Tânger
1. Em mensagem do dia 23 de Janeiro de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos a terceira história da sua mini-série "O meu amigo Mohammed", este de Marrocos.
Caros amigos
Junto a história do amigo Mohammed.
Grande abraço
JFSilva
Memórias boas da minha guerra
39 - O amigo Mohammed
3 - De Marrocos
Foi uma viagem incrível a que fizemos no verão de 1975, também conhecido pelo Verão Quente do período revolucionário da nossa democracia. Éramos dois casais, amigos de infância, que se lançaram para a aventura, a caminho de Marrocos. A curiosidade levou-nos a almoçar em Rio Maior onde uma semana antes tinha havido fortes escaramuças provocadas por agricultores contra a reforma agrária, personificada pelas forças políticas de esquerda, especialmente pelo PCP e FSP. Tivemos oportunidade de ver os restos da “barricada” que havia paralisado o País durante alguns dias.
Estive preso mais de cinco horas na fronteira Vila Verde de Ficalho/Rosal de la Frontera, por me terem confundido como um PIDE em fuga, Após uma noite mal dormida (e mal comida) em Sevilha, seguimos para Algeciras. Esfomeados, pensámos aproveitar bem a viagem no restaurante do barco para Ceuta, onde não faltava alimentação. Porém, o enjoo e os vómitos aterraram-nos. Foi horrível quando vomitei lá de cima, da esplanada, sobre as pessoas do piso inferior.
Ceuta ainda era Espanha e, para passarmos para Marrocos, precisávamos de “Visto”. Isso levou-nos para uma fila interminável. Passámos esse Domingo quase todo em Ceuta, mas de uma forma pouco agradável.
Tânger
Já em Tânger, optámos pelo regresso, uma vez que a frágil mulher do meu amigo, além do medo permanente, não suportava a comida local nem aqueles fortes aromas. Acumulámos, rapidamente, várias peripécias inesperadas com arriscados contratempos à mistura.
Embora me sentisse bastante ligado a África (estive na guerra da Guiné e, como civil, em Angola), apercebi-me de que perdera o entusiasmo de lá voltar.
Mas, 25 anos depois, tive um convite de Rabat para uma possibilidade de negócio. Foi o vizinho Neca Souto, camarada da guerra da Guiné, que me proporcionou essa ligação. Conheci então o meu amigo Takirene, ex-deputado parlamentar e herdeiro de uma grande empresa corticeira que entrara em queda logo após a crise causada pelo desmantelamento da URSS.
Acabámos por fazer uma sociedade com base na cortiça de Marrocos, fornecida por ele, e o seu tratamento em Sta Maria da Feira. Passei a fazer viagens assíduas a Rabat e à fábrica de Bouznika, a uns 30 Km a sul de Rabat.
Naquela viagem levava a preocupação de aclarar a estranha discrepância dos tickets das balanças, entre a origem e a chegada.
Posto o problema ao Mohammed, encarregado dos carregamentos dos camiões, ele acabou confessando que “é natural que alguns indivíduos se tenham escondido entre a cortiça para passar as fronteiras”.
Naquela época, era prática diária o aparecimento de relatos chocantes sobre a passagem ilegal de migrantes pelo estreito de Gibraltar, vindos do norte de África. Foram descobertos corpos destroçados nas estradas e outros asfixiados entre os ferros de suporte dos camiões. Na costa marítima espanhola, as pequenas embarcações de fugitivos eram recebidas a tiro pela guarda civil.
Muitos dos migrantes eram apanhados e devolvidos à origem e outros desapareciam por Espanha e Portugal, vagueando de terra em terra, ora escondidos, ora aparecendo como vendedores de artigos supostamente desviados, de contrafacção.
Ali, em ambiente bastante mais acolhedor, saboreámos uma espécie de “Paelha à Marroquino”, onde era evidente a fartura de bom marisco. E, embora a “proibição” do álcool fosse uma regra sagrada, eu estava salvaguardado pela excepção do seu cumprimento, ao abrigo duma cláusula governativa que o legalizava, por interesse turístico. Não posso esquecer os bons vinhos que lá bebi, especialmente um tal Cabernet Sauvignon, da região de… Casablanca.
Foi mais um agradável serão, em que muito falámos sobre aquela cultura árabe, um tanto virada para o ocidente europeu. Ouvir o Takirene falar sobre isso era fascinante. Ele próprio, apesar de rico e de formação académica na Europa, vivia entre esses dois mundos. Era licenciado em Direito numa Universidade Católica Espanhola. Contava que seu pai gostava da cultura europeia. Todavia, não podia afastar-se muito dos costumes e da lei islâmica. Por exemplo, referiu que a sua mãe “oferecera ao pai, como prova de amor” uma jovem, para segunda mulher, capaz de lhe dar o prazer que já não conseguia.
Tinha uma irmã mas, segundo a lei, foi ele, filho varão, o principal herdeiro. Casou e procurava o seu descendente varão, que não apareceu. Teve cinco filhas que colocou na Europa a estudar nos melhores colégios. Vivia com o desgosto de ter como principal herdeiro, o seu sobrinho, órfão, tido como vadio, quase sem formação escolar e sem interesse em ocupação responsável. Suspeitava que se metera na droga. Enfim, apesar da fortuna familiar, vivia preocupado com o futuro das filhas.
Aquele agradável serão do jantar prolongado foi interrompido pelo Contabilista Hassan, que se aproximou, a solicitar a atenção do Dr. Takirene. Veio informar que o camião TIR ainda não saíra para Portugal, devido a um grave incidente. Quando o Mohammed, encarregado das cargas, tentou impedir a feitura do buraco no meio da carga, foi ameaçado de morte. O camião está pronto para sair da fábrica e à espera do motorista. O Hassan queria saber o que fazer, antes de o ir buscar ao hotel e lhe entregar as guias.
Seria fácil a denúncia destes foragidos. No entanto, era visível a complexidade de situação tão perigosa. A bonomia habitual do meu sócio não queria alhear-se do problema social daquele gente que lutava pela sobrevivência. Por outro lado, preocupava-se com as consequências que o Mohammed pudesse vir a sofrer.
- Que me dizes, José, sobre esta situação?
Não contava ter de lhe dar opinião. Todavia, adiantei:
- Por mim, não sei de nada, nem virei a saber.
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Uns anos mais tarde, já fora de qualquer negócio com Marrocos, quando saía do Restaurante As Cubatas, logo a sul de Albergaria, dava uma olhadela aos artigos expostos no chão. O vendedor fitou-me e disse:
- Patrão, escolhe o que quiseres, tenho muito bom material.
Disse-lhe que não precisava de nada e lamentei que a cana de pesca não fosse o que precisava. Ele respondeu que eu poderia comprar outras coisas em Lourosa, porque ele também andava por lá e se abastecia nos armazéns de Sanguedo. Notei que já me conhecia.
- Como sabe que sou de lá?
Ele logo respondeu:
- Tu trabalhaste na cortiça e eu conheço bem Bouznika e o Dr. Takirene, de Rabat. Vous êtes bonne personne.
Ao afastar-me, ele insistia:
- Quero oferecer-te alguma coisa.
Surpreendido com a oferta, olhei para trás e ele acrescentou:
- Nous sommes amis de Mohammed.
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16961: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (38): 2 - O amigo Mohammed da Mauritânia
2 comentários:
O frio que nos retém em casa obriga-nos a ir às Boas Histórias das nossas Memórias.
E o teu humanismo Zé Ferreira, está lá todo neste bela história.
Gostei do texto do Zé Ferreira, aliás já avalizado pelo Jorge Portojo, um artista com muitas qualidades e com um refinado gosto que honra a cidade do Porto. A viver há mais de quarenta anos nesta cidade aprendi a apreciar a bondade e solidariedade dos seus habitantes, o rei D.João IV doou o coração a esta nobre cidade, sempre tão amiga e solidária sobretudo com os mais desprotegidos. Tenho feito alguns amigos nesta cidade, nascidos no casco antigo e no mais moderno desta terra, com um grande coração e com uma grande nobreza de carácter. Alguns, a par disso, também com uma grande cultura como é o caso do Jorge Portojo que me honra a pela sua amizade e ainda mais ao José Ferreira de quem é amigo há longos anos.
Francisco Baptista
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