sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16995: Notas de leitura (924): Os primeiros documentos de Amílcar Cabral na Guiné, 1952 (Mário Beja Santos)

Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues
Com a devida vénia a Casa Comum


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Folheava os "Ecos da Guiné", publicação oficial que teve audiência nos anos 1950, e deparou-se-me uma série de boletins informativos que saíram do punho de Cabral, quando ele estava à frente do Posto Agrícola Experimental dos Serviços Agrícolas e Florestais.
Tendo saído menino e moço para Cabo Verde, regressa a sua terra-natal depois de diplomado em Engenharia Agronómica, especialidade de erosão de solos. Vem acompanhado pela mulher, aqui chegam em Setembro de 1952. É um período sobre o qual se teceram algumas lendas: que teria sido expulso, o que se dá como não provado; que graças ao recenseamento agrícola a que procedeu entre 1953 e 1954, ganhou a confiança das populações, o que é manifesto exagero, Cabral percorreu território muito rapidamente, mas é certo e seguro que ficou a conhecer a natureza dos solos e sobretudo as reais capacidades do uso de certas regiões para constituir bases de guerrilha, no interior da Guiné. Escrevia com precisão e rigor, com um domínio absoluto da língua, como estes excertos comprovam.
Os especialistas já conhecem estes documentos, mas é bom que eles venham até ao nosso auditório.

Um abraço do
Mário


Os primeiros documentos de Amílcar Cabral na Guiné, 1952 

Beja Santos 

Em Setembro de 1952, Amílcar Lopes Cabral está à frente do Posto Agrícola Experimental dos Serviços Agrícolas e Florestais da Província. Introduz um novo método de comunicação, redige boletins informativos que irão ser publicados em “Ecos da Guiné”, uma publicação oficial que era seguramente lida pelo funcionalismo da Administração e um vasto público ledor da região.

No número 30, com data de 1 de Janeiro de 1953, é publicado o Boletim Informativo n.º 1. Escreve Cabral (não vem assinado, mas é inequivocamente prosa sua): “Constitui um lugar-comum a afirmação que a agricultura é a base da economia da Guiné. Daí o caráter de ‘problema central’ de que se revestem ou devem revestir-se todos os assuntos referentes a esse ramo de produção. Ao posto agrícola experimental está, ou deve estar, reservado o papel de concorrer efetivamente para o melhoramento e o progresso da agricultura guineense”. Pouco depois de empossado Cabral apresenta um relatório sobre o estado em que se apresentava o estabelecimento. Abaixo se publicam alguns estratos. “Duas condições, pelo menos, devem estar na base da consecução deste objetivo: a) a competência e dedicação de quem dirige o posto bem como de todos os trabalhadores; b) o apoio (moral e material) não só da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais, mas também do próprio Governo da Província. Essas condições, indispensáveis, completam-se. São a mola real que poderá fazer com que o posto saia da letargia e do abandono em que tem vivido”.
“… O Posto não é, nem deve ser, como muitos parecem julgar a ‘granja do Estado’, destinada a satisfazer as necessidades de alguns habitantes da capital, em hortaliças e frutas. Hoje, este organismo deve corresponder à necessidade da existência de uma Estação de Experimentação Agronómica, cujo objetivo seja o melhoramento da agricultura, base da economia da província. Experimentação orientada cientificamente, de molde a conseguir resultados práticos imediatos, que sirvam o progresso da terra e do Homem. Fora deste objetivo, sem a dedicação dos seus trabalhadores e sem o efetivo apoio das entidades superiores, o posto não passará de um permanente motivo de vergonha”.

Sobre este relatório de Cabral, o Chefe da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais, despacha do seguinte modo: “Na própria elevação dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, dos quais o Posto Agrícola é uma das suas imagens reais, todo o apoio será uma realidade”. E o Governador da Guiné procede ao seguinte despacho. "Cremos que meios materiais, dentro do possível, não lhe serão regateados”.

Segue-se a descrição do trabalho executado no primeiro trimestre, é minucioso no que se impõe fazer no campo, nas dependências da granja de Pessubé, sobre o estado das culturas, viveiros e experimentação. Sobre esta última matéria, observa o diretor: “Deve dizer-se que não existe atualmente no Posto qualquer trabalho de experimentação, na sua aceção técnico-científica”. Refere amendoins, bananeiras, café, cacau, cana-sacarina, cultura do algodão.

No número de Fevereiro de 1953, “Ecos da Guiné” publicam o Boletim Informativo n.º 2. Fala-se de uma virose chamada Roseta que flagela a cultura do amendoim, volta-se a reportar o trabalho executado quanto ao estudo das culturas, qual o plano de trabalho para a época que se avizinha e quanto à experimentação é referido que “a cultura experimental do algodão tem-se desenvolvido de molde a permitir uma esperança no seu êxito”. E entra também na observação de outras espécies: trigo, sorgo, cânhamo, soja, girassol, algumas variedades de tabaco.

O Boletim Informativo n.º 3 é publicado em “Ecos da Guiné” no número referente a Maio de 1953, fala-se de jutas, dá-se conta do trabalho executado, o estado das culturas, e a narrativa ganha alento quando se fala da experimentação, com os resultados obtidos no algodão, cana-sacarina, cultura do girassol, feijões, soja, trigo, tabaco.

Na edição de Julho e Agosto de “Ecos da Guiné” publicam-se os Boletins Informativos 4 e 5, e temos aqui um texto esclarecedor da personalidade de Cabral: “Há na Guiné escassez de braços aptos a trabalhar a terra? Não há escassez de braços. Acontece apenas que o agricultor indígena tem relutância em trabalhar por conta alheia. Voluntariamente, trabalha por conta própria, integrado nos costumes da sua comunidade. Na base desta atitude existirá por certo, uma razão económica”. E na sequência destas considerações, prevê grandes mudanças devido à mecanização agrícola, que se adivinha.

Acaba aqui o boletim informativo. Cabral e a mulher, Maria Helena Vilhena Rodrigues, vão envolver-se em fins de Setembro no Recenseamento da Agricultura Indígena, por insistência da FAO. Estão nesta altura já recenseadas as circunscrições de Farim, Mansoa e Teixeira Pinto. Estes textos que acabamos de reproduzir virão a ser publicados nas obras agronómicas de Amílcar Cabral, os seus relatórios referentes ao recenseamento agrícola serão primeiramente publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Findo o recenseamento, Cabral e a mulher adoecem com o paludismo (há uma corrente mítica que pretende que Cabral foi expulso da Guiné pelo Governador Mello e Alvim, não há nenhuma prova, o próprio biografo de Cabral, Julião Soares Sousa, contesta) e regressam a Lisboa. A vida de Cabral vai mudar, trabalhará em Portugal e em Angola até 1959, em seguida parte para a clandestinidade, no Norte de África.

Fotografia atual da casa da Granja de Pessubé em que viveram Amílcar Cabral e Maria Helena Vilhena Rodrigues, reproduzida no nosso blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16990: Notas de leitura (923): "A presença portuguesa na Guiné : história política e militar 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, Porto, Caminhos Romanos, 2016, muitos anos de pesquisa de arquivo, um milhar de páginas, fotos, mapas e outra documentação preciosa... Uma obra de referência, de grande rigor, incontornável. Pref. do almirante Nuno Vieira Matias, antigo cmdt do DFE 13 (CTIG, 1968/70)

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