sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16495: Notas de leitura (880): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a esta narrativa que foi tão galvanizante, é tão reconhecida a sua importância que até ao ano passado já tinha conhecido 33 edições, em Portugal, narrativa autobiográfica, há para ali dores que não se apagam, embaraços na alma que não encontram ancoradouro como Lobo Antunes em determinada altura escreve: "Flutuo entre dois continentes que me repelem" ou "O medo de voltar ao meu país comprime-me o esófago, porque estive longe demais, tempo demais para pertencer aqui". E por fim: "O avião que nos traz a Lisboa transporta consigo uma carga de fantasmas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo, atarraxados nos assentos, de pupilas ocas, observando pela janela um espaço sem cor, de útero, do céu" e tudo termina assim: "E separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas num redemoinho civil da cidade".
Temos aqui obra-prima no top da nossa literatura de guerra.

Um abraço do
Mário


Os Cus de Judas (2), por António Lobo Antunes

Beja Santos

Estamos num bar, as horas escorrem sossegadas, o narrador beberrica e tem por assistência uma mulher que nunca será definida. Em certos momentos, sobrelevando a exaltação pela soma de tantos silêncios, pelo absurdo de tantos corpos cozidos ou metidos em urnas, como que num relâmpago de ternura iluminam-se episódios como o do nascimento da primeira filha, Lobo Antunes nunca nos iludiu com a vertigem autobiográfica:
“Eu tinha-me casado, sabe como é, quatro meses antes de embarcar, em Agosto, numa tarde de sol a que o som do órgão, as flores nos altares e as lágrimas da família emprestavam um não sei quê de filme de Buñuel enternecido e suave, depois de breves encontros de fim de semana em que fazíamos amor numa raiva de urgência, e despedimo-nos sob a chuva, no cais, de olhos secos, presos um ao outro num abraço de órfãos. E agora, a 10 mil quilómetros de mim, a minha filha, massa do meu esperma, a cujo crescimento de toupeira sob a pele do ventre eu não assistira, irrompia de súbito no cubículo das transmissões, entre recortes de revistas e calendários de atrizes nuas”.

Mas o que pesa, o que domina toda a narrativa anda pela agonia da espera, como o autor verbera:
“A lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, a espera do jipe da Pide que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um suflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa”.

E há as descrições, por vezes alucinantes, como aquele louco na mata, é um horrível epitáfio do colonialismo. Ainda não chegou a manhã, o narrador e a sua ouvinte mantêm de pé todo este monólogo plangente, e o autor grita:
“Foda-se, vim para aqui porque me expulsaram do meu país a bordo de um navio cheio de tropas desde o porão à ponte e me aprisionaram em três voltas de arame cercadas de minas e de guerra, me reduziram às garrafas de oxigénio das cartas da família e das fotografias da filha, Angola era um retângulo cor-de-rosa no mapa da instrução primária, freiras pretas a sorrirem no calendário das Missões, mulheres de argolas no nariz, Mouzinho de Albuquerque e hipopótamos. Um amigo negro da Faculdade levou-me um dia ao seu quarto no Arco do Cego, e mostrou-me o retrato de uma velha esquelética, em cujo rosto se adivinhavam gerações e gerações de petrificada revolta: 
- É a nossa Guernica. Queria que a visses antes de me vir embora porque me chamaram na tropa e fujo amanhã para a Tanzânia”.

Recordações é o que não falta neste relato vivo mas atribulado, amor por empréstimo, a peste da solidão. As horas passam, a ouvinte seguiu o narrador até à sua casa, despem-se e toda aquela dor sufocante que ele traz desde Angola assoma com carga poética, é uma intocável lembrança:  
“Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: em Mangando e Marimbanguengo a tropa estacionada tiritava de paludismo e de aflição, soldados seminus cambaleavam no calor insuportável da caserna, que o relento do suor e dos corpos por lavar entontecia como os hálitos nauseabundos dos cadáveres, se nos inclinarmos para eles à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos legam as vivos num borbulhar de sílabas informes. Em Mangando e Marimbanguengo, vi a miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos olhos de pássaros feridos dos militares, no seu desencorajamento e no seu abandono, o alferes em calções, espojado pela mesa, cães vadios a lamberem restos na parada, a bandeira pendente do seu mastro idêntica a um pénis sem força, vi homens de 20 anos sentados à sombra, em silêncio, como os velhos nos parques, e disse ao furriel enfermeiro, que desinfetava o joelho com tintura, É impossível que um dia destes não tenhamos por aqui uma merdósia qualquer, porque, sabe como é, quando homens de 20 anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo, algo de inesperado, e estranho, e trágico acontece sempre, até que me vieram informar do rádio: Um tipo deu um tiro em Mangando”.

E esta vibração poética atinge aqui o seu auge:
“Penso que quando eu morrer a África colonial voltará ao meu encontro, e procurarei em vão os negros da sanzala ao longe, a manga da pista de aviação acenando escarninhamente para ninguém. De novo será noite e apear-me-ei do Unimog a caminho do posto de socorros, onde o tipo sem rosto agoniza, aclarado pelo petromax que um cabo segura à altura da cabeça e contra o qual os insetos se desafazem num ruidozinho quitinoso de torresmos. O tipo sem rosto agoniza numa agitação incontornável, amarrado à marquesa de ferro que oscila, e vibra, e parece desfazer-se a cada um dos seus sacões. As ampolas de morfina sucessivamente injetadas no deltóide parecem esporear cada vez mais o corpo amarrado que se rebola e torce, e o petromax múltipla nas paredes em sombras que confluem, se sobrepõem e se afastam, formando uma dança frenética de manchas na geometria suja do estuque. Apetece-me abrir a porta de golpe, abandoná-lo, sair dali, tropeçar ao acaso, sentar-me nos degraus de uma velha casa de colono, de mãos no queixo, vazio de indignação. Os grilos de Mangando enchem a noite de ruídos, um dilatado e suave som contínuo sobe a terra e canta, as árvores, os arbustos, a miraculosa flora de África solta-se do chão e flutua, livre, na atmosfera espessa de vibrações e de cicios, o tipo amarrado à marquesa agoniza a um metro de mim, e queria estar a 13 mil quilómetros dali, a vigiar o sono da minha filha nos panos do seu berço.
Mangando, Marimbanguengo, Bimbe e Caputo: o sujeito imobilizou-se por fim num estremeção derradeiro, o que restava da garanta cessou o seu borbulhar ansioso, o cabo do petromax deixou pender o braço e as sombras estenderam-se no soalho, subitamente imóveis. Ficámos muito tempo a contemplar o cadáver agora em sossego, as mãos molemente cavadas sobre as coxas, as botas que se afiguravam dilatadas de um recheio de palha, quietas na placa de ferro branco, mal pintada, da marquesa. O pequeno grupo apinhado dissolveu-se devagar num murmúrio indistinto, e eu dava o cu para estar longe dali, longe do gajo morto que mudamente me acusava, longe das ampolas de morfina que se amontoavam, vazias, no balde pensos”.

A comissão caminha para o fim e começa a tripa-forra dos disparates, como em todas as guerras que vivemos:
“Trazíamos 25 meses de guerra nas tripas, de violência insensata e imbecil nas tripas, de modo que nos divertíamos mordendo-nos como os animais se mordem nos seus jogos, nos ameaçávamos com as pistolas, nos insultávamos, furibundos, numa raiva invejosa de cães, misturávamos comprimidos para dormir no uísque da Manutenção e circulávamos a cambalear pela parada, entoando em coro obscenidades de colégio”.

É raro um escritor lançar-se primigenamente junto do público com tão palpitante escrita, já se anunciavam aqui as suas obras-primas.
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Nota do editor

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1 comentário:

Antº Rosinha disse...

BS, sempre, incondicionalmente.

As companhias de boina castanha ou preta em Angola, que viviam enclausuradas no isolamento no sul e leste de Angola bastante despovoado, viviam dentro dos 100x100 metros de arame farpado numa letargia de 24 sobre 24 horas tal qual como Lobo Antunes fala dos soldados «de 20 anos se sentam assim à sombra, num tão completo desamparo», e que podia dar para o torto como previa Lobo Antunes.

Principalmente quando metia capitães que não tinham a mínima ideia como "inventar" processos ou mesmo inimigos com que distrair o pessoal.

Passava-se junto a alguns quartéis que se estranhava a falta de vida.

Havia capitão nem se chateava de ver o sargento de dia em cuecas a formar o pessoal para o café da manhã e a bater a pala com uma batida de calcanhares em chinelos.

Mas claro que não era qualquer capitão ou sargento que naquelas situações se preocupasse com freiras ou hipopótamos ou Mouzinho.

Às vezes até tinham pressa no calendário para acabar aquela comissão em Angola, para iniciar outra sem interrupção.

Havia boinas verdes, azuis e vermelhas em Angola que não tinham o mesmo stress, e até repetiam as suas comissões.

Lobo Antunes, apesar de ser escritor, penso que não exagera em nada.

Para quem saíu de Lisboa, seu habitat, para os cús de judas!

Nem todos os médicos em Angola tiveram os mesmos princípios nem o mesmo destino, nem os mesmos pontos de vista de LA, antes pelo contrário.

Devemos falar daquilo que vimos, sempre, para quem venha a traz, nos compreenda.

Cumprimentos.