CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
40 - A moeda relíquia e as mães dos combatentes
A minha mãe, nos tempos que antecederam o meu embarque para a Guiné, não conseguia esconder o seu enorme sofrimento, causado pela ansiedade e pelo medo. Mas há já vários anos que a ideia do meu embarque a atormentava, descrente de uma reviravolta política que pusesse fim à guerra colonial. Nas vésperas da minha partida, para minha surpresa, entregou-me uma moeda de 10$00 e disse-me que a levasse comigo para a Guiné, mas que tinha de regressar com ela, para lha devolver. Naquele momento não pude evitar rir-me da sua imaginação e do ar solene que emprestou à ocasião. Mas depois, percebendo que ela estava a tomar aquilo muito a sério, prometi-lhe que cumpriria a sua vontade. Longe de imaginar que, num futuro distante, iria valorizar com carinho a lembrança da entrega da moeda e a própria moeda, mesmo se, durante muitos anos, tivesse esquecido tudo nos recônditos da memória.
Um dia, após o seu falecimento em 2001, encontrei entre as suas coisas pessoais um papelinho muito bem dobrado a guardar uma moeda de 10$00. Foi emocionado que li o papelinho, uma pequena folha de agenda de 1965 que, no interior dizia:
“Esta moeda de 10$00 (1971) é uma relíquia. Acompanhou o António à Guiné e voltaram juntos”.
Saberia a minha mãe que outros, em tempos diversos e remotos, também se fizeram acompanhar de relíquias nas suas viagens aventureiras? É que, por absoluta casualidade, há meia dúzia de anos, ao ler uma revista de um semanário qualquer, deparei-me com uma imagem e uma legenda que me deram um sobressalto:
“São Rafael: esta imagem foi à Índia com o Gama e de lá tornou”.
Acudiu-me logo a ideia de juntar esta relíquia à minha. Digitalizei a imagem do São Rafael, procurei a fotografia que tinha feito da minha moeda e juntei as duas, como mostro a seguir.
Relíquias
Ainda guardo a minha moeda religiosamente embrulhada no mesmo papelinho, pelo que significou para a minha mãe, antes e depois do meu regresso. Quanto deve ter sofrido, ela e todas as mães daquela época... Em 1974 tinha-me a mim na Guiné e ao meu irmão José Alberto em Moçambique. Fortuna a dela e nossa que tivéssemos regressado sãos e salvos, sem as tragédias que se abateram sobre tantas famílias daquela década.
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Mulheres de Buba
Não recordo a data (1973 ou 1974) nem a razão deste evento em Buba, com grande aparato de viaturas, mulheres e militares à mistura, mas garanto que foram momentos de grande descontracção os que nos proporcionaram as mulheres de Buba, com a sua alegria, vitalidade e carácter forte. Reconheço na assistência, soldados do meu grupo de combate e de outro grupo de Nhala. No meio da roda de dançarinas, pode ver-se o Cap. João Brás Dias da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Buba, animando a festa. Na foto 2, estou eu, sentado num Unimog entre as mulheres.
Tudo isto é o pretexto para deixar a seguir um pequeno álbum.
Mulheres de Buba.
Fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15784: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (39): De 1 a 24 de Agosto de 1974
7 comentários:
Manga de ronco
Excelentes fotos. Aquela da mulher a dançar com o menino às costas
é genial.
Valdemar Queiroz
Estive em Buba nos anos 68/70 era po Furriel mecãnico da ccaç 2382 e recordo perfeitamente aquele "telheiro" que era a nossa oficina. Também aquele espaço com as valas à volta das casernas que muitas vezes nos abrigaram. Um abraço para todos aqueles que por ali passaram!
A minha mãe não me deu nenhuma moeda, mas parte do seu coração que foi divido em três, uma para Angola, uma para a Guiné e outra para Moçambique. Felizmente as três partes voltaram a ficar unidas.
Caro Murta, fomos durante muitos meses contemporâneos na Guiné e muito provavelmente ter-nos-emos cruzado algures na província. Só para localizar no tempo, eu desembarquei em Bissau no dia 19 de Abril de 1972 e regressei a Lisboa - às minhas custas - em Maio de 1974. Durante estes 2 anos estive em Cabuca na Ccav 3404, Ccaç 12 e CIM. Este périplo foi a consequência de ir em rendição individual. Posto isto vou agora descrever o porquê deste comentário. Curiosamente também me deram uma moeda que tinha como objetivo acompanhar-me durante toda a comissão. A moeda era alusiva julgo que a ponte Salazar e foi me dada por um primo-irmão que foi nessa altura mobilizado para Moçambique. Quando cheguei a Bissau fiquei a aguardar transporte para Nova Lamego e o "patacão" que depois de cambiado a 10% foi se consumindo no Pelicano, 5ª REP, idas ao cinema UDIB ou à base de Bissalanca. O tempo foi passando e quando finalmente tive transporte estava nas lonas e sem possibilidade de ser financiado. Estava como hoje se diz insolvente. Durante estes dias estive no QG e ainda desfrutei de umas idas à piscina e do bar e messe de sargentos. Já não sei como nem porquê mas não tinha transporte militar para cumprir a ordem de me apresentar em Bissalanca para embarcar no Noratlas com destino a Nova Lamego e, como só me restava no bolso a moeda que o meu primo me tinha dado, foi com ela que fiz o pagamento do táxi da minha parte da "vaquinha". Lamento não ter conseguido tê-la trazido de volta ...
João Silva
Caro João Silva.
Por causa dessa moeda - ou da falta dela - , imagino que tenhas ficado com a consciência esverdeada de líquenes e escorrências pegajosas...
Estou a brincar.
Mas já me fizeste rir, carago.
Fomos mesmo contemporâneos na Guiné. Eu cheguei a Bissau a 21 de Março de 1973 (pira!) e regressei em Agosto de 1974.
Grande abraço.
A. Murta.
Mais um belo texto engalanado de sugestivas e marcantes fotos. Continua a escrever, para nossa satisfação.
Um abraço
Carvalho de Mampatá.
Caro Murta
Recordo-me bem das fotos publicadas relativas à festa em Buba dado o facto de eu ter estado lá a assistir.
Eu sou ex furriel miliciano da 1ª CCAC 4513 e o meu nome é Manuel Oliveira.
Ao ver as fotos publicadas,muitas recordações surgiram na minha mente relativas ao tempo passado em Buba, e em especial, pelo facto de rever as fotografias de dois ex camaradas furriéis da 1ª CCAC, que já não se encontram entre nós.
Tenho lido todos os posts publicados, e agradeço o facto de me teres permitido reviver um tempo passado em condições adversas, que cedo me tornaram um jovem amadurecido e mais responsável.
Um abraço
Manuel Oliveira
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