segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Há alguns anos atrás, por entreposta pessoa, pedi para conversar com António Fragoso Allas, anunciei previamente a questão primordial para o encontro: as eventuais ligações da PIDE/DGS com o assassinato de Amílcar Cabral. Almoçámos em Algés, numa atmosfera de grande amenidade e saí desse encontro com a garantia de que não houvera um mínimo de envolvimento da polícia política no conflito que separava abissalmente guinéus e cabo-verdianos.
Perguntei a Fragoso Allas por que não escrevia tão importantes memórias e tais aspetos clarificadores. Disse-me que mais tarde ou mais cedo tudo iria aparecer numa entrevista.
Como acaba de acontecer.

Um abraço do
Mário


De leitura obrigatória: o diretor da PIDE/DGS na Guiné, no tempo de Spínola, na primeira pessoa (1)

Beja Santos

“A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar, Edições Colibri, 2017, é um documento impressionante, uma investigação de altíssima qualidade, um frente a frente entre uma investigadora de mérito, com obra consagrada, e um inspetor da PIDE/DGS que percorreu os diferentes territórios coloniais em guerra. Entrevista vastíssima, abrangente, abarcando as questões mais controversas desde a Operação Mar Verde até ao assassinato de Amílcar Cabral. Fragoso Allas vai para a Guiné substituir Matos Rodrigues com quem Spínola se incompatibilizara, chegara mesmo a pensar prendê-lo, ameaçara também suprimir a delegação da PIDE/DGS em Bissau se não ocorresse a sua substituição. A pressão é feita a seguir ao insucesso da invasão de Conacri, Allas só toma conta do lugar em meados de 1971.

Deixa bem claro que nunca recebeu diretivas de Lisboa por parte da PIDE/DGS, recebeu instruções muito genéricas do Ministério do Ultramar. Porquê a animosidade de Spínola, que queria terminar com a DGS na Guiné? Allas responde:

“Eu não sei com certeza, mas presumo que o jornal deve ter sabido que a DGS da Guiné fazia relatórios que enviava para Lisboa, dos quais não dava conhecimento ao governador. O General Spínola em várias ocasiões tem falado em desentendimentos importantes com a PIDE/DGS”.

Spínola pretendia que Allas aderisse ao seu projeto “Por uma Guiné Melhor”, e decidiu que ele passaria a assistir ao briefing diário na Amura, o que veio a acontecer. Allas refere as suas primeiras ações na Guiné logo o assassinato de um tenente senegalês por um capitão português, sublinha a recetividade da política da Guiné melhor, o programa da africanização das tropas, e emite parecer sobre a morte dos três majores, em Abril de 1970, dizendo:

“As mortes terão sido executadas por indivíduos vindos de Conacri para o efeito e, pelo menos, os chefes guinéus envolvidos nas negociações terão sido fuzilados. O assassinato dos majores produziu um maior desentendimento entre os guineenses e os cabo-verdianos porque eram guineenses os que estavam a negociar o regresso dos guerrilheiros à revelia dos comandos do PAIGC. Foram denunciadas as conversas com os militares portugueses, o comando do PAIGC mandou matar os majores e depois fuzilar os chefes dos guerrilheiros envolvidos na negociação”.

A sua grande preocupação era montar uma rede de informadores na Guiné, depois de ter avaliado a situação, reorganizou o gabinete do centro de cifra, seguiu-se a rede de informadores, os postos mais importantes da DGS estavam perto do Senegal, era o caso de Pirada, Bigene e Guidage, para a Guiné Conacri só havia o posto de Buruntuma. Explica a importância de Pirada:

“Estava localizado mesmo junto à fronteira com o Senegal. O posto estava dentro da casa de um comerciante. O agente da DGS ali colocado vivia dentro da casa do tal comerciante. Mas o que sucedia na prática era que o comerciante era mais agente da DGS que o próprio agente; 90% das vezes era o comerciante que atendia o rádio. Converteu-se num agente duplo. O comerciante chamava-se Mário Soares. Era habilidoso, tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. O Mário Soares era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las. As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles. Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”.

Fala-se de outro comerciante que também prestava informações à PIDE, Rodrigo Fernandes Rendeiro.

A conversa desliza para a infiltração do PAIGC. A rede interna era constituída por informadores e alguns dissidentes. Explica que uns por dinheiro, outros por frustração e despeito com o PAIGC. Eram 20 infiltrados. Não havia em Conacri informadores da DGS:

“Eram os nossos homens de ligação que falavam com elementos da estrutura do PAIGC em Conacri e davam-nos as informações. Aproveitavam-se as dissensões já existentes entre guinéus e cabo-verdianos, os maiores colaboradores eram de etnia Fula. Explica que Inocêncio Cani, tal como Momo Turé, nunca foram colaboradores da DGS, todos os documentos que referem nomes como Aristides Barbosa, Mamadu Turé e outros mais são documentos falsificados. Refere e incompatibilidade entre Rafael Barbosa e Amílcar Cabral. Fragoso Allas diz que nunca subornou Rafael Barbosa. Adianta que havia contactos com Nino Vieira: “Não era um contacto direto, eu nunca falei com ele, tinha pessoas que falavam com ele. Tentava-se trazer de volta. Ele tinha interesse em voltar mas tinha um problema: tinha sido condenado por crime penal e tinha fugido. Aquilo que estava a negociar connosco era voltar, mas não vir para a prisão. Esta ação era tratada através de mensageiros”.

A rede de informações de Fragoso Allas assentava primordialmente em djilas. Aliás, quando o jornalista José Pedro Castanheira consultou os arquivos da PIDE em Bissau à procura de conexões entre a polícia política e os assassinos de Amílcar Cabral não encontrou qualquer documento mas descobriu diversos relatórios de djilas que se movimentavam com grande facilidade sobretudo no Senegal. Com a Guiné Conacri era diferente:

“Havia indivíduos do PAIGC na Guiné Conacri que vinham à Guiné Portuguesa visitar as famílias e diziam que estavam cansados de estar lá. Se depois a família viesse dizer que se tinham apresentado não os prendíamos, mas aproveitava-se o contacto através da família para os captar”.

Afloram-se os contactos com a oposição a Sékou Touré, o agente Marcelo Almeida, os grupos especiais da DGS (GE/DGS), e os esforços para o estabelecimento de contatos com o Senegal. A conversa agora inflete para os encontros de Cap Skirring, Fragoso Allas pretende corrigir que só houve duas reuniões e não três, que nunca se falou em Amílcar Cabral nem em nenhuma hipotética entrevista entre este e Spínola, e antes de abordar o assassinato de Amílcar Cabral faz alusão à proposta feita ao Coronel Vaz Antunes pelo agente “Padre”:

Era já na fase em que os guinéus se recusavam a combater, em Junho de 1973. Em consequência havia umas centenas de guerrilheiros guinéus do PAIGC que se queriam entregar e com os quais foi estabelecido contacto em Farim, na fronteira, através do referido agente”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17908: Notas de leitura (1008): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (6) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, obrigado pela tua oportuna nota de leitura... Já não era sem tempo o aparecimento de um trabalho desta envergadura, baseado em longas entrevistas com um das peças-chave para se perceber os últimos anos da guerra colonial na Guiné... O inspetor Fragoso Allas, quer se goste ou não dele, é de fato uma fonte de informação priviligeada e, que nesta fase da sua vida, tem todo o interesse e, "abrir o livro"...

Agora é pena que tu, Mário, não nos tenhas dito nada sobre a autora e o contexto em que aparece este trabalho de investugação... No sito da Wook, lê-se o seguinte sobre a autora:

"María José Tíscar Santiago é doutorada em História. Tem exercido a docência em diversos Liceus de Espanha, Alemanha e França e no Instituto Espanhol de Lisboa.

"Iniciou a sua actividade de investigação trabalhando sobre as relações lusoespanholas durante o Marcelismo, e posteriormente, sobre o apoio da Espanha franquista ao Estado Novo durante a Guerra Colonial.

"Recentemente tem-se debruçado sobre as Actas do Conselho de Estado do período transitório 1974-1975, as quais vieram a revelar o papel dos diferentes protagonistas do processo histórico que conduziu à descolonização e que publicou no livro «O 25 de Abril e o Conselho de Estado. A Questão das Actas» (Edições Colibri, 2012); "A PIDE no Xadrez Africano. Angola, Zaire, Guiné, Moçambique. Conversas com o Inspector Fragoso Allas" (Colibri, 2017)."

https://www.wook.pt/autor/maria-jose-tiscar-santiago/2632448

Tabanca Grande Luís Graça disse...

NO sítio da INC; - Imprensa Nacional Casa da Moeda, lê-se o seguinte:


María José Tíscar é Licenciada em Filosofia e Letras pela Universidade de Santiago de Compostela, Doutora em História pela UNED – com uma tese sobre o apoio da Espanha franquista a Portugal durante a Guerra Colonial –, professora de Geografia e História, profissão que exerceu em diferentes liceus em Espanha, Alemanha, França, e no Instituto Espanhol de Lisboa.

https://www.incm.pt/portal/loja_detalhe.jsp?codigo=102516

A UNED é também espanhola, Universidad Nacional de Educación a Distancia.


Presumo que a Maria José Tíscar seja espanhola, de origem.. Não há muitas mais referências sobre ela na Net. Acrescente-se este excerto com a opinião do prof doutor Nuno Severiano Teixeira:


Maria José Trístar - O PACTO IBÉRICO, A NATO E A GUERRA COLONIAL (Lisboa, INCM, e Instituto de Defesa Nacional, 2014, 400 pp., Coleção Atena, nº 32)


(...) "No prefácio, Nuno Severino Teixeira diz que é uma «história de entendimentos e desentendimentos, de compromissos e tensões que este livro de Maria José Tíscar nos revela. Uma história sempre servida por uma sólida investigação arquivística e uma rigorosa narrativa histórica que, indiscutivelmente, acrescenta conhecimento ao estado da questão tanto na historiografia portuguesa como na historiografia espanhola. [...] Esta é mais uma obra cuja publicação prestigia o Instituto da Defesa Nacional e a coleção Atena, mas que prestigia, em primeiro lugar, a sua autora, Maria José Tíscar, e constituirá, doravante, uma contribuição incontornável, não só para a história do Pacto Ibérico como para a história contemporânea de Portugal e Espanha». (...)

https://www.incm.pt/portal/loja_detalhe.jsp?codigo=102516

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, o Fernandes Rendeiro, alegado informador da PIDE/DGS era nosso conhecido de Bambadinca... E eu pelo menos frequentava a sua casa, eu e alguns de nós da CCAÇ 12 e da CCS do BCAÇ 2852 e depois do BART 2917... Sabíamos (ou suspeitávamos) que ele e o Zé Maria "jogiavam com um pau de dois bicos"... Seria "normal" naquelas circunstâncias.. A vida deles era a Guiné e o desfecho da guerra imprevisível...

O nosso camarada Leopoldo Correia escreveu o seguinte sobre ele:

(...) Infelizmente já não está entre nós, pois foi sepultado na sua terra natal [, Murtosa,] em 10/09/2011, tendo eu assistido ao funeral e tido contacto com toda a " ínclita geração", os filhos de Fernandes Rendeiro / Auá Seide, da qual só tenho a dizer bem. A que estudava em Coimbra, era licenciada em direito e era magistrada: faleceu também há cerca de 5 anos. Era juíza do Ministério Público em Lisboa." (...)


O Rendeiro era de facto casado com uma mulher mandinga, Auá Seide, que tinha uma prole numerosa, e morava perto do quartel de Bambadinca, Fui visita da sua casa e beneficiei da sua hospitalidade. A Auá Seide, que o Rendeiro nunca mostrava aos seus convidados, militares, era uma excelente cozinheira, a avaliar pelo seu famoso chabéu de frango... Também nunca me lembro de ter vistos os seus filhos, embora ele nos falasse de uma filha mais velha, já a estudar no Continente...

Terá nascido por volta de 1920. Recordo-me de ele nos dizer que tinha vindo para a Guiné com 17 anos. Na altura em que com ele privámos, em Bambadinca, era homem para ter perto de 50 anos. Sempre magro de cara e de corpo (contrariamente ao outro comerciante de Bambadinca, o Zé Maria), tinha uma loja e armazéns junto ao nosso aquartelamento.

Abílio Duarte disse...

Estive várias vezes em Pirada, com a minha C.ART. 11, em reforço ao aquartelamento, em 1969/70 Por várias vezes me cruzei com o Sr. Mário Soares, que na altura era conhecido, como agente da PIDE. Por isso estranho agora por este relato, que ele de facto não o era!!!

Um dia em Pirada, estava de Sargto. de Dia, e fui chamado á Porta de Armas. Estava um africano, acompanhado por um Oficial Paraquedista Senegalês, e que me disse, que vinha da parte do Sr. Mário Soares, para que fosse dado tabaco aquele militar, e que o Sr. Mário Soares depois acertava as contas.
Como eu era estranho á companhia residente, mandei logo chamar um elemento da guarnição residente. O Sr. militar foi com um oficial ao Bar dos Oficiais, e veio carregado. Vim a saber que era natural aquele intercâmbio.E é dstas pequenas coisas, que uma guerra também é feita.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Abílio, ainda não li o livro, mas o que leio no poste do Beja Santos é que havia dois comerciantes, que colaboravam com a PIDE/DGS: o Mário Soares, em Pirada; e o Rodrigo Resende, em Bambadinca (,acrescento eu)... E os dois eram seguramentre agentes duplos...