Aquele poema que nunca disseste na parada do quartel de Tavira
por Luís Graça
Que pena não
teres tido a ideia
(ou a coragem ?),
(ou a coragem ?),
naquela manhã
de fim de outono de 68,
em plena
parada do quartel de Tavira,
no regresso
da tua companhia
de armas
pesadas de infantaria,
encharcado e
exausto,
depois do
crosse até às salinas…
que pena não teres tido a ideia
de dizer em
voz alta,
pausadamente,
mecanicamente,
com a voz
monocórdia de robô,
ampliada pelo altifalante da parada do quartel,
aquele poema
do Alberto Caeiro
(lembras-te?):
“Quem me dera que a minha vida fosse…
“Quem me dera que a minha vida fosse…
um canhão
sem recuo,
montado num
jipe,
eu não tinha
que ter esperanças,
tinha só que
ter rodas, e chapa,
e um tubo de
aço de canhão sem recuo,
e granadas
para o municiar.
Nem sequer precisaria
de peças sobresselentes,
porque a minha esperança média de vida,
à nascença,
seria sempre
muito curta:
na melhor
das hipóteses,
não chegaria
sequer à próxima batalha.
Finda a
guerra,
seria apenas
um monte de sucata,
onde
cresceriam ervas daninhas,
e ninguém
mais se importaria comigo
e, muito menos
ainda, choraria a minha morte.
Dos
sobreviventes,
haveria por
certo alguém,
um burocrata da tropa,
que se daria à maçada
de tomar
nota da matrícula do jipe,
e mandar
abater-me ao efetivo,
depois de lavrado o competente auto de corpo de delito,
como manda o regulamento”…
como manda o regulamento”…
Não teve
sorte, o teu poeta, coitado,
morreria cedo,
ao que parece,
aos vinte e
poucos anos,
que é a
idade mais bonita para se viver e morrer.
Teria feito a tropa ?
Teria feito
a guerra ?
Não se sabe,
mas só posso
imaginá-lo, morto,
na batalha de La Lys,
esventrado, os olhos vidrados,
o caderno de
notas no bolso junto ao
coração,
varado por
um estilhaço de morteiro,
o sangue
ainda quente,
ao lado
daquele menino de sua mãe,
um tal
Fernando Pessoa,
de que só se
conhece um retrato pungente.
Alfragide, 26 set /2024, v4
_________________
Nota do editor:
Último poste da série > 1 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15563: Manuscrito(s) (Luís Graça) (73): Vamos cantar as janeiras: "O Novo Ano é sempre assim, /Traz sonhos e inquietações, / Em português ou em mandarim, / Aguardaremos as instruções."
7 comentários:
Camarada Luís
De Tavira boas histórias de encantar. Foram tão fantástics os acontecimentos
que saí de Tavira, depois de um primeiro encontro com percebejos do CISMI e
lindas raparigas de Tavira.
A bica a 12 tostões e um copo de água pago também.
Melhor seria que lá ficasse. Conhecidos Comandantes de Pelotão. O então Alferes
Cadete - fui encontrá-lo em Mejo - e o então Alferes Robles.
Abraços
NOTA:
Comentem
Mário Vitorino Gaspar
Luís
Em relação à Batalha de La Lys, sucede que nasci a 9 de Abril
Abraçs
Cmentem
Mário Vitorino Gaspar
Caro camarada Luís.
Leio o teu poema e fico assim sem jeito... A olhar para as palavras. Na mente corre-me, como num filme antigo, um poema na (forma de diálogo) que também não cheguei a dizer em Tavira.
Caldas da Rainha, Abril de 1972, no fim de uma alocução ao pelotão:
- Meu Aspirante. Disse há pouco que fui seleccionado para o COM em Mafra. Queria dizer-lhe que não quero ir para Mafra. Quero ir para Tavira.
- (...).
- Não, meu Aspirante. É uma decisão pensada. Não quero ser Oficial.
- (...).
- Claro que é por razões políticas. Sou contra a guerra e contra o regime que a mantém. Só agravaria os engulhos que já tenho na minha consciência.
- (...).
- Está-me a deixar indeciso. Posso dar uma resposta depois?
- (...).
- Ok! Talvez tenha razão. Só o tempo dirá... Fico-lhe agradecido pelos seus conselhos. Se tudo for como diz...
E foi assim que nunca pude dizer o meu poema na parada de Tavira. Mas o Aspirante, grande amigo e grande homem (de Amarante), safou-me de uma estupidez.
Grande abraço ao Luís e ao Mário Vitorino.
O seu a seu dono... O poema original do Alberto Caeiro / Fernando Pessoa é o que reproduzo a seguir... "Canibalizei-o"... Como eu tirei, no CISMI, em Tavira, a especialidade de armas de infantaria (, que não me serviu para nada, na Guiné deram-me uma G3...), ocorreu-me, numa noite de insónias, substituir o "carro de bois" pelo "canhão sem recuo montado no jipe"... Não quis (nem tinha a veleidade de) "desafiar" o mestre, mas estou-lhe grato pela inspiração... Se houve alturas na minha vida em que se senti completamente "alienado", incapaz de ser (ou de sentir-me) "dono da minha vida", foi no ano em que fui para a tropa, primeiro para as Caldas da Raínha (RI 5) e depois para o CISMI, em Tavira... Seis meses depois, em 24 de maio de 1969, estava a bordo do T/T Niassa, a caminho da Guiné... LG
Alberto Caeiro
XVI - Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
XVI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.
4-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994. - 65.
1ª versão inc.: Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.
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Alberto Caeiro
XVI - Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
XVI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.
4-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994. - 65.
1ª versão inc.: Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.
http://arquivopessoa.net/textos/598
E, já agora, aqui fica um "poema eterno", um dos grandes poemas da poesia do mundo, "O menino de sua mãe", de Fernando Pessoa, datado de c. 1926... É difícil ler este poema, em voz alta, sem um frémito de emoção... LG
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No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado —
Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
c. Maio de 1926
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2241
Caro Luís pelo teu poema, pela tua sensibilidade, pela tua amizade, por teres estado comigo em pensamento ontem, pela forma como mantens viva esta luz que se chama memória,
Obrigado
Um abraço
Surge o Movimento "ORPHEU" com Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário Sá-Carneiro.
A Revista ORPHEU teve uma vida curta, e sai do poema que me acompanhou na minha vida:
"Eu não sou eu nem outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro"
E o poema lindo de Fernando Pessoa
A Guerra
A guerra que aflige com
os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito
do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano,
quer alterar.
Mas a guerra,
mais do que tudo,
quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo
do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte,
a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso
todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior
e os outros homens onde
a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho
e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se,
fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante
dos esquadrões
Regressa aos bocados
o universo exterior.
A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago
para o pensamento.
A humanidade é uma
revolta de escravos.
A humanidade é um
governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou,
mas erra porque usurpar
é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior
e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-
humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente
exterior do Universo!
Esteve comigo sempre.
Um abraço
Mário Vitorino Gaspar
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