domingo, 13 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16715: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (16): Os nossos dois soldados, cadastrados, que tentaram fugir para o Senegal... Para sorte deles e tranqulidade minha, foram apanhados logo, uma hora depois, pelas milícias que lhes mandei no seu encalce...

1. Mensagem, com data de 11 do corrente,  de Domingos Gonçalves [ex-alf mil inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), autor de O Céu de Guidage (edição de autor, 2004]

Braga/11/11/2016

Antes de mais, boa noite de S. Martinho, para todos os que navegam pelas ruas largas da Tabanca Grande, com muitas castanhas, e bom vinho.

Depois, envio mais um texto que poderá´ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


2. CCAÇ 1546  > Destacamento de Guidaje, dia 18/07/1967

De tarde dois soldados tentaram fugir para o Senegal. Eram duas da tarde quando iniciaram a fuga. Eu estava sentado junto do abrigo da 1ª secção quando olhei para os lados da fronteira e vi dois indivíduos brancos, em tronco nu, atravessar a bolanha para o outro lado. Achei estranho. De imediato dirigi-me à porta de armas e perguntei ao sentinela o que se passava, e quem eram os fugitivos.

Tratava-se de dois cadastrados que vieram de outras companhias, já com diversos castigos, e que o comandante de companhia enviou para este paraíso. Deu-lhes um lindo prémio! Mas, apesar deste meu reino ser um verdadeiro paraíso, eles quiseram fugir. São da raça de satanás, que tinha o gozo do paraíso e preferiu as profundezas do Inferno!. Mas eles tiveram mais sorte do que o diabo. Acabaram por não perder o céu donde quiseram sair. Afinal eu mandei buscá-los às portas do Inferno...

São dois loucos. Saíram do destacamento em tronco nu, armados de G3, e de granadas de mão, atravessaram a fronteira na bolanha e seguiram pelo Senegal dentro.

Quando me apercebi do que se passava mandei chamar as milícias nativas e mandei-as em perseguição dos fugitivos, em território do Senegal.

A decisão que tomei teve de ser muito rápida. Bastariam alguns minutos de hesitação e eles já estariam do outro lado, muito dentro do Senegal, onde não teríamos nenhuma hipótese de os prender.

Cerca de uma hora depois, as milícias conseguiram prendê-los, a mais de dois quilómetros de Guidage, já bastante longe da fronteira.

De imediato informei o comando da companhia sobre o sucedido e pedi que os viessem buscar.

Guidage não pode transformar-se num manicómio, e muito menos numa prisão de qualquer tipo de cadastrados. Pelo menos vou tentar que isso não aconteça.

Só não consigo é adivinhar o que terá passado pela cabeça destes dois rapazes, que nem são ingénuos, para que tenham planeado, de forma tão irracional, a fuga para o outro lado. Não consigo mesmo entender para onde pretendiam fugir, ou a quem se queriam entregar.

Desertar da tropa, a partir desta terra, dada a vizinhança da fronteira, nem é difícil... Eles é que tiveram azar quanto ao momento em que pretenderam concretizar uma fuga mal pensada... Mesmo para eles, penso que este deve ter sido o melhor desfecho para toda esta história triste.

Se tivessem sido apanhados pelas autoridades senegalesas, não se livrariam de trabalhos. Se por acaso fossem os turras a prendê-los, iriam passar, por certo, bastantes mais problemas. Assim, resta-lhes apenas cumprir o castigo que a tropa entender aplicar-lhes.

Como não participei, por escrito a ocorrência, ficando tudo pela mensagem em que pedi para os retirarem de cá, pode muito bem acontecer que não venham a ser molestados.


Destacamento de Guidaje, dia 19/07/1967

Veio de Binta [, sede da companhia,]  uma coluna de viaturas. Para facilitar o trabalho aos que vinham a escoltar a coluna, mandei picar a estrada até Ujeque.

Trouxeram só três viaturas e passaram bem...

Das coisas que fazem falta no destacamento não trouxeram nenhuma. Vieram apenas buscar os dois indivíduos que ontem tentaram fugir. É um problema a menos que deixo de ter aqui.

De tarde dei uma volta pelos arredores de Guidage, para me certificar do andamento dos trabalhos agrícolas.

Está tudo muito adiantado. Esta gente tem trabalhado bastante. O calor e a chuva não têm prejudicado o andamento dos trabalhos.

Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage fazem-me lembrar os da metrópole. Eles têm um pouco da verdura do Minho... E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!...
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Nota do editor:

Último poste da série 28 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16534: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (15): 1 de Abril de 1967, o dia em que se verificou a morte, em combate, do Alferes Linhares de Almeida

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mais duas deserções "atípicas" ? Neste caso, tentativas, frustradas, de deserção...

É interessante, vens confirmar que havia lugares no mato que , aos lhos dos nossos chefões em Bissau, funcionavam, como Elvas e Penamacor: pensavam eles que eram uns bons presídios, sem muros, só com arame farpado e "turras" á volta...

Ficamos a saber que Guidaje (tu preferes escrever com "g"...) era um desses sítios lá no cu de Judas... Curiosamente ao pé da fronteira, tal como Guileje, para onde se mandavam também, li algures, pobres diabos com problemas com a justiça militar, "cadastrados", como se dizia na caserna...

Camarada Domingos, talvez nos possas dizer qual era o "crime" de que estes homens era, acusados para serem castigos como o "degredo" em Guidaje"...

Um abraço e boa continuação do verão de São Martinho. LG

Anónimo disse...


Domingos Gonçalves Gonçalves
14 NOV 2016 08:46

Prezado Luís Graça:

Saúde. Sobre a natureza do "crime, ou crimes" cometidos por aqueles rapazes, nas unidades
por onde tinham passado, nada sei. Aliás, eles estiveram em Guidage poucos dias. Por outro lado, os processos individuais estavam em Binta, sede da companhia.

Contudo, penso poder referir, que boa parte das punições, tinham muitas vezes por base os caprichos de quem tinha autoridade. Muitas vezes puniam-se actos, que não passavam de puras banalidades.

Um abraço amigo.