas memórias, por exemplo naquela manhã em que subiu para a vedeta Nuno Tristão, no fim da sua participação na Operação Tridente:
“Pousei a arma em sítio seguro e esfreguei as mãos. Depois, passei, por acaso, os olhos por o jornal antigo e achei-me completamente a leste do mundo, nalgum lugar ou buraco onde não chegam notícias nenhumas, longe dele, sem saber dos males que então grassavam por esse mundo de Cristo, sem saber dos últimos escândalos. Subi à torre de comando e disse ao mar palavras de libertação que ninguém ouviu”.

Trata-se de um grande documento, só há a lamentar o risco de ficar confinado a uma pequena edição de autor.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15576: Notas de leitura (793): "Testemunhos de Guerra, Angola, Guiné e Moçambique, 1961-1974", publicação que acompanhou uma exposição que se realizou no Museu Militar do Porto entre Abril de 2000 e Março de 2001 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

JD disse...

Caro Beja Santos,
Ainda que respigues frases ou períodos do livro, o comentário suscita a curiosidade de qualquer antigo combatente. Não é viável a indicação do número de páginas, preço, e contacto para aquisição?
Com um abraço
JD