Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 31 de maio de 2017
Guiné 61/74 - P17415: Os nossos seres, saberes e lazeres (215): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (4) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Fevereiro de 2017:
Queridos amigos,
Vai para 50 anos quando se deu este primeiro encontro. Era impensável permanecer no Vale das Furnas mais do que umas horas, um aspirante a oficial miliciano auferia 1100 escudos, que tinha que ser criteriosamente rateados por um aluguer de quarto, uma comensalidade no Restaurante Nacional e gastos vários, impensável a pernoita no Hotel Terra Nostra.
O septuagenário pôde abrir os cordões à bolsa e oferecer-se três dias no parque, no vale e na lagoa. E ficaram impressões tão fortes, tão doces, recordações de aprazimento tão plenas e aquele conforto físico de mergulhar o corpo acerca de 40 graus, na Poça da Dona Beija, cercado de mata luxuriante.
Estou ansioso por voltar.
Um abraço do
Mário
São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (4)*
Beja Santos
A decisão está tomada: o viandante vai passar a manhã por inteiro a deambular pelo Hotel Terra Nostra, haverá banhos na piscina de água férrea, seguir-se-á, depois de almoço, um passeio ao Vale das Furnas, para mimosear os olhos com as caldeiras em trabalho. Mal aqui se chegou e o viandante recordou um jantar em casa de Armando Côrtes Rodrigues, na rua do Frias n.º 101, hoje uma instituição cultural relevante. O último elemento da revista Orpheu, que no regresso a São Miguel se tornou um escritor místico e de pendor regionalista, legou à cultura açoriana monumentos etnográficos do maior valor, pois nesse jantar, para além de ter oferecido um livro com a sua correspondência com Fernando Pessoa, entregou-lhe um volume de dois irmãos que passaram um verão no Vale das Furnas, os irmãos Bullar, um documento precioso que o viandante traz consigo, muito gasto pelo uso. O Vale das Furnas é alfobre de obras românticas e de relatos de viajantes estrangeiros, e os escritores nacionais como Senna de Freitas deixaram impressões encomiásticas. Aqui nasceu a conceção do parque público, na segunda metade do século XIX. O que era lenda, mito, relato assombroso sobre as águas termais, montanhas cheias de fogo, fumarada eterna, regatos de água fria e de água fervente, nascentes que lançam para o ar água a ferver com um urro medonho, jazigos subterrâneos de enxofre, que muitos viajantes registaram, com o especial destaque para esse assombroso escritor do século XVI, Gaspar Frutuoso, autor de um conjunto de volumes intitulados Saudades da Terra, de escritor exímio do povoamento, da fauna e da flora.
O local edénico conhecerá um grande empreendimento turístico nos anos 1930, o hotel Terra Nostra, uma preciosidade em Arte Nova, por aqui vai começar o passeio.
Há alguns anos, fez-se uma grande intervenção, e com talento, imprimiu-se conforto sem descaraterização. No passado, entrava-se por uma porta onde estava aquele lindo mosaico Terra Nostra, passeou-se o viajante por espaços que já tiveram outras funções, a beleza está intacta, veja-se o gracioso lance de escada, manteve-se a atmosfera do que fora um restaurante. Seguiu-se para um espaço em frente que dava pelo nome de casino, tanto quanto foi dado saber nunca houve aqui a roleta francesa nem nenhum milionário saiu depenado, era um salão de festas, bem à moda das termas, talvez com recitais de canto e piano, chás e bailaricos, excelente ocasião para os filhos de gente abonada tentaram a sua sorte nas coisas do coração.
O casino é hoje um lugar de eventos, tipo casamentos e batizados. Manteve-se o seu caráter inicial, pululam as telas de Domingos Rebelo, o mais conceituado pintor micaelense do século XX, que se aperfeiçoou em Paris e foi contemporâneo de Amadeo Souza Cardoso, Emmerico Nunes e Eduardo Viana. Passou décadas em São Miguel, deixou registos de grande beleza sobre os usos e costumes locais, os emigrantes, as festas religiosas, etc. No momento exato em que começam a brotar hidrângeas, o viajante não resistiu ao esplendor daquele carreiro de azul, pois fica associado à sua primeira viajem ao local, 50 anos atrás, e sempre que a palavra furnas lhe vem à mente são sempre estas hidrângeas que aparecem na memória fotográfica, antes das caldeiras, da água férrea e das fumarolas. E agora vamos para o parque Terra Nostra que tem muita história, mais dois séculos de vida.
Tudo começou em 1775, quando Thomas Hickling, então cônsul dos Estados Unidos em São Miguel, aqui fez construir a sua residência de Verão, Yankee Hall. No entanto, só a partir de meados do século XIX é que o jardim, que tinha uma área inicial de dois hectares, experimentou um notável desenvolvimento. Adquirido em 1848 pelo Visconde da Praia, o jardim conheceu uma primeira ampliação. O seu filho, o Marquês da Praia e Monforte, a partir de 1872, prosseguiu a obra dos pais, embelezou a casa, ordenou o jardim, mandou construir um canal serpentiforme, grutas, avenidas, caminhos ladeados de laranjeiras, estas desapareceram. O viandante delicia-se com belíssimas espécies arbóreas. Vasco Bensaude, nos anos 1930, mandou ampliar o jardim, hoje uma das maiores preciosidades dos atores, pela sua forma endémica e nativa, espantosa coleção de fetos, as azálias, as camélias. Vasco Bensaude não se poupou a esforços, trouxe jardineiro escocês, renovou a casa do parque e o tanque de água férrea. Os seus sucessores também não pararam, introduzindo mais três mil árvores e espécies arbustivas. É um jardim fascinante. Como se diz nos Açores, o viandante está-se consolando, o dia de amanhã é para ir até ao Vale das Furnas, outro cântico dos cânticos da natureza.
(Continua)
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Notas do editor
(*) - Poste anterior de 24 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17391: Os nossos seres, saberes e lazeres (213): São Miguel: vai para cinquenta anos, deu-se-me o achamento (3) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 30 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17409: Os nossos seres, saberes e lazeres (214): Um passeio aos Alpes Bávaros (Francisco Baptista, ex-Alf Mil)
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