sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

Chegada dos aviadores a Bolama em 1925  
Foto: Com a devida vénia ao Blogue Bernardino Machado


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
A correspondência oriunda do gerente da filial de Bolama, nas décadas de 1910 e 1920, não esconde as desavenças entre republicanos, o nepotismo e o arrivismo, a troca de papéis entre os protagonistas que vão da política para o comércio, da vida militar para a de fazendeiro.

Foi durante a organização da documentação deste período que encontrei um ofício datado de 16 de Fevereiro de 1923 onde se apresenta a Companhia de Fomento Nacional, que tinha a sua sede na Aldeia do Cuor, regulado onde vivi 17 meses consecutivos.

Há 50 anos intrigava-me aqueles panos monumentais de pedra perdidos dentro da natureza bravia, mesmo a beijar o Geba Estreito. Esse mistério está dilucidado, resta saber como esta empresa deu lugar a outra dentro do Cuor, a Sociedade Agrícola de Gambiel, onde trabalhou o professor Armando Zuzarte Cortesão, cuja cama em ferro herdei, dádiva do régulo Malâ Soncó. Coisas da vida...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7)(*)

Beja Santos

O relatório de 1922, ano em que o governador é já o Tenente-Coronel Velez Caroço, anuncia uma certa lufada de ar fresco quanto aos termos da governação, mas não esconde as graves dificuldades económicas e financeiras e o permanente caos administrativo.

De uma forma sintética, o gerente da filial de Bolama aborda diferentes pontos. Sobre a vida económica e financeira do município de Bolama, fala das poucas receitas e da necessidade de auxílio do governo; em contrapartida, o estado da Fazenda Pública revela desafogo devido ao aumento das contribuições, incluindo o do imposto de palhota. Quanto a vias de comunicação para o interior, reporta que falta completar a estrada que liga S. João a Jabadá (sede da circunscrição civil de Quínara) e dá conta que se tem em vista a construção de uma ponte de alvenaria que ligue aquela região à de Geba, daí deduzindo que ficaria Bolama ligada ao continente; falando das estradas, diz que não são macadamizadas por falta de pedra e que as valetas não têm escoante. Pela primeira vez refere-se ao Governador, Tenente-Coronel Velez Caroço:

“Continua a merecer os encómios dos europeus residentes nesta província. Pena é que a sua ação, entravada muitas vezes porque questiúnculas políticas locais, não se estende, como seria para desejar, a todos os serviços públicos por forma a que os diversos ramos da atividade colonial tivessem o desenvolvimento necessário para bem da província”.

Informa-se Lisboa que o governo vai adquirir a propriedade urbana e rústica da Empresa Comercial de Bijagós para aí instalar oficinas navais, tribunal e residência de alguns dos seus funcionários. E estando a falar de serviços públicos, desembesta sobre comportamentos estimados por negligentes e obtusos:

“Na magistratura desta comarca existe um elemento de valor, Dr. Horácio Baptista de Carvalho, Delegado do Procurador da República; porém, o juiz Dr. Pedroso de Lima, criatura pouco inteligente, cretina e pirrónica por princípio e feitio, é algo prejudicial às causas que correm pela sua vara. Quando alguém se admira dos seus estranhos despachos, responde invariavelmente: ‘Recorra!’. Como se um recurso não custasse atualmente muito dinheiro e não representasse, quase sempre, prejuízos grandes, devido à demora que estas questões costumam levar nas instâncias superiores. Numa acção que a nossa agência de Bissau intentou, só tem criado embaraços, não revelando a menor consideração pelo nosso banco. Em compensação, desejaria entrar para o serviço do mesmo, como Contencioso, e queria que, como Juiz, de que muito se envaidece, lhe fossem concedidas regalias excecionais para as pouquíssimas transferências que têm efetuado para Coimbra e Cabo Verde, quando, pela sua parte, no diz que respeito a Lisboa, não dá o menor interesse a esta filial, pois a mesada e as suas economias são pagas naquela cidade por intermédio da Casa Gouveia que pouco ou nada lhe leva de prémio”.

E se surpreende a forma desaforada que usa com o juiz, a mesma linguagem se estende ao que se passa nas alfândegas:

“À testa dos serviços alfandegários encontra-se um sujeito que até hoje se ignora se é europeu se cabo-verdiano, chamado Fernando Oliveira, criatura sem simpatias de ninguém, nem sequer dos seus correligionários democráticos. Foi este senhor que, como principal fator, influiu no espírito de Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas da Província da Guiné, composto na sua maior parte, entre os quais o nosso Juiz, de pessoas pouco propensas a interpretarem conscientemente a letra do contrato entre o nosso banco e o Estado, para indeferir o requerimento desta filial que pedia a isenção de direitos aduaneiros para a entrada na província das suas notas Chamiço, conforme estava em expresso no dito contrato. Por este motivo tivemos de recorrer para o Concelho Colonial, esperando que ali nos dêem um despacho favorável”.


Igualmente de forma sintética expende considerações sobre a agricultura, indústria e permutas. Diz que o principal ramo da agricultura indígena continua a ser o da mancarra (a produção promete ser superior à do ano pretérito), auspicia uma melhor produção de arroz, com preços muito superiores aos do ano anterior. Esclarece que os indígenas cultivam em muito pequena escala milho miúdo aqui conhecido pelo nome de milho preto. E ajuíza surpreendentemente:

“A palmeira que, sem esforço e auxílio do indígena, produz bastante coconote, se fosse beneficiada, ainda que de longe em longe produziria muito mais, vindo assim dar maior valor à riqueza desta colónia. Mas o indígena, mercê das quantias fabulosas que lhe dão pelos seus produtos, é rico, e portanto pouco se preocupa com isso.

A agricultura do europeu resume-se em plantações de coleiras e árvores frutíferas, mas estas tentativas esbarram quase sempre na falta de capitais, não obstante, pelo nosso banco, tem sido facultado ao governo da província um crédito destinado ao fomento agrícola, de 134 contos. Ao que parece, tão pouco cuidado tem merecido ao mesmo governo aquele crédito, para o fim a que é destinado, que o chamam a si, escriturando-o como receita do Estado, sob a rubrica ‘Receita Eventual’. Sobre este caso temos instantemente trocado correspondência com a direção dos serviços da Fazenda a fim de, por indicação da nossa sede, fazerem a reposição daquela importância, visto não lhes ter sido dada aplicação. Mas os nossos esforços até ao presente ainda nenhum êxito obtiveram”.

Também refere que não há indústrias na Guiné, o que há é uma tentativa de fabrico de sabão, pouco prometedora, e volta a surpreender-nos:

“O indígena não se dedica a qualquer espécie de indústria, limitando-se apenas ao fabrico das suas esteiras e adornos para seu uso. Quando a permutações com o gentio, esclarece que as principais são feitas com a mancarra, o coconote, o arroz, e numa escala mais diminuta com cera, borracha e gergelim, tudo trocado por dinheiro".

É a remexer nos dossiês desta época que este pobre escriba foi alvo de uma grande emoção. É necessário explicar porquê.

Quem põe os olhos nestas montanhas de papel e procura os aspetos mais salientes das informações que seguem de Bolama para Lisboa sobre a vida da província, viveu 17 meses consecutivos, entre 1968 e 1969, como responsável militar por dois destacamentos no regulado do Cuor. Sucede que aqui chegou em 4 de Agosto de 1968, e logo na manhã seguinte, no seu primeiro patrulhamento, por recomendação do furriel mais antigo, Zacarias Saiegh, foi conhecer Aldeia do Cuor, qualquer coisa como cerca de sete quilómetros distantes de Missirá, sede do principal destacamento.

Fez-se o percurso sem nenhum incidente, era visível tratar-se de caminhos ao abandono, entregues à natureza. De um lado, imensa vegetação, belos palmares, e do outro uma vegetação rala que permitia ver à distância do outro lado do rio Geba, que ali corre em leito estreito até Bafatá, e nessa distância o Furriel Saiegh ia explicando ao novel comandante que havia para ali terras fertilíssimas, mesmo pelos caminhos que estavam a percorrer houvera seguramente riqueza agrícola, que a guerra interrompera. E assim se chegou a Aldeia do Cuor.

Ficou uma sensação de assombro para toda a vida, pois percorrera-se aqueles quilómetros todos a ver a natureza verde, luxuriante, uma barreira de palmeiras de um lado e do outro um desafogo de panorama, alguém comentou que andariam certamente por ali gente de Mero e Santa Helena nos seus cultivos, e inopinadamente emergia do capim uma enorme construção em pedra, parecia pano de fortaleza, o novel comandante, um tanto azamboado, percorreu pelos diferentes lados aquele maciço de alvenaria, ninguém explicou do que se tratava, era empreendimento antigo, votado há muito ao abandono, nada tinha a ver com a guerra. Em Missirá, ninguém deu explicação satisfatória para tão invulgar construção, a pedra é escassa naquele território, fora seguramente trazida para construção reluzente. Mas que construção?

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil (1955) > Detalhe, posição relativa de Aldeia do Cuor, na margem direita do Rio Geba Estreito; a norte, ficava o regulado do Cuor (onde havia 3 destacamentos das NT e milícias: Finete e Missirá, Fá Mandinga).
Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)

E o enigma persistiu, até que de repente apareceu um documento no Arquivo Histórico do BNU datado de 16 de Fevereiro de 1923, papel timbrado da Companhia de Fomento Nacional, com sede na rua Augusta n.º 176 - 2.º, Lisboa, mas quem escrevia fazia-o de Aldeia do Cuor. Desvendava-se o segredo, o primeiro, pois como se adiantará a dita Companhia de Fomento Nacional terá dado lugar a outra empresa, a Sociedade Agrícola do Gambiel, porventura, ainda não se encontraram provas concludentes nessa associação. O que para o caso interessa é que aquele alferes miliciano descobria, cerca de 50 anos depois o nome da exploração agrícola respeitante àqueles paredões de pedra acastanhada, como reza no documento que ora tem nas mãos:

“Exploração na Guiné situada na circunscrição civil da Bafatá, ocupando em parte os regulados do Cuor, Joladu e Mansomine, fazendo sede no lugar denominado Aldeia de Cuor, à margem do rio Geba”. (**)

(Continua)

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Notas do editor

(*) Poste anterior de 27 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17908: Notas de leitura (1008): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Olhando para o mapa de Bambadinca, e para o curso do rio Geba Estreito... Camaradas, estão a imaginar uma viagem ao longo daquele "corpo de serpente", de Bambadinca a Bafatá ? Será que alguém fez essa experiênciq ?... LG