terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17919: Dossiê Guileje / Gadamael (30): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (2) (Coutinho e Lima)

Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.

1. Segunda parte do trabalho subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, da autoria do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviado ao nosso Blogue em 27 de Outubro de 2017, que devido a ser um pouco extenso foi publicado em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje

4. Reunião de Comandos realizada em 15MAI73

Em 15MAI73, realizou-se no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, uma Reunião de Comandos, presidida pelo Sr. Comandante-Chefe, Sr. General ANTÓNIO DE SPÍNOLA, estando presentes o Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES (viria pouco tempo depois a ser nomeado Oficial da Polícia Judiciária Militar, encarregado de me instaurar auto de corpo de delito, na sequência da Retirada de Guileje), Senhores Comandantes-Adjuntos, Comodoro ANTÓNIO HORTA GALVÃO DE ALMEIDA BRANDÃO, Comandante da Defesa Marítima da Guiné; Brigadeiro ALBERTO DA SILVA BANAZOL, Comandante Territorial Independente da Guiné; Coronel GUALDINO MOURA PINTO, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné. Tomaram igualmente parte na reunião, o Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe, Coronel do Corpo de Estado-Maior (CEM) HUGO RODRIGUES DA SILVA e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do QG do Comando-Chefe, respectivamente Tenente-Coronel de Infantaria ARTUR BATISTA BEIRÃO e Tenente-Coronel do CEM MÁRIO MARTINS PINTO DE ALMEIDA.

Nos trabalhos de pesquisa para escrever o meu livro A RETIRADA DE GUILEJE, encontrei, no Arquivo Histórico-Militar do Exército, a ACTA dessa Reunião de Comandos, com 62 páginas. Dessa acta, transcrevo o que considero mais significativo, no que se relaciona com Guileje.
 
4.1 - Da intervenção do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES: 
“(...). No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica - isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietname do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano. 
O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? (...). O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado. (...)”

(Nota – os sublinhados são meus).

 4.2 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações (REP/INFO), Sr. Ten. Cor. de Infª BATISTA BEIRÃO:
“Na ZONA SUL, (...) o In ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE a partir da REP GUINÉ, para o que concentrou meio sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas. 
(...)
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL,GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições.
(...)
Num futuro próximo, prevê-se ainda que o In
(...)
- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional.
(...)
Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação do esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o TO, sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta zona de preocupação, na qual dificilmente se podem, de momento, visualizar priorizações”.

(Nota – os sublinhados são meus)

Este último parágrafo é incoerente com o que consta nas transcrições anteriores. Vamos ver se nos entendemos: se não se podem visualizar priorizações, como se afirma as intenções do In, no imediato e num futuro próximo?

4.3 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações (REP/OPER), Sr. Ten. Cor. do CEM - PINTO DE ALMEIDA
“(...). Assim, considera-se essencial: 
a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira. 
Para este reforço computam-se as necessidades em: 
Sector Sul
(...)
3 Companhias
(...)
3. (...). Se não forem concedidos os reforços solicitados (...) julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais. (...)”

Certamente que o Sr. Chefe da REP/OPER, de acordo com as transcrições feitas, tinha em mente, entre outras, a guarnição de Guileje.

5. O que se esperava que o Comando-Chefe fizesse, face ao constante na Acta da Reunião de Comandos de 15MAI73 

5.1 - Considerando as intervenções: 
- Do Sr. Brigadeiro Leitão Marques:
“(...) o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de (...). Guileje. (...). Isto está já ao alcance das suas possibilidades militares...”

- Do Sr. Chefe da REP/INFO:
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
“- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra... GUILEJE... visando o aniquilamento ou captura da guarnição...”

- Do Sr. Chefe da REP/OPER:
“a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira”.

5.2 - O Comando Chefe, ao constatar, em 18MAI73, quando o IN iniciou as flagelações a Guileje, que se concretizava a sua intenção de um ataque em força, que conhecia desde 27DEZ72 (Relatório de Interrogatório n.º 108, referido atrás), deveria, de imediato accionar o conveniente reforço da guarnição de Guileje, conforme preconizara o Sr. Chefe da REP/OPER e não se argumente que o Comando-Chefe não tinha meios para reforçar o COP 5, porque se assim fosse revelava uma incompetência total.

Para accionar o reforço imediato, dispunha da Companhia de Paraquedistas n.º 121, que segundo as declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, (quando ouvido como testemunha em 27AGO73, como testemunha), “encontrava-se em Bissau em descanso”, desde 20ABR73. Esta Companhia podia embarcar na noite de 18MAI, chegando a Gadamael na manhã do dia 19 e a Guileje no mesmo dia. Esteve a reforçar Guidage, desde 23 a 30MAI (mesma informação do Chefe da REP/OPER); possivelmente não seguiu para Guileje, porque já estava “prometida” ao COP 3 (Guidage)!... Além disso, estavam na Península do Cantanhez, outras 2 Companhias de Paraquedistas que, com facilidade poderiam deslocar-se directamente, por terra, para Guileje; estas Companhias foram mais tarde reforçar Gadamael. Não tenho a certeza de que se o COP 5 tivesse sido reforçado, em tempo oportuno, isso resolveria o problema. Não tenho qualquer dúvida que, se esse reforço tivesse sido accionado, não teria decidido a retirada.

O não reforço só poderá entender-se, com grande esforço de boa vontade, se o Sr. Chefe da REP/OPER, estivesse à espera das 3 Companhias, vindas da Metrópole, para reforçar o Sector Sul. Se foi assim, bem podia esperar sentado...

O Sr. Comandante-Chefe decidiu deixar à sua sorte a guarnição de Guileje, demonstrando total insensibilidade, relativamente a centenas de pessoas, cujas vidas estavam em perigo e desresponsabilizando-se da sua obrigação, passando toda a responsabilidade para o Comandante do COP 5, que teve que decidir o que fazer.


6. Conclusão 

O que se passou em Guileje, com início em 18MAI73, foi da inteira responsabilidade do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior.

Na verdade, ao tomar conhecimento da intenção o In sobre Guileje (Relatório de Interrogatório de 27 DEZ73) e, não tendo levado em consideração essa intenção, nem tão-pouco informando desse facto o Comandante do COP 5, quando esse foi criado, permitiu que o PAIGC tivesse preparado a sua acção contra o aquartelamento de Guileje, durante vários meses (conforme se soube mais tarde), sem que houvesse, da parte das NT, qualquer iniciativa que a dificultasse. Se o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior tivessem actuado como era sua obrigação: confirmar o conteúdo do relatório, accionar o patrulhamento ofensivo por forças especiais e informar o COP 5 (quanto mais não fosse, porque “homem prevenido vale por dois”), possivelmente não teria impedido que o IN tivesse desencadeado o ataque; este, seguramente, não teria tido a intensidade e a duração que se verificou; é esta a minha convicção.

Mesmo depois de ter solicitado por mensagem, em 20MAI às 03.20 horas, o reforço de uma Companhia de Tropa Especial e no mesmo dia, ao fim da tarde, ter apresentado idêntico pedido, pessoalmente ao Sr. General Spínola, não me foi atribuído qualquer reforço. E o que fez então o Sr. Comandante-Chefe? Para responder a esta pergunta, socorro-me do depoimento do Sr. Coronel Para Rafael Durão, quando ouvido, como testemunha em 03JUN73, no processo que me foi instaurado.

“(...). No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de GUILEJE, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas que se encontravam em GADMAEL e CACINE e outros ainda a chegar de BISSAU. Efectivamente fui nomeado Comandante da Zona Sul, ficando o COP 5 sob o meu Comando”.

O meu pedido de reforços foi ignorado pelo Sr. Comandante-Chefe e era o Sr. Coronel Durão que iria verificar as necessidades em meios. Devo referir que o Sr. Coronel Durão nunca tinha estado no Sul da Província e, além disso, a colocação dos abastecimentos em Guileje, naquele momento era secundário; o que interessava era, como primeira prioridade, aliviar a pressão do IN, além de criar as condições mínimas de vida em Guileje, que passavam por assegurar o abastecimento de água e outras funções primárias. Acresce que, tendo chegada às matas de Mejo, (mensagem da REP/INFO do dia 20MAI, às19.00 horas) o 3.º Corpo de Exército do PAIGC, admitindo a possibilidade de actuar sobre Guileje, havia grande probabilidade de o Sr. Coronel Durão, na sua deslocação apeada de Gadamael para Guileje (se fosse essa a sua intenção) ser interceptado pelo IN.

Tendo-se iniciado o ataque do IN em 18MAI, só passados 3 dias (21MAI) é que o Sr. General Spínola nomeou o Sr. Coronel Durão para resolver a situação, demonstrando assim a sua pouca preocupação pelo problema, estando em grande risco centenas de vidas humanas: militares, milícias e população de Guileje.

É também de realçar a missão que o Sr. Coronel Durão recebeu directamente do Sr. General Comandante-Chefe “para manter a todo o custo o destacamento de Guileje, naquele local”. A defesa a todo o custo significa resistir até ao último homem. É altamente discutível se, naquelas circunstâncias, face ao poderio do Inimigo, se devia exigir tal missão.

Regresso à acta da reunião de 15MAI73 (3 dias antes do início da acção inimiga), para transcrever outra parte da intervenção do Sr. Brigadeiro leitão Marques.

“Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir a captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa... Tal elemento será aproveitado ao máximo para desmobilizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU... O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante?”

Se não tivesse tomado a decisão de retirar, haveria grande probabilidade de se verificar o que previa o Sr. Brigadeiro (captura de grande número de prisioneiros) e, neste caso, Guileje poderia ter sido o “Dien Bien Phu Português”.

Lembro que a Batalha de Dien Bien Phu, travada entre o Viêt Minh e o Corpo Expedicionário Francês no Extremo Oriente, entre 13 de Março 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da guerra da Indochina.

Após 8 semanas de duros combates, as tropas do Vietname do Norte, uma força de cerca de 80.000 homens, que sofreu 7900 mortos e 15.000 feridos, venceram as tropas da União Francesa. Os Franceses registaram 2293 mortos e 5193 feridos; 11.721 soldados foram feitos prisioneiros e a maioria não sobreviveu ao cativeiro, tendo sido repatriados apenas 3290.

Comandava o Exército Popular Vietnamita o General GIAP; o Exército da União francesa era comandado pelo Coronel CHRISTIAN DE CASTRIES (nomeado General durante a batalha).

Para concluir, devo referir que o autor material da Retirada de Guileje fui eu, mas o autor moral foi o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
(único Comandante do COP 5, em Guileje – JAN a MAI 73)
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Nota do editor

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