sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15738: Notas de leitura (807): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2015:

Queridos amigos,

Não é incomum negar o óbvio quando se faz uma leitura à procura de fundamentos para certas tomadas de posição. Lendo esta biografia do investigador Luís Nuno Rodrigues, ganha meridiana clareza a permanente atitude de Spínola de avisar os seus superiores sobre a evolução do teatro da guerra. Esses superiores nem sempre aceitarão esses argumentos, consideravam que Spínola pintava o quadro em tons melodramáticos, o que ele queria era mais meios humanos e materiais e os seus escritos funcionavam como intimidações.

Ora, estudos posteriores vieram reconhecer que Spínola, de um modo geral, advertia aos seus superiores sobre a gravidade da situação sem bazófia. Tem pela frente um inimigo ideológica e militarmente bem preparado para destruir e retirar para pontos ermos ou para território estrangeiro. E nessa correspondência vemos claramente a evolução da guerra até ao rodopio final. Mas não pior cego do que aquele que não quer ver.

Um abraço do
Mário


Spínola e a evolução militar da Guiné (1968-1973) - (1)

Beja Santos

É uma pura banalidade dizer-se que há releituras que permitem um olhar remoçado sobre a qualidade de um romance, de uma obra poética ou de uma investigação histórica. Li a biografia “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010, com a compreensível atenção de que este investigador, dois anos antes, dera à estampa, também em A Esfera dos Livros, o livro "Marechal Costa Gomes", um trabalho irrepreensível.

Na leitura que fiz de Spínola, vai para cinco anos, pareceu-me que era uma investigação asseada, bem documentada, mas que não trazia a palpitação de factos novos. Agora, que estou a trabalhar numa história da Guiné portuguesa que chega à independência efetiva, todos os acontecimentos da guerra da libertação têm que ser reposicionados à luz de obras de mérito indiscutível, com as de Fernando Policarpo, Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. 

Inevitavelmente, reli o trabalho de Luís Nuno Rodrigues e revelou-se-me, como em clarão, que o investigador, ao mostrar a correspondência de Spínola com governantes e altas chefias militares, deixou iniludivelmente registado a evolução militar da Guiné, e o que escreveu é seriamente desconfortável para aqueles que continuam a jurar a pés juntos que a evolução militar não caminhava para o caos total.

No seu encontro com Salazar, em Maio de 1968, Spínola não tece equívocos quanto ao seu pensamento: a guerra na Guiné já tinha atingido uma fase em que o “problema militar” se sobrepunha a qualquer outro, mas era no campo político social que estava o fulcro da contrassubversão. Nessa mesma conversa recordou a Salazar que um insucesso na Guiné teria efeitos devastadores, e apresentou condições através de um documento intitulado “Alguns aspetos que condicionam a solução da presente situação na Guiné". Salazar ouviu tudo sem comentários e limitou-se a dizer: “É urgente que embarque para a Guiné”

Em 26 de Junho de 1968, Spínola escreve a Salazar: “Se não enfrentarmos o problema da Guiné em regime de exceção, a Nação perderá esta guerra, não obstante a possamos ganhar, com base nas qualidades do nosso soldado”.

Spínola encarou com otimismo a nomeação de Caetano, os militares conheciam a posição que este defendera quanto à criação de uma “federação de Estados”, no início da década de 1960. A Guiné de 1968 correspondia a uma implantação do PAIGC na região Sul, a uma presença segura em áreas designadas como santuários entre o Corubal e o Boé. O conceito de manobra adotado por Schulz arrecadara resultados manifestamente insatisfatórios, com perda de controlo do território e o PAIGC a alargar as suas ações ao Leste, no Chão Manjaco, a beneficiar da tolerância senegalesa que passou a permitir abertamente a passagem de armamento pela fronteira Norte. A partir de 1966, Cuba é uma presença técnica constante para o uso da artilharia. 

Luís Nuno Rodrigues recorda o conteúdo das primeiras diretivas, apelava-se ao governo central o tratamento da Guiné como território em situação crítica, sob pena de Portugal acabar por perder o controlo efetivo da Guiné. Recriminava o velho armamento utilizado, a falta de meios de transporte de assalto, nomeadamente helicópteros. Era uma guerra em duas frentes: o desenvolvimento económico do território, quebrando argumentos de propaganda ao inimigo e reconquistar e manter o controlo efetivo da província. É uma tecla que vai ser sempre martelada, reforço dos meios operacionais, constituição do núcleo de forças de intervenção, revisão do esquema de instrução dos militares europeus, alargar o recrutamento africano e implantar estruturas de autodefesa das populações; solicita insistentemente armamento e equipamento antiaéreo e a instalação de um centro emissor para difundir a propaganda portuguesa. 

Numa reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, no início de Novembro de 1968, Spínola apela que se defina claramente a missão a desempenhar pelas Forças Armadas. Se tal não acontecesse, “corremos, a passos largos, para a perda da Guiné”.

Alguns dos políticos presentes consideraram o cenário como demasiado negro, seja como for houve resposta favorável a parte dos seus pedidos. A pressão que irá exercer sobre o governo central será permanente, alega que pretende reduzir drasticamente a capacidade militar do PAIGC, começa por apear vários coronéis e tenentes-coronéis, exige um “Comando Operacional Único”, que Marcello Caetano sanciona em Julho de 1969. 

Jamais irá abdicar da prerrogativa de escolher os seus oficiais. E quando necessário ameaça com a demissão. Apercebe-se que o transporte através dos rios é fulcral e autorizou Alpoim Calvão a levar por diante operações de destruição de lanchas rápidas do PAIGC. A africanização da guerra acelerou-se, enquanto em 1968 esse número era de 3280, em 1973 subira para 6425. Tratou-se de uma africanização que encontrava correspondência no discurso ideológico de Spínola assente na construção de uma “Guiné melhor”. Carlos Fabião reorganizou as milícias, nasceram os Comandos Africanos, e mais tarde os Fuzileiros.

É facto que com a chegada de Spínola à Guiné houve alterações significativas. Ao longo de 1969 e 1970 encontra-se correspondência entre Spínola e o Ministro da Defesa e as queixas não param, exige mais médicos, faz alusões ao caso da Índia. Caetano assiste em Bissau, em 14 de Julho de 1969, a uma reunião extraordinária de Comandos e pergunta a Spínola qual a evolução que este previa para a Guiné num futuro próximo. O cenário apresentado pelo Governador foi manifestamente negativo. Era necessário retomar a iniciativa no campo militar, já que a situação dava sinais de se tornar “extremamente crítica”. 

Caetano e Spínola reencontram-se em Lisboa em 8 de Maio, Spínola sentiu-se ufano, parecia que iria receber mais reforços em prejuízo de Angola e Moçambique. Reencontram-se a 24 de Setembro, em Lisboa, Spínola alerta o Presidente do Conselho para o agravamento da situação militar. E os meios humanos e materiais pedidos não obtêm resposta. Em Abril de 1970, ocorre o massacre de oficiais na região de Jolmete, o sonho de uma fração do PAIGC ser incorporada nas Forças Armadas evapora-se. 

Em Julho de 1970, Spínola alerta o Chefe do Estado-Maior e o Ministro do Ultramar para o facto de estarem a enfrentar uma nova ofensiva militar. Bate na tecla da insuficiência de meios materiais e humanos. Em Novembro de 1970, Spínola volta a insistir num agravamento da situação militar, e é nesse contexto que decorrem os preparativos da Operação Mar Verde que se saldou num revés diplomático em toda a linha, fez crescer o isolamento da diplomacia portuguesa. Por essa altura, e verdadeiramente desencantado com a situação militar, Spínola dá prioridade às soluções políticas.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15722: Notas de leitura (806): Textos de Carlos Schwarz (Pepito), na Revista Sumara, publicação da responsabilidade da Fundação João Lopes, Cabo Verde (Mário Beja Santos)

4 comentários:

antonio graça de abreu disse...

De derrota em derrota até à derrota final, segundo o especialista Mário Beja Santos.
A realidade é que não houve derrota nenhuma.
Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Beja Santos, quando escreveres a tua história da Guiné Portuguesa, não te esqueças de mencionar que no fim da nossa guerra, já com Marcelo Caetano, este homem nunca teve os generais unidos à volta dele para uma solução final, de "ou sim ou sopas".

Porque andamos há anos com salamaleques, e já está na hora de falarmos sem ficar corados de vergonha.

Tens que dizer que os nossos generais nunca se uniram à volta do homem que deportaram para as colónias num chaimite, e que esses generais estavam ideologicamente, egoisticaamente divididos entre si à procura de dividendos e louros.

Temos os casos escandalosos do não entendimento no 25 de Abril entre Spínola, Costa Gomes e Rosa Coutinho.

Tiveram os generais e mesmo os capitães um comportamento à francesa na Argélia como Degaulle e Salan por exemplo.

Os ingleses em questões nacionais são mais unidos e consensuais.

Eu como estava em Angola e sou retornado e tive que abrir o olho e dar corda aos sapatos, porque o Rosa Coutinho me aconselhou quando me disse que aquela terra não era a minha, nem sequer direito à casa que eu tinha com o meu dinheiro, não fui de chamite mas fui de Varig Luanda-Rio.

BS, tu que foste simples alferes, com responsabilidades de general, e estavas junto do povo africano,dá mais importância ao povo do que aos políticos e generais.

Nunca julgues o povo como gente não pensante, como os «inteligentes» sempre insinuam.

E à vista do que hoje se passa, repisa sem corar, que aguentámos até à exaustão para não abandonar as nossas ex-colónias como fizeram as outras potências coloniais.

cumprimentos

JD disse...

Camaradas,
Durante o meu tempo - 1970/71 - a guerra não estava perdida. O moral não era elevado, pudera, e para isso contribuía em boa parte o ambiente de desconfiança que havia na minha Companhia relativamente ao capitão e a dois de três sargentos, individuos sem escrúpulos, que roubavam no rancho, na gasolina, em tudo o que pudessem. Entre os milicianos falávamos de paz, líamos Brecht, mas não encarávamos virar as costas ou agitar um pano branco em caso de guerra. Para além da desconfiança, também se registava com demasiada evidência a incompetência do capitão - manipulado pelos dois sargentos - e a atitude de cobardia pois nunca saíu para o mato.
Governaram-se com a negligência dos altos comandos, que nunca fiscalizaram nem controlaram o ambiente e as actividades da Companhia. Portanto, pela parte daqueles profissionais a Nação estava a ser atraiçoada, nos fins e nos meios (a gasolina e o rancho, sobretudo).
Entretanto, em Angola vivia-se um ambiente de paz generalizada, do que decorria um comprovado caminho de progresso. Ora, se a situação tivesse tido outra evolução autónoma, sem a oposição aberrante dos "ultras" (desconhecedores e mal informados, para além de também carregarem múltiplos vícios), talvez que o epílogo do ultramar tivesse sido diferente do que conhecemos, um golpe corporativista e criminoso pela forma assumida e pelos resultados supervenientes.
As coisas correram como se sabe, e do golpe resultou de facto a derrota. Mas não foi só a derrota: a economia estava organizada e progredia com base nas matérias-primas e produções ultramarinas, do que resultavam grandes fluxos financeiros, apesar das vendas a sub-preço espelhadas nos relatórios do Banco de Angola. Os cofres estavam cheios, mas foi necessário fazer face à desorganização instalada com o golpe, e ao pagamento dos produtos importados. Nunca mais foi diferente. A nossa geração passou a pedir emprestado, para viver com o possível conforto, ostentação e o mínimo esforço. Nunca se preocupou com os destinos do país, não é interveniente, nem manifesta sentido crítico, tanto que revitaliza o "sistema" em sucessivas eleições desde que não lhe faltem as comodidades a que entretanto tivera acesso principalmente por via do crédito, que se afigura outra conquista da liberdade.
Durante as viagens que posteriormente fiz pela antiga África portuguesa, encontrei inúmeros habitantes com orgulho na preservação dos cartões de identidade civis e militares da nossa nacionalidade. Só entre os fardados e os da administração pública encontrei arrogância, tal como os governantes andaram a refugiar-se no colonialismo como justificação da incompetência ou locupletanço.
Teremos que estar atentos a tanta manipulação - de cá e de lá - para não cairmos em tentações fáceis para justificar as alterações sócio-políticas verificadas. É só a minha opinião.
Abraços fraternos
JD

Manuel Luís Lomba disse...

Olá, camaradas!
Partilho alguns paradoxos da Guerra da Guiné,escapados aos investigadores geralmente "politicamente correctos".
De derrota em derrota, o PAIGC alcançou a vitória final...
De vitória em vitória, o Exército Português conseguiu a derrota final...
Quantos combates militares ganhou o PAIGC nos 4500 dias e noites da sua guerra?...
O general Spínola foi verdadeiro ao escrever a Salazar que a guerra da Guiné podia ganhar-se com base nas qualidades dos nossos soldados...
Foi com base nessa malta que D. Afonso Henriques construiu Portugal, D. Nuno lhe garantiu a independência, em 1385, os nossos líderes do século XV-XVI ousaram transformar o Atlântico e Índico em "lagos portugueses", os de 1640 aguentaram os 28 anos das guerras da Restauração e o punhado que, em 1973, enxotou a invasão e o cerco do PAIGC montado a Pirada (sem menosprezo por tantos outros e suas circunstâncias)...
O desfecho da guerra da Guiné terá resultado da associação da incompetência do regime político com a dos militares profissionais no seu comando e da emergência da clandestinidade de outro EP??...
A vitória do PAIGC terá resultado da sua incompetência militar, ao investir todos os seus meios materiais e humanos em Guidaje e Guileje-Gadamael?
E da omissão da reacção em extensão e profundidade a esses eventos, por parte das Fa portuguesas?...
abraço.