quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17924: Os nossos seres, saberes e lazeres (238): Mais uma vez os velhinhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

© Adão Cruz

1. Em mensagem do dia 29 de Outubro de 2017, o nosso camarada Adão Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), enviou-nos este texto que, com muito humor e ironia, descreve um quadro comportamental de pessoas de idade avançada, "os velhinhos", como lhes chama.


Mais uma vez os velhinhos

Adão Cruz

Aqui há uns tempos atrás escrevi um texto intitulado “os velhinhos”, o qual transcrevo de seguida, a fim de dar sequência ao que hoje, sobre o mesmo tema, vos quero dizer. 
Desta forma, tento fazer um enxerto de encosto, ou melhor, um enxerto de garfo entre este texto e o que hoje vivi à hora do almoço. 

 “Há vários restaurantes clássicos e tradicionais no Porto, aos quais acorrem, sobretudo ao Domingo, as terceira e quarta idades. 
Como é óbvio, também por lá ando. Odeio a velhice mas nunca os velhinhos, um pouco na mesma linha de que odeio as religiões mas nunca os que as professam. 
Por vezes convido o meu filho Marcos, não só porque gosto de estar com ele, mas também como contrapeso. Empresta-me um certo arejo de mais novo, e permite-nos discorrer sobre filosofias da vida para as quais nos estaríamos marimbando se não fosse a garrafinha à nossa frente, às vezes duas. 

Hoje fui sozinho a um desses restaurantes comer um cozidinho à portuguesa. Ia eu a meio da orelheira quando eles, os velhinhos, começaram a chegar. Bem alinhados nas roupas e nos arranjos, eles e elas, mais elas do que eles, numa derradeira tentativa de exumar alguns restos de juventude. 
Logo à cabeça, um antigo colega meu do Hospital de Santo António, que por acaso operara em tempos idos a minha irmã, e logo atrás a sua própria irmã, que fora minha colega de curso. Que ternura! Quem os viu e quem os vê! O suficiente para eu parar de roer a unha, do porco, claro, e abrir os arquivos neuronais de há trinta ou quarenta anos atrás. Quase me apetecia chorar se não fosse as couvinhas estarem-me a saber tão bem. 
Logo a seguir, uma senhora de média idade, com ar de Senhora de Fátima, pedia uma mesa para seis. Podia ser aquela que estava mesmo à minha frente, disse o empregado. 
Logo entraram dois de terceira idade, mais um de quarta idade, e, um tanto atrasados, uma outra senhora de meia idade, também com ar de Nossa Senhora de outra coisa qualquer, amparando um velhinho a arrastar-se, de braços trémulos no ar, como que a dizer “Dominus Vobiscum”. Uma cena provavelmente comum no Reino dos Céus. 
Dizia um dos de terceira idade, carteira a tiracolo, calça pelo meio da perna e sapatilhas brancas da moda: então, o que escolhem? Ao que respondeu o outro, de quarta idade, a quem uma lufada de vento havia tombado definitivamente para o lado esquerdo: comida mole, comida mole. 

Tomei o meu cafezinho e pedi a conta. Nesse preciso momento, sentou-se na mesa ao lado um sujeito dos seus oitenta e muitos, torcendo a face com aquele esgar esquisito que denuncia a puta da dor das artroses, todo vestido a condizer, certamente ao gosto da filha ou da neta e não da mulher, que Deus provavelmente já havia chamado à sua Divina Presença. 
No meio da confusão, o empregado colocou a minha factura na mesa do velho, ao que ele reagiu vociferando: Que caralho é isto? Eu ainda nem pedi nada! 

É preciso vir a estes sítios para sentirmos a ternura da velhice. Odeio a velhice, mas cada vez mais me sinto pateticamente encantado com o mundo dos velhos, a sua profunda poesia e a dramática coreografia da antecâmara da morte”

Hoje, dia 29 de Outubro, lá estava eu no meu lugarzinho no centro da primeira sala do “Caetano”, quando começam a entrar os velhinhos da terceira e quarta idades. Uma verdadeira enchente, quase parecia uma peregrinação. Não sei qual a causa de tal invasão, mas talvez o facto de a hora ter mudado lhes tenha feito sentir que tinham mais uma hora de vida. 
Um verdadeiro caos que pôs os empregados à nora, a servirem aos gritos e a trocarem peixe por carne e entradas por saídas. Nunca tal barafunda eu vi. 

Gostaria de descrevê-los a todos mas é impossível. Um deles, com muitos em cima dos oitenta, de calção e mochila às costas, presa apenas pela asa esquerda e que o fazia pender para esse lado, pendência que ele equilibrava com a bengala na mão esquerda, caminhava quase afoitamente em frente. Dizia o provável filho que o seguia atrás: 
- Sempre em frente, cuidado com o degrau. 
Respondia o velhinho: 
- Sempre em frente, cuidado com o degrau. Mas se não fosse, de imediato, o filho deitar-lhe a mão à alça da mochila bem que ele batia com o nariz no chão. 
Logo de seguida, outro pai velhinho com um andarilho em cada mão. Dizia-lhe o presumível filho: 
- Cuidado com o degrau. 
- Eu sei, respondeu o pai, mas se não fosse a rápida mão do filho a arrepanhar-lhe a gola do casaco, lá ia o almoço no dia em que a hora mudou. 
Um outro velhinho, de braço dado com a filha ou nora, era delicadamente arrastado ao longo da sala. Ao passar junto à minha mesa que ficava mesmo em cima do trajecto, embateu com uma cadeira que estava um pouco desalinhada. 
Olhou-me com a ferocidade que a idade lhe permitia e atacou: 
- Que grande merda. 
Uns passos adiante, alguns neurónios lhe devem ter dito que não foi correcto. Voltou a cabeça na minha direcção, e com um esgar em forma de sorriso emendou: 
- Desculpe. 

Eu ia a meio do pernil, quando uma velhinha muito pequenina e curvada, a passar para a quinta idade, acompanhada pela filha - desta vez era mesmo filha porque as caras eram iguais - alta, quase velha e de mini-saia na fronteira do arrojo, me desejou bom apetite, com um sorriso do tamanho da filha que tinha uns saltos dos sapatos do tamanho da mãe. 

Já eu tinha na frente o cafezinho, quando entram três irmãs, bem perto dos noventas, discutindo entre elas se o cozido teria orelheira e focinho. Se não tivesse iriam para o robalo. 
Sentaram-se atrás de mim e a conversa continuou, desta vez à volta do tintol. Um quarto, meia, ou uma? 

Sabia-me bem estar ali mais algum tempo, mas a minha mesa que era de três estava a ser precisa. 
Um após outro, uma após outra, entrelaçados de filhos, netos e artroses, os velhinhos entravam aos magotes, como eu nunca vi, em direcção ao sacrossanto altar das tripinhas e do cozido do “Caetano”. 

Eu sei lá, era tal a balbúrdia que os empregados perderam a postura e até me debitaram metade do que eu consumi. Não incluíram a segunda caneca de tinto nem o pão nem o bagaço, mas puseram na conta uma sopa que não comi. Costumo sempre corrigir as contas, mas desta vez, dada a confusão, calei-me. 
Ficou ela por ela.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17922: Os nossos seres, saberes e lazeres (237): Em Drumlanrig Castle, o esplendor dos jardins escoceses (7) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Gostei imenso da história (ou estória), Adão Cruz.
muita saúde e olha atento nos velhinhos, para termos mais histórias desses tripeiros.
Não haverá nenhum "mouro" disfarçado, no meio deles?
Continuação de boa disposição para ires visitar o "Caetano", e saborear os belos cozidos e tripas que, pelo texto, devem ser óptimos.
Já agora, "adonde fica o dito"?
Abraço.

Hélder Valério disse...

Ora bem....

Para o meu amigo José Martins, digo que "O Caetano" fica na Av. de Fernão de Magalhães, no Porto.

Quanto ao "fresco" que Adão Cruz nos presenteou, trata-se de uma preciosidade e que não deve andar muito longe do que se passa à volta de muitos de nós, se não connosco mesmo, salvaguardadas as respectivas diferenças.
Quando calha estar sozinho também o meu entretenimento favorito é observar a "fauna" à volta, como se comportam, o que dizem, o que os interessa, etc. E é muito enriuecedor.

Abraços
Hélder Sousa