1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Abril de 2015:
Queridos amigos,
Manuel da Silva Fernandes foi 1.º Cabo Operador Cripto numa Unidade que ficou conhecida como os Gaviões de Gadamael. O seu relato é incomum, nunca vi tanta imagem de gente entre o passado e o presente, em viagem para a Guiné, nas LDM a caminho de Gadamael, em eventos de enorme significado como a homenagem aos mortos em Ponte de Lima, ele é limiano assumido e aproveita este documento memorial para falar dos heróis da terra, como o malogrado capitão Tinoco de Faria, que agonizou e fechou os olhos a pedir coragem aos seus homens.
Temos aqui a prova provada de que o livro só se fechará quando o último de nós apagar a luz, deixando a narrativa a interpretes da História.
Um abraço do
Mário
Os Gaviões de Gadamael
Beja Santos
Em “Os Caminhos de Gadamael-Porto”, Guiné 1970/72, os Gaviões de Gadamael, Edição de autor, Ponte de Lima, 2014, viajamos até ao Sul da Guiné e acompanhamos uma inequívoca demonstração de companheirismo do autor pelos camaradas limianos e pelos da sua unidade, a CCAÇ 2796. Não é comum tão extenso repositório fotográfico e tanto registo de depoimentos e testemunhos de gente amiga. Porque é de um fervoroso limiano de que estamos a falar, alguém que se orgulha da ligação de Zeca Afonso a Ponte de Lima, como ele escreve: José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu em Aveiro, era filho de José Nepomuceno Afonso, juiz, nascido em Aveiro, e de Maria das Dores Dantas Cerqueira, professora primária, nascida em Ponte de Lima. O 1.º Cabo Operador Cripto Silva Fernandes lembra que chegaram a Gadamael-Porto quando a povoação estava muito disposta depois da retirada das nossas tropas de vários aquartelamentos, Ganturé, a três quilómetros de Gadamael, mas também de Sangonhá, Gandembel e Cacoca.
Os Gaviões foram-se juntando no RI 2, em Abrantes, constituíam uma Companhia um pouco excêntrica, incluíam gente oriunda de um “plano de recuperação e inserção na sociedade civil”, vulgo malta com cadastro, presidia ao conjunto o Capitão Assunção Silva, que irá morrer em combate. Do Pidjiquiti seguem para Brá, 17 dias depois marcham para o Sul em duas LDM.
Mal arribados, começam as flagelações, logo em 16 de Dezembro de 1970, a 20 sofrem uma flagelação tremenda, nem escaparam à noite de Natal nem ao fim de ano. Compendia todas estas flagelações: 8, 10 e 11 de Janeiro. Em 24 de Janeiro uma grande tragédia na primeira e única emboscada durante uma patrulha de reconhecimento, escreve que ocorreu na área de Tamabofa, num trilho de passagem do IN perfeitamente identificado. Uma única bala de uma PPSH, de alguém escondido por trás de um morro de bagabaga abateu aquele que era a maior referência dos gaviões, morreu perto das antigas tabancas de Canturé.
Ainda não refeitos do choque da perda do Comandante de Companhia, a 28 nova flagelação, procede-se a patrulhas de reconhecimento e descobrem-se e desativam-se 20 minas antipessoais e uma mina anticarro. São relatórios minuciosos, sugerem-se os itinerários do inimigo que dispõe de um enorme campo de manobra.
Uma das originalidades deste documento de Silva Fernandes é a correspondência com as madrinhas de guerra. Vejamos a carta que recebeu em 22 de Dezembro:
“Manolo:
Antes de mais deixa-me tratar-te por este diminutivo. Quem sou eu e como cheguei a ti: através de uma revista feminina encontrei uma série de nomes militares onde era feito um apelo para os apoiar nas frentes de guerra. Enchi-me de coragem e lá fui à procura desse mistério, não sabendo que tipo de pessoa está desse lado, de onde veio e o que faz. Um outro interesse despertou a minha curiosidade: a tua habilitação militar, Operador Cripto. Sou professora em Odemira, no ensino primário; tenho 21 anos de idade, 1,64 metros de altura, olhos castanhos e cabelo curto. Gosto muito de ler, de passear e tenho uma grande admiração e respeito pela natureza.
Manolo:
O que eu posso oferecer nesta altura é o incentivo de que passes os teus dias da melhor forma. Olha o sol, as estrelas, provavelmente o calor, as tempestades, mais que provável isolamento de tudo, olha tudo isso com fé e coragem. Protege-te da guerra com uma estampa de S. Sebastião que te mandarei na próxima carta. O meu objetivo neste momento não é procurar namoro. Estou muito mais motivada por uma correspondência que eleve a tua moral, saber que sou útil a alguém que deve estar a necessitar de incentivo de quem está por fora da guerra”.
Logo a 3 de Janeiro Silva Fernandes responde à madrinha, manifesta regozijo de saber que é professora, informa que o pai é Guarda-Fiscal, explica-lhe o que é um Operador Cripto e diz-lhe onde e como vive: “Não saio do aquartelamento a não ser para as tabancas que circundam Gadamael, um quartel com casernas à base de zinco, madeira e chapa aproveitada do bidons de combustível”. E despede-se, pedindo permissão para mandar um beijinho e esperar que essa vontade de relacionando vá até onde Deus queira que vá. Somos informados também que a alimentação em Gadamael era horrível. Estamos em Maio, na flagelação do dia 8 a Unidade sofre dois mortos, dois feridos graves e dois feridos ligeiros. Ainda hoje Silva Fernandes chora os seus mortos. Em Junho, mais três flagelações em Gadamael. E abruptamente, o que é muitíssimo comum na nossa literatura memorial, os registos aceleram, misturam o passado com o presente, o ano passou depressa, somos levados a supor.
E em 24 de Janeiro uma parte da unidade segue para Quinhamel, em Fevereiro ainda experimentam uma flagelação e o resto da Unidade deixa Gadamael em 22 de Fevereiro. A Unidade em Quinhamel desdobrava-se pelos destacamentos de Biombo, Ponta Vicente da Mata, Bijmita e reordenamentos de Blom e Quiuta. É neste contexto que em 30 de Março a Base Aérea é flagelada durante alguns minutos. Silva Fernandes disserta abundantemente sobre a política africana, as ações de Spínola e como o Portugal pós 25 de Abril calou as suas responsabilidades com os africanos que comprometeu na guerra. Silva Fernandes tem credenciais como plumitivo, as badanas do seu livro descrevem a intensidade das suas intervenções.
O seu testemunho tem este lado curioso de ser uma História da Unidade contada na primeira pessoa, um Operador Cripto que não é nada dado a farroncas, que descreve sem se manipular na ocultação, sem manifestar ufania pelas amizades que fez, guardando total descrição sobre o volumoso número de flagelações que conheceu em Gadamael. E tocantes fotografias, em abundância, mostram sem necessidade de legendas como a camaradagem dos "Gaviões" irá até ao fim das suas vidas, aconteça o que acontecer.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15799: Notas de leitura (811): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (3) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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