1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Haja luz e não haja inundações, Veneza oferece sempre esplendor, suscita todo o espanto porque oferece sem reservas a sua magnificência, a singularidade de uma cidade implantada em lagoas, uma arte que nasceu da tradição bizantina e que deu à humanidade pintores excecionais como Bellini, Mantegna, Carpaccio, Lorenzo Lotto, Ticiano, Tintoretto, Tiepolo, Francesco Guardi e Canaleto. São as pontes, o constante sobe e desce, as sonoridades dos barcos a vapor e os táxis aquáticos, as cantilenas dos gondoleiros, os turistas a ir ou a regressar do centro nervoso da cidade, S. Marcos.
Era uma estadia de pouco mais de dois dias, preparei-me para o programa mais solto do mundo, nada de compromissos e tudo quanto viesse à rede era peixe.
Um abraço do
Mário
Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (9)
Beja Santos
São dois dias inteiros na Sereníssima, não dá para encher a cova de um dente, há que ser parcimonioso no que se pretende ver, visitar, calcorrear; acresce que chegou o calor e dá para perceber logo na estação de Santa Lucia que Veneza entrou na enchente, dá mesmo para pensar como é que esta cidade é transitável no Verão. A escolha do aboletamento, os preços moderados, leva o viandante a fixar-se num lugar que se chama Fondamente Nuove, em frente à ilha-cemitério de S. Miguel, felizmente com estação à porta para no final da jornada partir diretamente para o aeroporto de Marco Polo.
Portanto, nada de tentações de visitar repetidas vezes a Basílica Bizantina de S. Marcos ou o Palácio dos Doges, nada de andar com guia na mão para entrar naquelas portentosas igrejas barrocas onde se admiram Veronesos, Tiepolos, Tintorettos e Tizianos; igrejas que dão por nomes muitos belos: Santa Maria Gloriosa dei Frari, com obras de Bellini e Tiziano; Madonna della Salute, com a cúpula a dominar o grande canal; San Giorgio Maggiore, fronteira à Piazzetta. O viandante conhece Murano e Burano mas não conhece Torcello, na Laguna, está cheio de entusiasmo por rememorar alguns palácios do grande canal como Cà Grande, Cà Foscari, Cà d’Oro, Cà Pesaro… e assombrar-se com a fachada da Fenice, a magnífica casa de ópera. Fiquemos por aqui. Mal desembarcado, logo o enamoramento com a paisagem sempre desigual, sempre a antítese da monotonia. Sim, esta a Veneza que guardo no coração.
Arrumados os trastes nas frugalíssimas instalações da casa dos Jesuítas, sem agenda organizada para saborear a arte veneziana, toca o viandante de encostar-se ao muro para ver o trânsito de gôndolas ou táxis aquáticos, com escassas horas de luz do dia pela frente, urge avançar pela Rainha do Adriático a caminho de S. Marcos, haja condições e um assento, e ali se fica especado a ver o movimento a partir da Piazzetta até à Praça de S. Marcos, que tem umas proporções tão delicadas. Há praças únicas, desde o Terreiro do Paço à Praça Vermelha mas dito com sinceridade a harmonia da Praça de S. Marcos é um dado perene para quem a contempla. Napoleão Bonaparte tinha carradas de razão.
O viandante volta-se agora para a basílica, já contemplou mil vezes o Campanile, quer tomar nota de alguns elementos da fachada. Leva um guia de Veneza na mão e não tem pejo em reproduzir o que ali se escreve sobre a basílica: em forma de cruz grega e encimada por cinco abóbadas enormes. Uma basílica que tem vindo a conhecer ao longo dos muitos séculos modificações. Olhou para os cavalos, hoje réplicas dos originais de bronze dourado que estão no interior da basílica; passeou-se demoradamente a ver mosaicos da fachada, não são todos tão antigos quanto se pensa, há ali um mosaico do século XVII onde se vê o corpo de S. Marcos a ser levado de Alexandria, escondido num carregamento de carne de porco.
Mais uma deambulação, desta vez o viandante especa-se frente a um conjunto de valor inesgotável, os Tetrarcas, grupo escultórico de pórfiro (Egito, século IV) representa Diocleciano, Maximiano, Valeriano e Constâncio: tetrarcas nomeados por Diocleciano para colaborarem no governo do Império Romano.
Por hoje chega, já foi uma dose cavalar à volta de S. Marcos, amanhã de manhã aqui se virá para ver o interior com algum preceito, a fazer horas para um jantar suculento, começa o desfastio de andar rua a rua. É nisto que uma tabuleta chama à atenção, aqui mesmo viveu e seguramente aprontou algumas das obras-primas que de vez em quando o viandante vai apreciar ao Museu Calouste Gulbenkian, o celebérrimo Francesco Guardi, que aqui também morreu. O viandante tem por ele uma enorme devoção. Artistas venezianos consagrados são Bellini, Mantegna, Lorenzo Lotto, Tintoretto, Veronese, seguem-se Francesco Guardi, Tiepolo e Canaletto, sem desprimor para este último, para o viandante é inimaginável Veneza sem a pintura de Guardi.
Anoitece, paulatinamente Veneza despovoa-se, os turistas concentram-se, seguir-se-á o jantar, e depois ouvir-se-ão os barcos a motor, mais ou menos trepidantes, os barcos-ambulâncias têm aquela sirene angustiante que nos afeta as entranhas. O viandante está consolado com estas horas de reencontro, veio sem pressa e bem gostaria de ir visitar o belo Museu da Accademia ou o Museu de Peggy Guggenheim. Bem se tentou fotografar a ponte do Rialto, a mais célebre das pontes venezianas, estava com tapumes.
Na casa dos Jesuítas, espera ao viandante uma cena canalha, às vezes o barato sai caro, são dois quartos servidos com uma só casa de banho, uma senhora russa esteve lá mais de uma hora no duche e outras serventias. Procurou-se um protocolo de funcionamento, impossível, a senhora, por sinais, deu a entender que só falava a língua de Tolstoi. Pelas 4 da manhã, nova barulheira na casa de banho, mais uma hora e tal de esfregação e barulho de secador de cabelo. O viandante perdeu a cabeça, gritou ou imprecou bem alto. Não resultou, repetir-se-á a farsa na noite seguinte.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16704: Os nossos seres, saberes e lazeres (184): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (8) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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