Mário Fitas, de alcunha "Vagabundo", alentejano de Vila Fernando, Elvas, o fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas" (Cufar, 1965/67), que gostava de praxar os periquitos...
Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67.
Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto abaixo à esquerda, março de 2016, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais.]
Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XVI Parte > Cap VIII - Guerra 2 (pp. 51-52)
por Mário Vicente
Sinopse:
(i) Depois de Tavira (CISMI) e de Elvas (BC 8),
(ii) o "Vagabundo" faz o curso de "ranger" em Lamego;
(iii) é mobilizado para a Guiné;
(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na Guerra");
(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;
(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;
(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;
(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;
(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):
(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;
(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;
(xiii) chega a Cufar o periquito fur mil Reis, que é devidamente praxado.
Dia de correio, hoje a Dornier deve poder aterrar. O céu está aberto e as chuvas, embora já começassem, ainda são leves e a pista está boa. Segundo notícias do comando, deve chegar mais um reforço, o furriel periquito Reis, que vem substituir o evacuado Zé Luís.
Paolo, embora um pouco fleumático, gosta por vezes de entrar na brincadeira com a malta, e, desta vez é ele que tem a ideia e trama a safadeza. Entra na messe de sargentos onde a malta de folga conversa ou vai jogando uma partida de loto. Desafia:
– Eh, malta, não se faz a recepção ao periquito?
– Boa!
Clamam todos em uníssono!...
– Como vamos fazer?
– É pá, eu posso fazer de capelão. Não fui padre mas acho que tenho jeito para isso – diz Vagabundo.
– Óptimo! Espera!... Boa ideia!...
– Tu fazes de padre, eu de colega furriel e o Chico Zé faz de capitão, comandante da companhia. Vamo-nos preparar que a avioneta está a partir de Catió, a outra malta que não se desmanche.
E aí temos Vagabundo de calças e camisa de caqui, com o dólmen da mesma fazenda todo engelhado porque retirado à pressa da mala, a boina preta enterrada na cabeça para dar um efeito pouco militar e a correr à procura do médico, tenente obstetra para lhe emprestar os galões. Paolo enfiou as divisas de Carlos Manuel, correu para o comando e pediu a Carlos os galões para o Chico Zé, dando-lhe a conhecer a brincadeira. Tambinha, Humberto e António Pedro informariam e controlariam a maralha para o bicho não desconfiar. Tudo a postos. Paolo, Chico Zé e Vagabundo no comando esperam pela chegada do periquito.
O Serra, furriel das transmissões, recebe a informação de que a Dornier levantou de Catió, e a secção do Carlos Costa, de piquete, avança no Unimog atrás da auto metralhadora Daimler para o fundo da pista, para a segurança. O Gasolinas conduz ele próprio o jeep, para trazer o correio e o seu colega arrivante.
Tudo normalíssimo. O periquito é um rapaz alto, simpático, dentinhos de coelho, bem-falante, mas não calcula a recepção que o aguarda. O Gasolinas pára o jeep e informa o Reis que é ali a messe, pelo que pode descer, ele voltará já. O Reis desce e é recebido com pompa pelo Jata, Madeira, António Pedro, Tambinha e restantes. Estavam nestas apresentações e primeiras conversas de malta que está no mato, querendo saber notícias do outro continente, quando Paolo aparece, apresentando-se como o colega furriel Chico Zé, e dispara:
– Eh, pá! Então tu chegas com um mês de atraso, vens logo para aqui e nem te apresentas ao comandante da companhia? Anda lá apresentar-te e com cuidado que o gajo hoje está com mau humor e ainda é capaz de te dar uma porrada.
Reis, abandonando bagagem e tudo, acompanha Paolo e dirigem-se para o comando onde Chico Zé ocupa a secretária de Carlos, ostentando nos ombros os galões do mesmo. Reis, um pouco tímido, pede licença ao improvisado capitão e vai entrando. Chico Zé levanta a cabeça e, com cara de mauzão, olha para o furriel metralhando:
– Mas que merda é esta? Isto são maneiras de um militar se apresentar?
Paolo segreda a Reis:
– Eh, pá, tens de pedir licença como deve ser, fazer a continência e as praxes habituais.
Reis volta a trás e faz como Paolo diz. Da porta faz continência e pede licença. Chico Zé secamente manda entrar, Reis bate o pé e dá três passos em frente. De imediato, o improvisado capitão, sem levantar a cabeça grita:
- Porra para isto! Já viu padre!? Só me mandam merda desta para aqui! Faz favor de voltar a trás, arranje-me essas meias como deve ser e apresente-se como um verdadeiro militar. Reis já um pouco nervoso volta a trás, dá um toque nas meias e na boina repetindo o pedido de licença. Chico Zé manda entrar novamente. Vagabundo, o improvisado capelão presente na sala, e Paolo estão prestes a rebentar e a desmancharem-se a rir, mas aguentam a teatralização. O falso capitão levanta a cabeça e pede autoritário:
– A guia de marcha e a documentação?
Aí o Reis mais nervoso ficou e já tremia todo. Tinha a papelada na bagagem, gaguejando informou o comandante disso. Este, com ar de enjoo, virou-se para Vagabundo e disse:
– Padre, faça-me um favor, leve-me este gajo daqui quando não eu perco a paciência e dou-lhe uma porrada.
Vagabundo entrou em cena. Meteu suavemente o braço sobre o ombro do Reis e disse:
– Pronto meu filho, acalme-se, vamos lá, vamos lá buscar a papelada. Oh, meu capitão, desculpe o rapaz, está um pouco nervoso! Nós já vimos, sim?!...
Dirigiram-se para a rua mas o Reis já não ouvia, já não via nada, estava no fundo do poço. Tremendo, foi de braço dado com Vagabundo, capelão, para a messe buscar a papelada que tinha na bagagem. O simulado capelão, com palavras meladas, ia-lhe dando mais cabo da cabeça. Fazia-lhe perguntas que o irritavam. Perguntava-lhe se era muito pecador, se o seu estado era ainda virgem ou se caso contrário, tinha pecado muito em Bissau, se visitara muitas vezes o Pilão. Reis queria era uma G3 para dar cabo daquela merda toda e dele próprio.
Entretanto, no comando, Carlos o verdadeiro capitão, ocupava a sua secretária.
Quando Reis regressou acompanhado de Vagabundo, chegando à sala do comando e vendo outra pessoa sentada à secretária, perguntou:
– Onde está o nosso capitão?
Carlos olhou para ele calmamente e respondeu-lhe:
– Oh, nosso furriel, que eu saiba aqui em Cufar sou eu o único.
Completamente desorientado, o furriel estava prestes a rebentar e a chorar mas, gaguejante ainda soletrou:
– Mas... o outro tinha barbas?! ...
– Barbas, eu? Oh, homem você deve ter apanhado sol. Vá à messe de sargentos, beba qualquer coisa fresca e depois falaremos.
Entretanto Vagabundo já se havia escapulido e, passando pelo abrigo da sua secção, pediu ao cabo Cigarra para fazer entrega dos galões ao tenente médico, dando o dólmen ao impedido Amadu. Pela porta de trás entrou na messe onde Chico Zé e Paolo, já nas suas verdadeiras personagens de furriel e alferes, aguardavam com a restante malta o desenrolar dos acontecimentos.
Reis voltou desorientado à messe de sargentos. Ao reentrar olhou para a malta e reconheceu o trio que estava sentado na mesa do canto. Respirou fundo e pensou: foram aqueles cabrões que armadilharam isto tudo, gozaram comigo. E saiu-lhe da garganta com uma voz já aliviada:
– Olha os sacanas do padre e do capitão!
Toda a gente riu. Assim, na sã camaradagem, lema daqueles jovens transformados em homens guerra, se deu a integração da vítima Reis na vivência dos Lassas.
Era assim?... Não!... Tinha que o ser! Era a forma de passar o tempo esquecendo o vagaroso relógio, no seu tic... tac... arrastante dos segundos e minutos, das horas e dos dias, eternidade do amanhã que nunca se sabia como iria ser.
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– É pá, eu posso fazer de capelão. Não fui padre mas acho que tenho jeito para isso – diz Vagabundo.
– Óptimo! Espera!... Boa ideia!...
– Tu fazes de padre, eu de colega furriel e o Chico Zé faz de capitão, comandante da companhia. Vamo-nos preparar que a avioneta está a partir de Catió, a outra malta que não se desmanche.
E aí temos Vagabundo de calças e camisa de caqui, com o dólmen da mesma fazenda todo engelhado porque retirado à pressa da mala, a boina preta enterrada na cabeça para dar um efeito pouco militar e a correr à procura do médico, tenente obstetra para lhe emprestar os galões. Paolo enfiou as divisas de Carlos Manuel, correu para o comando e pediu a Carlos os galões para o Chico Zé, dando-lhe a conhecer a brincadeira. Tambinha, Humberto e António Pedro informariam e controlariam a maralha para o bicho não desconfiar. Tudo a postos. Paolo, Chico Zé e Vagabundo no comando esperam pela chegada do periquito.
O Serra, furriel das transmissões, recebe a informação de que a Dornier levantou de Catió, e a secção do Carlos Costa, de piquete, avança no Unimog atrás da auto metralhadora Daimler para o fundo da pista, para a segurança. O Gasolinas conduz ele próprio o jeep, para trazer o correio e o seu colega arrivante.
Tudo normalíssimo. O periquito é um rapaz alto, simpático, dentinhos de coelho, bem-falante, mas não calcula a recepção que o aguarda. O Gasolinas pára o jeep e informa o Reis que é ali a messe, pelo que pode descer, ele voltará já. O Reis desce e é recebido com pompa pelo Jata, Madeira, António Pedro, Tambinha e restantes. Estavam nestas apresentações e primeiras conversas de malta que está no mato, querendo saber notícias do outro continente, quando Paolo aparece, apresentando-se como o colega furriel Chico Zé, e dispara:
– Eh, pá! Então tu chegas com um mês de atraso, vens logo para aqui e nem te apresentas ao comandante da companhia? Anda lá apresentar-te e com cuidado que o gajo hoje está com mau humor e ainda é capaz de te dar uma porrada.
Reis, abandonando bagagem e tudo, acompanha Paolo e dirigem-se para o comando onde Chico Zé ocupa a secretária de Carlos, ostentando nos ombros os galões do mesmo. Reis, um pouco tímido, pede licença ao improvisado capitão e vai entrando. Chico Zé levanta a cabeça e, com cara de mauzão, olha para o furriel metralhando:
– Mas que merda é esta? Isto são maneiras de um militar se apresentar?
Paolo segreda a Reis:
– Eh, pá, tens de pedir licença como deve ser, fazer a continência e as praxes habituais.
Reis volta a trás e faz como Paolo diz. Da porta faz continência e pede licença. Chico Zé secamente manda entrar, Reis bate o pé e dá três passos em frente. De imediato, o improvisado capitão, sem levantar a cabeça grita:
- Porra para isto! Já viu padre!? Só me mandam merda desta para aqui! Faz favor de voltar a trás, arranje-me essas meias como deve ser e apresente-se como um verdadeiro militar. Reis já um pouco nervoso volta a trás, dá um toque nas meias e na boina repetindo o pedido de licença. Chico Zé manda entrar novamente. Vagabundo, o improvisado capelão presente na sala, e Paolo estão prestes a rebentar e a desmancharem-se a rir, mas aguentam a teatralização. O falso capitão levanta a cabeça e pede autoritário:
– A guia de marcha e a documentação?
Aí o Reis mais nervoso ficou e já tremia todo. Tinha a papelada na bagagem, gaguejando informou o comandante disso. Este, com ar de enjoo, virou-se para Vagabundo e disse:
– Padre, faça-me um favor, leve-me este gajo daqui quando não eu perco a paciência e dou-lhe uma porrada.
Vagabundo entrou em cena. Meteu suavemente o braço sobre o ombro do Reis e disse:
– Pronto meu filho, acalme-se, vamos lá, vamos lá buscar a papelada. Oh, meu capitão, desculpe o rapaz, está um pouco nervoso! Nós já vimos, sim?!...
Dirigiram-se para a rua mas o Reis já não ouvia, já não via nada, estava no fundo do poço. Tremendo, foi de braço dado com Vagabundo, capelão, para a messe buscar a papelada que tinha na bagagem. O simulado capelão, com palavras meladas, ia-lhe dando mais cabo da cabeça. Fazia-lhe perguntas que o irritavam. Perguntava-lhe se era muito pecador, se o seu estado era ainda virgem ou se caso contrário, tinha pecado muito em Bissau, se visitara muitas vezes o Pilão. Reis queria era uma G3 para dar cabo daquela merda toda e dele próprio.
Entretanto, no comando, Carlos o verdadeiro capitão, ocupava a sua secretária.
Quando Reis regressou acompanhado de Vagabundo, chegando à sala do comando e vendo outra pessoa sentada à secretária, perguntou:
– Onde está o nosso capitão?
Carlos olhou para ele calmamente e respondeu-lhe:
– Oh, nosso furriel, que eu saiba aqui em Cufar sou eu o único.
Completamente desorientado, o furriel estava prestes a rebentar e a chorar mas, gaguejante ainda soletrou:
– Mas... o outro tinha barbas?! ...
– Barbas, eu? Oh, homem você deve ter apanhado sol. Vá à messe de sargentos, beba qualquer coisa fresca e depois falaremos.
Entretanto Vagabundo já se havia escapulido e, passando pelo abrigo da sua secção, pediu ao cabo Cigarra para fazer entrega dos galões ao tenente médico, dando o dólmen ao impedido Amadu. Pela porta de trás entrou na messe onde Chico Zé e Paolo, já nas suas verdadeiras personagens de furriel e alferes, aguardavam com a restante malta o desenrolar dos acontecimentos.
Reis voltou desorientado à messe de sargentos. Ao reentrar olhou para a malta e reconheceu o trio que estava sentado na mesa do canto. Respirou fundo e pensou: foram aqueles cabrões que armadilharam isto tudo, gozaram comigo. E saiu-lhe da garganta com uma voz já aliviada:
– Olha os sacanas do padre e do capitão!
Toda a gente riu. Assim, na sã camaradagem, lema daqueles jovens transformados em homens guerra, se deu a integração da vítima Reis na vivência dos Lassas.
Era assim?... Não!... Tinha que o ser! Era a forma de passar o tempo esquecendo o vagaroso relógio, no seu tic... tac... arrastante dos segundos e minutos, das horas e dos dias, eternidade do amanhã que nunca se sabia como iria ser.
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Nota do editor:
Último poste da série > 5 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16920: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XV Parte: Cap VII: Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno, em Cabolol
Último poste da série > 5 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16920: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XV Parte: Cap VII: Guerra 2: aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno, em Cabolol
2 comentários:
Grande "Vagabundo", com alguma irregularidade, lá vamos publicando a tua autobiografia, com as tuas aventuras e desventuras, na companhia dos "Lassas"... Já lá vão 16 postes, ainda a missa vai no adro... Abraço grande. LG
PS - Sobre as "praxes" na tropa e na guerra, recordo que temos já duas dezenas de textos.. E fizemos inclusive um inquérito "online", em fevereiro de 2013:
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/praxes
Sem dúvida um momento hilariante que não fez mal a ninguém. Claro que a G3 ainda não tinha sido distribuida ao piriquito.
Grande abraço.
José Câmara
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