Um pátio da Tabanca dos Melros
Foto: © Jorge Portojo
1. Em mensagem do dia 18 de Setembro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta história ouvida por si na Tabanca dos Melros, e aqui contada com o seu inconfundível estilo literário, para integrar mais uma das boas memórias da sua guerra:
Memórias boas da minha guerra
34 - A honra não tem preço
Ao segundo Sábado de cada mês, há um almoço convívio de ex-combatentes, na Quinta Choupal dos Melros. O primeiro convívio efectuou-se em Dezembro de 2009. A ideia deste evento ficou registada com a criação do nome da “Tabanca dos Melros”. Está situada num local lindíssimo, composto por vários pátios, telheiros e salões, aproveitados de uma grande casa de lavoura, enriquecido de alfaias, móveis antigos, quadros, bustos e outras obras de arte. É dono desta propriedade e do bom gosto do seu recheio, o “Melro” Gil, ex-Cmdt Piloto Aviador.
Convívio à sombra da ramada, como se diz no norte
Quem me levou lá foi o Jorge Portojo, que é a alma desse agradável convívio. É ali que tenho passado horas e horas de sã camaradagem com ex-combatentes, cuja vivência da guerra do ultramar é o grande elo comum.
Ali, se ouvem histórias, se brinca com elas e se discutem alguns pormenores mais ou menos assertivos. Porém, o bom ambiente reina e prevalece acima de qualquer discórdia. Confesso que nos dá muito prazer usufruir deste óptimo relacionamento e, ao mesmo tempo, poder contribuir para a sua continuidade.
Foi lá que, há dias, “apanhei” esta história, testemunhada (vivida?) por um dos presentes.
O que a seguir vou contar terá acontecido em finais de 1972, princípios de 1973, num destacamento próximo de Cacheu, no noroeste da Guiné.
Um pelotão com pouco tempo de Guiné foi incumbido de ocupar aquele destacamento. De um dia para o outro, o Alferes Bastos, conhecido também por Alferes Bolinhas, devido à estrutura física ligeiramente arredondada, tornou-se a pessoa mais importante daquela zona. Tinha “casa de comando”, os faxinas que entendesse e a vassalagem dos seus militares e dos indígenas.
Andava ainda a adaptar-se a essas mordomias naquele reino de calmaria, quando se vê visitado por Hamed Jalu, Chefe de Tabanca, acompanhado de Jeni, uma das suas filhas.
- Alfero, a mim bem cumpre nha honra di paga pa bô mil quinhento peso.
Espantado, o Alferes respondeu:
- A mim… não… não deve nada. Mil e quinhentos pesos?! Porquê?
O Chefe de Tabanca esclareceu então que esse dinheiro lhe havia sido emprestado, para um pequeno investimento na Tabanca. E como não tinha conseguido pagar a dívida ao anterior Comandante, vinha entregar a sua filha como pagamento da dívida.
O Alferes ainda ripostou:
- Não vou ficar com a sua filha. Leve-a e depois, quando puder, vem pagar.
O Chefe da Tabanca reagiu logo:
- Não, alfero. É probrema di honra. Bô cá pude nega. Honra cá tem preço. E foi embora.
A Jeni não veio viver para o aquartelamento mas ficou por perto, ao dispor do Alferes.
Inicialmente, o Alferes não sentia muita vontade em servir-se da rapariga. Ainda sentia bem perto de si as carícias e os aromas das despedidas amorosas do Continente. Porém, à medida que o tempo passava, ia caindo na realidade e embrenhava-se cada vez mais nesse novo ambiente. Aliás, começou a desfrutar do bom e das mordomias existentes ao seu dispor. Daí, a estar na cama com a Jeni foi um pequeno passo.
Quando isso aconteceu, ele ficou deslumbrado. Parecia que nunca tinha sentido tanto prazer. É certo que ele já andava “esfomeado”, porém, quando se apercebeu de todas as curvas firmes daquele corpo seco e fresco, quando sentiu as suas carícias e a sua pele macia, ficou irremediavelmente preso à “bajuda”.
Passaram-se uns meses e o Alferes já não via outra coisa que não fosse cumprir religiosamente as suas visitas prolongadas à Jeni.
Os seus militares não se atreviam a fitar aquela miúda, a bajuda do Alferes Bastos. Ninguém sonhava que aquela conquista se devia a um compromisso de honra, que nada tinha a ver com as capacidades de conquistador, do aparente garanhão. O certo é que ele próprio, envaidecido, gostava que o admirassem como conquistador. Era só vê-lo “inchado” e aperaltado a caminho da Jeni. Apenas, o Furriel Matosinhos, um verdadeiro atleta, digno de pisar as arenas do Olimpo, não se conformava. Sorrateiramente, lá se ia aproximando da Jeni. Chegou ao ponto de a “apanhar”, de imprevisto, nua, a ensaboar as coxas e sua “mama firme”. Porém, perante as várias insistências, ela ameaçou-o de que iria falar dessa perseguição ao Alferes.
Mulheres guineenses
Tudo corria às mil maravilhas até que um dia chegou um rapaz que veio pagar a dívida-resgate da Jeni. Desembrulhou uns papéis e mostrou os 1.500 pesos:
- A mim bem paga bô e tomá Jeni pa bai sê muié de mim.
O Alferes não lhe ligou grande importância e, para o despachar, atirou:
- Ela, agora vale 2.000 pesos. Tu não tens dinheiro para pagar.
O rapaz saiu a barafustar baixinho. O Alferes ficou a pensar na próxima visita dele.
Após o jantar, como de costume, o Alferes pôs-se a caminho e foi para a tabanca, para estar com a Jeni. Porém, a Jeni já lá não estava. No dia seguinte aconteceu o mesmo.
Ao terceiro dia, o rapaz voltou. Sem mais delongas, desembrulhou os papéis e mostrou os 2.000 pesos. Entregou-os, sem dizer uma palavra.
No dia seguinte, o Alferes Bastos foi falar ao Chefe de Tabanca. Cumprimentaram-se, mas a Jeni não se aproximou, nem o rapaz que fora fazer o pagamento. Pensando numa saída airosa, o Bastos sacou do bolso 500 pesos e estendeu-os para o Chefe Hamed Jalu, ao mesmo tempo que dizia:
- Toma lá estes 500 pesos que consegui ganhar com a venda da Jeni.
O Chefe Hamed não se mexeu. Apenas se esticou mais, apoiado na sua bengala, levantou bem a cabeça e, olhos nos olhos com o Alferes, respondeu:
- Não, alfero, não. Honra ca tem preço!
Silva da Cart 1689
(NOTA: Em crioulo, “ca” significa “não”)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16488: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (34): A “santidade” do Santos
6 comentários:
Zé, tu és tramado!.. Estás sempre atento e pronto a ouvir e recolher uma boa história. Como se diz aqui, em terra de mouros, e sem qualquer ofensa sexual, és homem para “dar o c… e oito tostões” por uma boa história!... E ainda bem, o nosso próximo Nobel da Literatura, o António Lobo Antunes, também não perde pitada de um boa história. É assim que se fazem os bons escritores, os grandes escritores… A começar pelo nosso grande Camilo que deve ter “emprenhado” muito pelo ouvido… E esta que tu reconstituis é uma daquelas que eu chamo com “mural ao fundo”… Quero eu dizer: é um “conto moral”…
Como sabes, estamos aqui, no blogue, proibidos de fazer juízos sobre o “comportamento” (humano, disciplinar, operacional, profissional, ético, etc.) dos nossos camaradas que serviram no TO da Guiné… Tu não identificas, e bem, o alferes miliciano em questão… a não ser pelo apelido, Bastos, e a alcunha, Bolinhas… As nossas normas, porém, não nos impedem, neste caso, de comentar (e fazer a nossa leitura de) a tua história…
Como diz o povo, quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto…. A história parece-me verosímil, memso com um pontos a mais... Resta saber em que “chão” é que se terá passado: se foi no Cacheu, poderia ser entre os felupes ou os manjacos.. O nome do régulo Hamed Jalu, poderia levar-nos a pensar nos primeiros… Mas, não, o nome não existe, ou não me parece que exista, na nossa querida Guiné: deve ser uma corruptela de Mamadu Jaló, logo nome fula ou mandinga e, portanto, muçulmano… E aí temos que ter em conta os valores (morais, religiosos, culturais…) desses grupos… que são complexos… E que nos merecem o mesmo respeito que o dos cristãos, dos animistas ou dos ateus…
A ideia simplista (que estava presente na mente de alguns camaradas nossos) é que havia “pais” que “vendiam as filhas”… Ora, será bem voltar a ler o nosso Camilo Castelo Branco para a gente se aperceber da venalidade e do mercantilismo das práticas casamenteitas no nosso país até tarde (pelo menos até aos finais do séc. XIX) tanto entre as classes "baixas" como sobretudo nas classes "altas"...
Não sejamos etnocêntricos: os sistemas de parentesco (e as práticas de casamento) são das coisas mais complexas dos grupos sociais humanos, dizem-nos os antropólogos... Até agora, mais do que os homens, as mulheres sempre tiveram um valor material e simbólico muito alto.... Quem não perceber isto, não percebe a história da humanidade, das grandes religiões, da nossa civilização, da nossa cultura...Não sejamos etnocêntriscos. Os sistemas de parentesco e as práticas de casamento entre os diferentes grupos sociais humanso são das coisas mais complexas, dizem os antropólogos…
Dito isto, e seja como for. a tua história é uma história sobre o conceito de honra, assente no valor da palavra dada, no respeito pelo compromisso, no contrato social, enfim, nos “usos e costumes” (conceito perigoso e enganador)… A "honra" é um dos conceitos mais complexos bem como a vergonha ou o pecado: por sua causa, muitos seres humanos cometem suicídio...
(continua)
(Continuação)
Dito isto, acho que o nosso “Bolinhas” (e eu também conheci alguns na tropa e na guerra) foi alarve e abusou de um “bem” que não lhe pertencia… A “coisa” dada para pagamento (ou garantia de pagamento) da dívida não lhe pertencia. Pertencia à “tropa” que é uma instituição. O gajo usou e abusou, valendo-se dos galões. O gajo abusou do poder, e apropriou-se de um bem que, em última análise, pertencia à “respublica”, à “coisa pública”…
Esteve mal o “Bolinhas”… e revelou restos da mentalidade esclavagista… Não creio que tenha “conquistado” a filha do régulo por amor, uu seja, “de livre vontade”… O caso foi grave, deveria ter acabado na justiça e o “Bolinhas” deveria ter tido o merecido castigo… Aliás, teve-o: a sabedoria africana acabou por triunfar sobre o espírito mesquinho de um pequeno chefe tuga que, se calhar, nunca foi digno da farda e dos galões que lhe confiaram…
Zé, estou ser severo. padreco e moralista ? Não, estou-me a rebolar de rir (ou, melhor, de sorrir com sorriso amarelo, deixei de rir depois que vim da Guiné), ao ler o fim da tua história.
Um xicoração para ti e os demais “morcões” da Tabanca dos Melros, aqui do sul, do sol, da terra dos “mouros”… Luís
PS – Na Tabanca Grande, humor com humor se paga.
Chiiiii,Furriel ,Ferreira,Alfero Bastos ,quando estiver contigo ,vai despejar balde d'água pelo cabeço di vó. Quanto ao texto,como diz um amigo meu ,"Supimpa" !Grande abraço.
Ricardo Figueiredo
Mais outra estória escabrosa, como só tu sabes contar, utilizando as confidências e as fraquezas dos nossos camaradas. José que Deus te perdoe, mas eles bem merecem para penitência dos seus pecados, para castigar a sua vaidade de orgulhosos "conquistadores" e imortalizar a devassidão dos seus desejos, tão do seu agrado. Alguém disse que entre os homens um outro prazer que eles gostam de experimentar além do prazer sexual é quando o divulgam junto dos amigos. Um bom macho gostam de anunciar e exibir perante todos as suas capacidades e o seu poder sobre as fêmeas. Antes uma bajuda do que ter que fazer um buraco no colchão como um alferes que eu conheci por lá. O Luís Graça sem querer ser severo ou moralista acaba por incriminar um pouco o camarada alferes Bastos mas perante uma oferta daquelas, no meio da África tropical"quente" a interferir com os nossos gloriosos vinte anos, nem sei se todos os padres capelães lhe iriam resistir. Talvez o nosso camarada tenha doado os mil e quinhentos pesos ou tenha mandado construir um altar na paróquia dele a alguma santa virgem. Se os guardou para si foi mais um, sem ser dos piores, a engrossar a lista de corruptos e ladrões que aparecem sempre em tempos de paz ou de guerra. Já se passaram mais de quarenta anos portanto já está amnistiado. Se tiveres mais aventuras eróticas dele vai abrindo o livro talvez descubras algum "Casanova" ou um autêntico macho lusitano.
Um abraço para ti e para o tal alfero que não sei se conheço.
Francisco Baptista
Caro Zé Ferreira,
A moral acima de tudo. Boa história.
Um abraço
Zé Ferreira
Continuo a ler-te e a gostar do que leio.
Um abraço
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