segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16476: Notas de leitura (879): Os Cus de Judas, por António Lobo Antunes (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Se pretendermos ser sinceros, dentro do rol de obras consagradas que poderão vir a ser lidas como textos indispensáveis da literatura de guerra, atrevia-me a adiantar dois nomes por cada um dos teatros africanos: "Os Cus de Judas", de António Lobo Antunes, e "Autópsia de Um Mar de Ruínas", de João de Melo, quanto a Angola; "Nó Cego", de Carlos Vale Ferraz, e "Olhos de Caçador", de António Brito, quanto a Moçambique; "Estranha noiva de guerra", de Armor Pires Mota e "O Diário do soldado Inácio Maria Góis", quanto à Guiné.
Este livro de Lobo Antunes, de que corre aí uma edição popular a menos de seis euros, é uma obra prodigiosa, preferi citá-lo a comentá-lo, verão como é tumultuosa, inebriante, asfixiante toda esta narrativa inventada entre um bar em ponto indeterminado e uma casa ali perto da Picheleira, com vista para o Tejo e o cemitério do Alto de S. João.

Um abraço do
Mário


Os Cus de Judas (1), por António Lobo Antunes

Beja Santos

As incursões por outras literaturas da guerra colonial, que não a da Guiné, trazem múltiplas vantagens: identificar paralelismos e reconhecer as diferenças advenientes da natureza do território, do poder do inimigo, por exemplo. António Lobo Antunes foi oficial médico em Angola. Estreou-se na literatura em 1979 com “Memória de Elefante” onde aflora algumas das questões suscitadas pela guerra e trava-se diretamente de razões em “Os Cus de Judas” sobre a sua comissão.

Tal como Memória de Elefante, temos aqui mais um livro declaradamente autobiográfico, recordações do meio familiar, a preparação, a viagem, estamos agora em Luanda. Esta narrativa não é linear, trata-se de um pungente monólogo em que a assistência é alguém que ele encontrou num bar, a quem se apresenta e revela a proveniência:  ~

“Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas às outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, por que o céu é feito de pombos próximos. Nasci e cresci num acanhado universo de croché, croché da tia-avó e croché manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelô, proibiram-me o Canto IX de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espírito e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários de amanuense cuja caravela de aportar às índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua”.

E começa uma enorme viagem, com caraterização dos lugares:  

“Gago Coutinho, a trezentos quilómetros do Luso e junto à fronteira com a Zâmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Português obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e de fitas ridículas, o posto da Pide, a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos: "Uma vez por semana eu sacudia o badal do sino de capela pendurado no meio de um círculo de cubatas aparentemente desertas, no silencia carregado de ruído que África tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das árvores, das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, avançando para mim à maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianças, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos do remédio”.

No bar, a narrativa prossegue com a apresentação de uma nova localidade:  

“Ninda. Os eucaliptos de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste, formigantes de insetos, o ruído de maxilares sem saliva das folhas secas lá em cima, tão sem saliva como as nossas bocas tensas no escuro: o ataque começou no lado da pista de aviação, no extremo oposto à sanzala, luzes móveis acendiam-se e apagavam-se na chana num morse de sinais. A lua enorme aclarava de viés os pré-fabricados das casernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de madeira, o retângulo de zinco do paiol. À porta do posto de socorros, estremunhado e nu, vi os soldados correrem de arma em punho na direção do arame, e depois as vozes, os gritos, os esguichos vermelhos que saíam das espingardas a disparar, tudo aquilo, a tensão, a falta de comida decente, os alojamentos precários, a água que os filtros transformavam numa papa de papel cavalinho indigesta, o gigantesco, inacreditável absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e insólita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquiátricos”.

O tom do narrador não esconde a ansiedade, quer companhia, uma audiência específica para a rememoração daquela guerra:  

“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, um morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meio quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei: Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada. Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quer que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho, caralho, caralho com pronúncia do Norte”.

A rememoração retrocede, é uma ferida aberta que volta à crise académica de 1962, e depois há o mistério daquela guerra colonial de quem ninguém quer falar, deverá ser muito incómoda, muito traumatizante:  

“Começo a pensar que o milhão e quinhentos mil homens que passaram por África não existiram nunca e lhe estou contando uma espécie de romance de mau gosto impossível de acreditar, uma história inventada”.

No entretanto, surgiu um acontecimento extraordinário:

“Como na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamaram ao rádio para me informar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha, rómio, alfa, papá, alfa, rómio, índia, golf, alfa, paredes forrada de fotografias de mulheres nuas para a masturbação da sesta, mamas enormes que começaram de súbito a avançar e a recuar, segurei com força as costas da cadeira do carro de transmissões e pensei Vai-me dar qualquer merda e estou fodido".

O Chiúme era o último dos cus de Judas do Leste, o mais distante da sede do batalhão e o mais isolado e miserável: 

"Os soldados dormiam em tendas cónicas na areia, partilhando com os ratos a penumbra nauseabunda que a lona segregava como um fruto podre, os sargentos apinhavam-se na casa em ruína de um antigo comércio, quando antes da guerra os caçadores de crocodilos por ali passavam a caminho do rio, e eu dividia com o capitão um quarto do edifício da chefia de posto, através de cujo teto esburacado os morcegos vinham rodopiar por sobre as nossas camas espirais cambaleantes de guarda-chuvas rasgados. Sessenta pessoas encerradas na sanzala alimentavam-se em latas ferrugentas dos restos de comida do quartel, mulheres acocoradas sorriam para a tropa o riso vazio das efígies das canecas de loiça, a que as bocas sem incisivos conferiam uma profundidade inesperada, e o soba, septuagenário em farrapos reinando sobre um povo côncavo de fome, trazia-me à lembrança uma velha amiga aristocrática da minha mãe que vivia com os cães e as filhas num andar desabitado de móveis, de pegadas retangulares dos quadros nas paredes desertas e a falta das terrinas assinalada por uma ausência de pó nas prateleiras dos armários”.

Um romance único, no olhar impiedoso sobre a crueldade dos resultados de todo aquele absurdo, a dor de nada poder esquecer, naquela noite de Valpurgia em que todos os fantasmas acenam e alguém tem que nos ouvir, tão incontinente é a nossa dor.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16467: Notas de leitura (878): Ida à Feira da Ladra, sábado, 27 de Agosto: a Guiné estava à minha espera, antes, durante e depois da guerra (3) (Mário Beja Santos)

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