quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15644: Os nossos seres, saberes e lazeres (136): O ventre de Tomar (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2015:

Queridos Amigos,
Uma coisa é o comprazimento estético, olhar e ver com agrado, sentir intimidade, conivência com uma determinada peça do património, na sua aceção mais larga, sem quaisquer obrigações com moradores ou quem ali labuta, registar a imagem; outra coisa é estender o diálogo com quem ocupa este ou aquele espaço ou lugar, pedir para intervir, dar explicações, abrir portas a outra vertente da compreensão. Assim procurei proceder, entrando para pedir informações, simulando comprar; lá dentro, autorizado, zás, aquilo que olhei e passou a visto e passa agora ao público, é um mundo de proscénio e bastidores que constitui a fruição a que vos convido.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (1)

Beja Santos

Os lugares, os espaços, têm uma pele que é lida pelos nossos sentidos: a harmonia das formas, a riqueza dos materiais, a dimensão estética que pode ser ditada pela graciosidade das portas, das janelas, das varandas, o que é concêntrico ou retilíneo, azulejos, envidraçados, rebocos, por exemplo. Para além da pele, há um organismo interior, seja loja, residência, serviço público. Calcorreando Tomar, vou ajuntado elementos sobre o seu ventre (não confundir com o romance de Zola, “O ventre de Paris”, o grande escritor aqui abalançou-se na narrativa de dramas humanos, o meu ventre de Tomar são lojas que ressoam a um passado distante ou menos remoto, desta vez andei por estabelecimentos, pedi licença para fazer alguns disparos, aqui dou satisfação a um roteiro de viagem. E estou a juntar elementos sobre a pele, interessa-me muito essa Tomar inusitada, os tais lugares e espaços que estavam destinados a funcionar como fábricas, solares, moradas de família, estão fora dos roteiros ou são escombros, testemunhos silenciosos desse progresso galopante que deixa para trás vestígios do nosso impúdico esbanjamento. E vamos às imagens de um ventre que me é apetecível.



É um espaço amoroso, trata-se de um equipamento que provocou frémito na época, ainda bem que não o estragaram, se bem que a atividade comercial não seja a mesma. Aquela máquina registadora deve ter calculado muita compra, tilintou muitas vezes. Por esta porta é bem possível que tenha entrado e saído muita mercadoria, gente a fazer provas de roupa, dá para especular tudo o que se vendia a dinheiro. É impossível passar pela Corredoura e não embasbacar com esta nesga do passado, e o esforço adaptativa do presente, sem estragar o que merece ser preservado.



Entrei aqui e dei como pretexto que vinha à procura de um tecido para uma cortina e que precisava de algumas linhas. A proprietária mostrou estranheza quando lhe disse que gostava de todas aquelas coisas intensas nos fechos, novelos e tecidos para múltiplas aplicações e pedia licença para as fixar. “Ó senhor, esteja à vontade, tire as fotografias que quiser”. Tirei várias, ficam só estas duas, têm a paleta de cores que consolam todos os humanos, falam do engenho, da aplicação das nossas mãos, da vida que damos às máquinas de costura, ao conforto que depositamos em reposteiros e coisas parecidas. “Volte quando quiser”, e agradeci. É claro que hei de voltar.


Atravessei os Estaus e aqui dei como pretexto que andava à procura de um desenho ou gravura para meter uma moldura. O que eu meti foi conversa neste estabelecimento de curiosidades e velharias. Segundo o anúncio da porta, o proprietário diz o preço e o presumível cliente pode contrapor, ou seja entre a venda e a compra nada é definitivo até haver concordância a dois. É claro que também hei de voltar aqui, gosto imenso do prato que se reflete no espelho e gosto de conversar com gente que não está ali só para vender.



A senhora que me recebeu é açoriana de gema, enganei-me na ilha, a senhora vem das Flores, há mesmo quem diga que é a mais bela ilha do arquipélago, falámos de cascatas e daquele pedregulho que assinala o fim da Europa insular. Apanhei este cantinho multicolorido, imaginei a roupinha quente que aqueles novelos irão dar à luz. E segui caminho.


Aqui restaura-se mas também se faz de raiz, camas, móveis, armários, cadeiras, tudo o que é concebível em artes de marcenaria. Deram-me licença para ali andar a cirandar e fiquei embasbacado com esta linda solução dentro de um edifício muito antigo, aproveitou-se com engenho e arte aquele belo nicho para arrumar disciplinadamente as ferramentas do ofício. E meditei na grande distância que vai entre ver na superfície, ficar com a primeira impressão que os olhos registam e olhar onde as coisas se distinguem e passam a ser imagens nossas mesmo que muitos outros ali se tenham quedado a dizer: olha, mas que grande surpresa! E ficamos por aqui, temos que ter paciência com este ventre inesgotável que Tomar tem para nos oferecer.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15615: Os nossos seres, saberes e lazeres (135): Horácio Dantas, artesão oleiro de Barcelos, autor da réplica do Farol de Leça, oferecida aos presentes no Convívio dos Panteras da CART 1742, levado a efeito em Maio de 2014, em Leça da Palmeira (Abel Santos)

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