quarta-feira, 16 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15866: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (11): Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

1. Em mensagem de ontem, dia 7 de Março de 2016, o nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74) enviou-nos esta mensagem e reflexão:

Amigo Carlos
Faço votos para que te encontres de boa saúde junto dos que te são queridos.
Carlos, quero agradecer a mensagem que me enviaste quando do meu último poste, a propósito da minha saúde dizer-te que me sinto bem.
Há já muito tempo que não tenho publicado nada no meu blogue, vou publicar hoje um poste igual ao que te envio, fala da Guiné se quiseres publicar estás à vontade…
Recebe um abraço


MEMÓRIAS QUE ME ACOMPANHAM

11 - Porque continuamos a falar da guerra que vivemos na então província da Guiné?

Quando a minha Companhia esteve em Mansambo, três dos nossos camaradas ficaram cada um sem um pé, vítimas de rebentamento de minas, o que se for dito agora leva alguns a dizer ainda tiveram sorte ficarem só sem um pé, como se alguém com vinte e poucos anos que foi obrigado a deixar tudo e todos e ir para a guerra tivesse sorte em ficar apenas com um pé. Mas já ouvi…

Ou quando dois camaradas nossos em Cobumba morreram vítimas de uma mina levantada pelos nossos homens que viria a rebentar na nossa arrecadação, ou ainda num dos dias mais desmoralizadores que vivemos em todo o tempo de comissão, em Cobumba, quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o héli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o mesmo não chegou… mais tarde, com o tempo de comissão já terminado há muito, outro camarada viria a falecer já na cidade.

Quando alguém tenta explicar por que é que isso aconteceu, são alguns dos próprios que viveram essas situações que acham que isso é perder tempo, dizendo, são coisas que já não interessam. Pois não é esse o meu entendimento. Dar a conhecer o passado, neste caso o que vivemos na guerra, é sempre interessante. Se mais não for, para que aqueles que vierem depois de nós saibam o que nesse tempo aconteceu e porque aconteceu e, se possível contribuírem para que tal não volte a acontecer…

Se esse passado não for dado a conhecer aos mais novos que nasceram no tempo em que não é obrigatório ir à tropa, que aos cinco ou seis anos já usam o telemóvel e alguns até já mexem na Internet, que antes de nascerem os pais já tem um cuidado especial com eles. A resposta deles provavelmente seria, mas que atrasados que eles eram.

 Vítimas de uma emboscada

Não é novidade para ninguém, ou não deveria ser, que é muito importante arrumar o nosso passado, mas isso não implica esquecer. Sabendo de onde vimos, se mais não for, é sempre mais fácil decidir para onde queremos ir…

Tudo tem um tempo para acontecer. Havia um homem que andou cerca de três anos a colocar degraus para subir a um ponto muito alto onde ninguém antes tinha conseguido subir, faltava pouco para atingir o cimo, um dia, a morte chegou e não conseguiu aquilo porque tanto tinha lutado… Outro continuou o trabalho que há anos ele tinha começado, passados poucos dias chegou ao cimo, nesse dia fizeram uma grande festa e o seu nome ficou gravado para que todos soubessem quem foi o primeiro a chegar àquele sítio. Lamentavelmente esqueceram, que aquele só lá chegou porque outro durante muito tempo trabalhou para que isso fosse possível…

Por tudo isso é bom haver quem se preocupe em dar a conhecer o nosso passado, neste caso na guerra, sempre com o rigor possível, para que aqueles que vieram depois de nós possam saber as dificuldades porque passamos, se mais não fosse, só a ausência de familiares e amigos durante muitos meses, alguns, mais de dois anos naquela que devia e podia ter sido a melhor fase da nossa vida…

Viver num clima de guerra só por si era terrível, mas a esmagadora maioria dos que passaram pela Guiné teve que conviver com o sofrimento de camaradas feridos, quer em combate, vítimas de flagelações à distância ou das terríveis minas em que ficaram marcados para sempre. Outros, não resistiram ao sofrimento e mesmo ali a nosso lado acabaram por perder a vida.

Quando se fala nas migrações como está a acontecer nesta altura, faz-me lembrara uma frase que disse a alguns amigos quando cheguei da Guiné: se um dia houver guerra em Portugal só se não puder é que não abalo com a minha família para um país onde exista paz…

Creio, que se o sofrimento que advém da guerra a todos por igual chegasse não haveria na terra homem que em guerra pensasse.

António Eduardo Ferreira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13653: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira) (10): Quando a manta passou a servir de colchão

5 comentários:

Bispo1419 disse...

Meu caro camarada A.Eduardo Ferreira

Dizes no texto que "quando quatro feridos estiveram várias horas esperando que o heli chegasse para fazer a evacuação para Bissau e o mesmo não chegou ..."
E eu, levado pelo sentido do texto, completo a frase: " eles morreram".

Qual a razão apresentada para essa falha operacional? Será possível acrescentares algo mais sobre o assunto?

Foi durante a noite e não havia helis capacitados para voo nocturno? Ou foi durante o dia mas todos os helis andavam em acções de socorro e/ou combate, prioritárias?

Se não se verificaram estas situações ... qual então o motivo pelo qual não houve evacuação dos feridos? Teria sido por incapacidade militar de assegurar operacionalmente um mínimo de segurança para a actuação do heli?

Grande abraço, com votos de saúde e alegria

Manuel Joaquim

Antº Rosinha disse...

Há muitos motivos para a nossa geração explicar tudo bem o que se passou.
Ainda há muita coisa para historiar.
Há motivos políticos, motivos culturais, motivos europeus e até mundiais, para não parar de contar.
Relatar não é justificar nem condenar.
No nosso caso é como que dizer "não largar o fio à meada".
Porque a "nossa guerra" para nós aqui, (geração de 70 anos), acabou, mas só para nós, porque na realidade a guerra que nós deixámos ainda não acabou para muitos milhões em África e na Europa, onde estes dois continentes estiveram e estão envolvidos.
O nosso sacrifício, e em memória dos que já foram e muitos lá ficaram, deve ser bem realçado e bem esmiuçado.
Bom post
Cumprimentos

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Falar da guerra é um dever patriótico.
Falar dela, com verdade, narrando o que sucedeu e dando conta dos momentos bons e maus que passámos permitirá aos vindouros aprofundar o decorrer de um dos quatro factos históricos mais importantes do Séc XX no nosso país: 05OUT10, I GM, 28MAI26 e Guerra colonial/25ABR74.
Devemos constituir-nos como fornecedores de um banco de dados que permita conhecer a história portuguesa no Séc. XX em que a acção das FA foi determinante para o bem ou para o mal.
Não estamos a gabar-nos, nem a expor desgraças.
Estamos a dar um testemunho honesto e bem documentado que alguém há-de aproveitar.
O pior que nos pode suceder, enquanto povo, é perdermos a nossa memória.
E, como sabemos, há povos que não a têm... e outros que permitem que ela seja adulterada e aceitam beatificamente que assim seja. E defendem uma ou outra das opções.
Quantos aos problemas políticos e sociais são deles e, como também já disse, não sou culpado do que sucede e não quero intervir na resolução dos problemas.
Um Ab.
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Amigos e camaradas,
Se me permitem…”O pior que nos pode suceder, enquanto povo, é perdermos a nossa memória.”. Patriotismo puro, embelezado por perguntas pertinentes e constatações que nunca se desatualizam.
Abraço transatlântico.
José Câmara

JD disse...

Camaradas,
Li e gostei do que escreveu o António E. Ferreira. Também li os comentários com abordagens interessantes para desenvolver. Refere-se a memória enquanto "testemunho honesto e bem documentado que alguém há-de aproveitar". Ora, qualquer testemunho destina-se a ser interpretado, tanto de forma linear, como por extensão ou omissão. E aqui a porca torce o rabo. Então não foram as próprias FA a denunciar a violência da colonização, quando tiveram que justificar a "pacífica" descolonização? E esse período tão recente da nossa História, ou da História de quando isto era descendência dos Lusitanos, está ou não a ser cautelosamente guardado das lições históricas ministradas nas escolas? Por mim, até acho bem.
Mas, para além do mais, há uma verdade irredutível, a de que somos todos diferentes, e por isso temos diferentes olhares sobre um qualquer acontecimento. Daí, que os heróis de um dia, possam ter passado a traidores noutra ocasião, e vice-versa.
É de facto muito intrigante o processo de vida comunitária, pois parece que cada um está bem a remar para o seu lado, mesmo que em rota de colisão com os restantes. Assim, avulta outra verdade, a da falta de educação cívica e do rigor na formação da opinião pública, que fica à mercê da vontade dos poderosos, e muitas vezes serve para justificar o injustificável, e a sucessão confortável de governos plutocráticos, tanto à direita. como à esquerda.
O problema, portanto, parece situar-se nos ensinamentos que possamos retirar da História, tendo em vista o bem comum, e a capacidade crítica que conduza à democracia participativa.
Abraços fraternos
JD