Angola, província do Uíge.Era quase duas meses o tamanho da Guiné.
Cortesia de Wikipédia.
por Fernando de Sousa Ribeiro
O Fernando de Sousa Ribeiro foi alf mil da CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74; é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão nº lugar nº 780.]
Muitos dos camaradas do meu batalhão, talvez não soubessem ao certo onde é que ficavam a Ponte do Zádi e o Béu [, em Angola, na província do Uíge, no extremo norte, fazendo fronteira com a norte e a leste com República Democrática do Congo]. É natural, pois nunca lá devem ter ido. Pois bem. O Béu ficava a algumas dezenas de quilómetros a leste de Maquela e era onde estava a sede da CCAÇ 3537. A estrada (de terra, claro) que ligava Maquela do Zombo ao Béu passava pela Ponte do Zádi, que era a sede da minha CCAÇ 3535. A Ponte do Zádi, portanto, ficava entre Maquela e o Béu.
O comandante da minha companhia gostava de ir todos os sábados à noite a Maquela [, sede da CCAÇ 3536, da CCS e do comando do batalhão] divertir-se um pouco. Quem ficava a "tomar conta" do quartel era, por isso, um alferes. Várias vezes fui eu mesmo.
E vem a propósito contar aqui um episódio ocorrido num desses sábados à noite no Zádi...
Num dos tais sábados à noite, parou à porta da messe de oficiais do Zádi um jipe, onde vinha sozinho o capitão Alvim, que também tinha ido a Maquela. Achei estranho que ele viesse sozinho, sem escolta. Mais estranho achei o estado em que ele se encontrava quando saiu do jipe. Completamente alterado e embriagado, como eu nunca o tinha visto antes, o Alvim avançou cambaleante e dirigiu-se-me, atropelando as palavras umas nas outras:
- Ó Ribeiro, deixe-me entrar para descansar um bocado... Filhos da puta! Estou completamente fora de mim... Que grandes filhos da puta! Não estou em condições de continuar a viagem até ao Béu... Eu devia mas era desertar! Preciso urgentemente de descansar... Mas que filhos da puta!
Fiquei completamente parvo com o estado em que o capitão Alvim se encontrava e com as palavras aparentemente desconchavadas que dizia. O Alvim, que era um homem sempre tão sereno, tão imperturbável, naquele estado... O que teria acontecido?
Convidei-o a entrar na messe e a sentar-se. Servi-lhe já não sei o quê, disse-lhe para se descontrair e, quando ele ficou um pouco mais calmo, perguntei-lhe o que foi que aconteceu. O Alvim contou-me então o que tinha presenciado em Maquela.
Vou tentar reproduzir de forma clara e ordenada o que ele me contou de forma confusa.
Já era de noite, quando alguém entrou na messe de oficiais de Maquela para chamar o médico. Disse que tinha dado entrada no hospital da vila um homem muito ferido, que precisava de ser visto urgentemente. O alf mil médico Branco levantou-se e seguiu para o hospital. Quando entrou e viu o ferido, disse em voz baixa:
- Chicotadas...
O homem tinha as costas todas retalhadas, em carne viva! O Branco perguntou em seguida, em voz mais alta, o que tinha acontecido. Responderam-lhe que o homem era um trabalhador de uma fazenda do Lino, que estava a cortar uma árvore lá na fazenda e que a árvore lhe caiu em cima. Comentou o Branco:
- A cortar uma árvore à noite?... Ainda por cima num sábado?! Além do mais, uma árvore não faz ferimentos assim, como estes! O que este homem foi, foi chicoteado!
E acrescentou:
- Este homem precisa de ser evacuado imediatamente para Luanda. Eu não tenho meios aqui para tratar feridos com esta gravidade. Ele tem de ser evacuado imediatamente, senão morre-me nas mãos. Assim como está, ele não chega vivo até amanhã de manhã!
O comandante do nosso batalhão, quando foi informado da necessidade de evacuar para Luanda um ferido civil muito grave, porque tinha sido chicoteado quase até à morte, ficou muito preocupado. Comentou:
- Como é que vamos conseguir a evacuação de um homem para Luanda a esta hora? Aqui em Maquela não há aviões e, mesmo se houvesse, o piloto recusar-se-ia a voar de noite até Luanda. E com razão. Um voo noturno é muito arriscado.
Como era imperioso evacuar o homem, o comandante resolveu entrar em contacto com uma companhia de táxis aéreos que havia em São Salvador, a qual tinha pelo menos um avião permanentemente na pista. Esperava levar uma nega, como de facto levou.
- Ó senhor coronel - disseram-lhe de São Salvador. - Nós não temos condições para fazer voos noturnos até Luanda. Os nossos aviões não têm meios para fazer esses voos. O senhor coronel não leve a mal, mas não é por falta de vontade nossa. É mesmo impossível voar de noite até Luanda. Acredite. Só a Força Aérea é que pode fazer voos desses. Mais ninguém.
O coronel Figueiredo agradeceu, desligou e comentou:
- Ora, ora, a Força Aérea... A Força Aérea só evacua militares, não evacua civis! E agora, o que vamos fazer?
Como não havia mais nenhuma alternativa, o comandante resolveu entrar em contacto com o Aeródromo Base do Negage, da Força Aérea, esperando receber uma firme resposta negativa.
- Daqui fala o coronel Figueiredo, do Exército, comandante do Batalhão de Caçadores que está em Maquela do Zombo - identificou-se através do rádio. - Preciso de falar pessoalmente com o comandante da base ou quem o substitua, com a máxima urgência.
Responderam-lhe do Negage:
- O comandante da base não está. Como é sábado à noite, ele encontra-se ausente...
- Não interessa! Chame o oficial mais graduado que estiver aí a comandar a base neste momento! É muito urgente! - insistiu o Figueiredo.
Quando o substituto do comandante da base chegou ao rádio, o coronel contou-lhe que havia em Maquela um civil gravemente ferido, que precisava de ser evacuado com a máxima urgência para Luanda. A resposta foi a que ele esperava:
- O senhor sabe muito bem que nós não evacuamos civis, só militares - disse o aviador. - Além disso, não temos aviões capazes de fazer um tal voo até Luanda, a não ser aviões grandes, como os Nord-Atlas, que são aviões de transporte de tropas. Ora nós não vamos mobilizar um Nord-Atlas de propósito, só para transportar uma pessoa!
- Mas é um caso excecional, urgentíssimo! - insistiu o comandante do batalhão.
- Lamento muito, mas não podemos. O senhor sabe muito bem isso.
O coronel Figueiredo teve então uma ideia.
- Ouça lá! - chamou, antes que o outro desligasse o rádio. - Não está nas funções da Força Aérea a prestação de assistência às populações?
- Está, claro que está - respondeu o aviador. - Isso cai no âmbito da "psico"...
- Então pronto! - exclamou o coronel. - O homem é negro, é da população local... Pode ser evacuado!
- O senhor é terrível! Não desiste!
- Não desisto, não - respondeu o Figueiredo.
- Está um homem a morrer e eu não vou desistir enquanto ele não for evacuado.
- Está bem, pronto, a gente evacua o homem e não se fala mais nisso, acabou! - cedeu finalmente o outro. - Mas é a primeira e última vez! Que não se volte a repetir!
- Espero que não, espero que não...
- Então fica assim: nós vamos entrar imediatamente em contacto com o nosso pessoal que está no aeródromo de manobra aí em Maquela, para que faça a iluminação da pista, e vamos já mandar um Nord-Atlas para aí.
O trabalhador ferido acabou finalmente por ser evacuado para Luanda, num avião Nord-Atlas.
De volta ao centro da vila, o comandante afirmou que o incidente ocorrido com o trabalhador tinha sido tão grave, que ia participar o caso à polícia, para que investigasse o que aconteceu. Um civil branco, que estava presente e que o ouviu, opôs-se firmemente à ideia, dizendo:
- Não vamos agora incomodar o senhor Lino por causa de um preto...
Perante a oposição manifestada pelo civil, o comandante desistiu da participação à polícia. O capitão Alvim disse-me que provavelmente tinha sido porque o Figueiredo temia ser prejudicado na sua carreira militar. O Lino era o homem mais rico de Maquela e podia ter conhecimentos suficientemente influentes, que pudessem prejudicá-lo junto das altas chefias militares em Luanda.
O capitão Alvim, por seu lado, que tinha asssistido a todos estes acontecimentos pessoalmente, sentiu-se profundamente revoltado com o sucedido e começou a emborcar whiskies atrás de whiskies. A dado momento levantou-se desvairado, entrou no seu jipe e arrancou sozinho a caminho do Béu, sem esperar pela escolta que o tinha acompanhado. Durante todo o tempo, dizia sem parar:
- Filhos da puta! Grandes filhos da puta! Quase mataram um homem à chicotada! E é para defender estes filhos da puta que eu estou aqui! Eu devia mas era desertar! "Não vamos incomodar o senhor Lino por causa de um preto", diz o gajo... Um preto é um homem, porra! Mas que grandes filhos da puta!
Era isto mesmo o que ele dizia quando chegou à Ponte do Zádi e foi isto mesmo o que ele repetiu, inúmeras vezes, enquanto me contou o sucedido.
Fernando de Sousa Ribeiro
Muitos dos camaradas do meu batalhão, talvez não soubessem ao certo onde é que ficavam a Ponte do Zádi e o Béu [, em Angola, na província do Uíge, no extremo norte, fazendo fronteira com a norte e a leste com República Democrática do Congo]. É natural, pois nunca lá devem ter ido. Pois bem. O Béu ficava a algumas dezenas de quilómetros a leste de Maquela e era onde estava a sede da CCAÇ 3537. A estrada (de terra, claro) que ligava Maquela do Zombo ao Béu passava pela Ponte do Zádi, que era a sede da minha CCAÇ 3535. A Ponte do Zádi, portanto, ficava entre Maquela e o Béu.
O alf mil Fernando de Sousa Ribeiro |
E vem a propósito contar aqui um episódio ocorrido num desses sábados à noite no Zádi...
Num dos tais sábados à noite, parou à porta da messe de oficiais do Zádi um jipe, onde vinha sozinho o capitão Alvim, que também tinha ido a Maquela. Achei estranho que ele viesse sozinho, sem escolta. Mais estranho achei o estado em que ele se encontrava quando saiu do jipe. Completamente alterado e embriagado, como eu nunca o tinha visto antes, o Alvim avançou cambaleante e dirigiu-se-me, atropelando as palavras umas nas outras:
- Ó Ribeiro, deixe-me entrar para descansar um bocado... Filhos da puta! Estou completamente fora de mim... Que grandes filhos da puta! Não estou em condições de continuar a viagem até ao Béu... Eu devia mas era desertar! Preciso urgentemente de descansar... Mas que filhos da puta!
Fiquei completamente parvo com o estado em que o capitão Alvim se encontrava e com as palavras aparentemente desconchavadas que dizia. O Alvim, que era um homem sempre tão sereno, tão imperturbável, naquele estado... O que teria acontecido?
Convidei-o a entrar na messe e a sentar-se. Servi-lhe já não sei o quê, disse-lhe para se descontrair e, quando ele ficou um pouco mais calmo, perguntei-lhe o que foi que aconteceu. O Alvim contou-me então o que tinha presenciado em Maquela.
Vou tentar reproduzir de forma clara e ordenada o que ele me contou de forma confusa.
Já era de noite, quando alguém entrou na messe de oficiais de Maquela para chamar o médico. Disse que tinha dado entrada no hospital da vila um homem muito ferido, que precisava de ser visto urgentemente. O alf mil médico Branco levantou-se e seguiu para o hospital. Quando entrou e viu o ferido, disse em voz baixa:
- Chicotadas...
O homem tinha as costas todas retalhadas, em carne viva! O Branco perguntou em seguida, em voz mais alta, o que tinha acontecido. Responderam-lhe que o homem era um trabalhador de uma fazenda do Lino, que estava a cortar uma árvore lá na fazenda e que a árvore lhe caiu em cima. Comentou o Branco:
- A cortar uma árvore à noite?... Ainda por cima num sábado?! Além do mais, uma árvore não faz ferimentos assim, como estes! O que este homem foi, foi chicoteado!
E acrescentou:
- Este homem precisa de ser evacuado imediatamente para Luanda. Eu não tenho meios aqui para tratar feridos com esta gravidade. Ele tem de ser evacuado imediatamente, senão morre-me nas mãos. Assim como está, ele não chega vivo até amanhã de manhã!
O comandante do nosso batalhão, quando foi informado da necessidade de evacuar para Luanda um ferido civil muito grave, porque tinha sido chicoteado quase até à morte, ficou muito preocupado. Comentou:
- Como é que vamos conseguir a evacuação de um homem para Luanda a esta hora? Aqui em Maquela não há aviões e, mesmo se houvesse, o piloto recusar-se-ia a voar de noite até Luanda. E com razão. Um voo noturno é muito arriscado.
Como era imperioso evacuar o homem, o comandante resolveu entrar em contacto com uma companhia de táxis aéreos que havia em São Salvador, a qual tinha pelo menos um avião permanentemente na pista. Esperava levar uma nega, como de facto levou.
- Ó senhor coronel - disseram-lhe de São Salvador. - Nós não temos condições para fazer voos noturnos até Luanda. Os nossos aviões não têm meios para fazer esses voos. O senhor coronel não leve a mal, mas não é por falta de vontade nossa. É mesmo impossível voar de noite até Luanda. Acredite. Só a Força Aérea é que pode fazer voos desses. Mais ninguém.
O coronel Figueiredo agradeceu, desligou e comentou:
- Ora, ora, a Força Aérea... A Força Aérea só evacua militares, não evacua civis! E agora, o que vamos fazer?
Como não havia mais nenhuma alternativa, o comandante resolveu entrar em contacto com o Aeródromo Base do Negage, da Força Aérea, esperando receber uma firme resposta negativa.
- Daqui fala o coronel Figueiredo, do Exército, comandante do Batalhão de Caçadores que está em Maquela do Zombo - identificou-se através do rádio. - Preciso de falar pessoalmente com o comandante da base ou quem o substitua, com a máxima urgência.
Responderam-lhe do Negage:
- O comandante da base não está. Como é sábado à noite, ele encontra-se ausente...
- Não interessa! Chame o oficial mais graduado que estiver aí a comandar a base neste momento! É muito urgente! - insistiu o Figueiredo.
Quando o substituto do comandante da base chegou ao rádio, o coronel contou-lhe que havia em Maquela um civil gravemente ferido, que precisava de ser evacuado com a máxima urgência para Luanda. A resposta foi a que ele esperava:
- O senhor sabe muito bem que nós não evacuamos civis, só militares - disse o aviador. - Além disso, não temos aviões capazes de fazer um tal voo até Luanda, a não ser aviões grandes, como os Nord-Atlas, que são aviões de transporte de tropas. Ora nós não vamos mobilizar um Nord-Atlas de propósito, só para transportar uma pessoa!
- Mas é um caso excecional, urgentíssimo! - insistiu o comandante do batalhão.
- Lamento muito, mas não podemos. O senhor sabe muito bem isso.
O coronel Figueiredo teve então uma ideia.
- Ouça lá! - chamou, antes que o outro desligasse o rádio. - Não está nas funções da Força Aérea a prestação de assistência às populações?
- Está, claro que está - respondeu o aviador. - Isso cai no âmbito da "psico"...
- Então pronto! - exclamou o coronel. - O homem é negro, é da população local... Pode ser evacuado!
- O senhor é terrível! Não desiste!
- Não desisto, não - respondeu o Figueiredo.
- Está um homem a morrer e eu não vou desistir enquanto ele não for evacuado.
- Está bem, pronto, a gente evacua o homem e não se fala mais nisso, acabou! - cedeu finalmente o outro. - Mas é a primeira e última vez! Que não se volte a repetir!
- Espero que não, espero que não...
- Então fica assim: nós vamos entrar imediatamente em contacto com o nosso pessoal que está no aeródromo de manobra aí em Maquela, para que faça a iluminação da pista, e vamos já mandar um Nord-Atlas para aí.
O trabalhador ferido acabou finalmente por ser evacuado para Luanda, num avião Nord-Atlas.
De volta ao centro da vila, o comandante afirmou que o incidente ocorrido com o trabalhador tinha sido tão grave, que ia participar o caso à polícia, para que investigasse o que aconteceu. Um civil branco, que estava presente e que o ouviu, opôs-se firmemente à ideia, dizendo:
- Não vamos agora incomodar o senhor Lino por causa de um preto...
Perante a oposição manifestada pelo civil, o comandante desistiu da participação à polícia. O capitão Alvim disse-me que provavelmente tinha sido porque o Figueiredo temia ser prejudicado na sua carreira militar. O Lino era o homem mais rico de Maquela e podia ter conhecimentos suficientemente influentes, que pudessem prejudicá-lo junto das altas chefias militares em Luanda.
O capitão Alvim, por seu lado, que tinha asssistido a todos estes acontecimentos pessoalmente, sentiu-se profundamente revoltado com o sucedido e começou a emborcar whiskies atrás de whiskies. A dado momento levantou-se desvairado, entrou no seu jipe e arrancou sozinho a caminho do Béu, sem esperar pela escolta que o tinha acompanhado. Durante todo o tempo, dizia sem parar:
- Filhos da puta! Grandes filhos da puta! Quase mataram um homem à chicotada! E é para defender estes filhos da puta que eu estou aqui! Eu devia mas era desertar! "Não vamos incomodar o senhor Lino por causa de um preto", diz o gajo... Um preto é um homem, porra! Mas que grandes filhos da puta!
Era isto mesmo o que ele dizia quando chegou à Ponte do Zádi e foi isto mesmo o que ele repetiu, inúmeras vezes, enquanto me contou o sucedido.
Fernando de Sousa Ribeiro
15 comentários:
Obrigado, Fernando, por nesta história "exemplar" que me deixaste reproduzir e adaptar... Nada como uma boa história do nosso tempo de tropa e de guerra...
Como sabes, o nosso blogue é não é um "tribunal da opinião pública"... Não nos interessa absolutamente nada as responsabilidades (políticas, morais, legais, militares, disciplinares, criminais...) do que se fez durante a guerra colonial... A história nos julgará, enquanto geração...
As responsabilidades de camaradas nossos, e camarada para muim vai até comandante operacional (capitão, no máximo)... Daí para cima, era a hierarquia militar... que não andava connosco no mato, comn honrosas exceções...
No nosso blogue, só queremos "contar as nossas histórias"... E essa tua, merecia ser melhor divulgada, até por que é um daquelas histórias de que eu gosto muito, "com mu(o)ral ao fundo"... Cada um escreve no "mural" a legenda que entender...
Vamos abrir uma nova série, pode ser que apareçam mais, tuas ou de outros camaradas... Também tenho algumas...
Um bom fim de semana. Goza este sol de inverno. Luís
Uma pequena amostra do que colonos faziam. Isto já com a guerra a decorrer, o que faz pensar que as muitas estórias sobre a facilidade com que matavam um negro são bem verdade antes do rebentar dela rebentar .
Nem sempre é fácil falar-se disto
Um abraço
Caros Luís e Fernando Ribeiro,
Conforme o Luís sabe, sou um africanista do coração, e naquele continente passei alguns períodos de férias seduzido pelas populações, pelas extensas paisagens, pelo clima muito agradável, mesmo com tempestades, pela fauna e pela flora exuberantes, e por outras razões que não cabem aqui, tantas foram elas.
Comento o texto que apreciei pela crueza do relato, e pela nossa obrigação social de repudiar todos os actos de agressão, independentemente dos graus de violência aplicados.
Todavia, digo com franca satisfação, nos meus anos africanos de soberania portuguesa nunca assisti a algum acto de aproximada brutalidade. o contrário, deixo aqui o registo de ter vivido e presenciado convivências pacíficas, respeitosas e dignas de qualquer comunidade.
Um ou outra vez tomei conhecimento ou terei assistido a alguma confusão, por exemplo pelo atropelamento de um animal doméstico solto e descontrolado na via pública. Mas as coisas resolveram-se com relativa facilidade.
Como já tenho referido, durante os nos 70 Angola presentava um desenvolvimento económico e social absolutamente invejáveis, que decorriam de taxas de crescimento da ordem dos 20%. Obviamente, o crescimento era médio, e havia regiões muito mais adiantadas que outras, mas o alargamento do ensino e a integração social alimentavam a esperança de que Angola teria um futuro de muita ambição e harmonia, e tudo isto alcançado num curto prazo de 50 anos desde a 1ª Grande Guerra.
Abraços fraternos
JD
Em Angola só tive a vivência de( mesmo no meio da guerra ) casos positivos.Num destacamento de Cabinda evacuei militares e muitos civis pretos.Como um caso de uma preta grávida que necessitava de cuidados médicos.Casos que não se passam hoje com a nossa população,Como tem sido os casos com os helicópteros do INEM.
Carlos GVaspar ex-FAP
Quando escrevi GVASPAR queria dizer Carlos Gaspar
Abraço
O António Rosinha que penso ser de Angola ou ter vivido uma parte da vida dele lá,
terá certamento conhecimento . da vivência positiva entre militares e civis, brancos e pretos.
Abraços Carlos Gaspar
Zé Manel Dinis: É bom ver-te de volta ao nosso blogue e não eu perco a esperança de te ver regressar, também, um dia destes, à Magnífica Tabanca da Linha onde deixaste pelo menos metade da tua alma... Não esqueço que tu foste um dos grandes animadores, para não dizer o grande entusiasta, desta tertúlia... O que se passou depois não sei, mas lamento o que aconteceu, porque implicou a (ou levou à) tua autoexclusão...
Sei que a Guiné e, ainda mais, Angola, ficaram no teu coração... No caso da Angola que tu conheceste, eu tenho que ser cauteloso: é que eu só a conheço (e mal) desde 2003, mas também te digo que é terra e gente que muito amo.
A história que o Fernando de Sousa Ribeiro relata vale por si só, e tem que ser circunscrita ao que se passou naquela noite... Todas as generalizações são abusivas... Ter-se-á passado em 1973 ou já em 1974... nas terras do Uíge, ou seja, dos cafezais, de primordial importância para a economia de Angola naquela época... De tal maneira que havia companhias sediadas em fazendas de café...
Depois dos terríveis acontecimentos de 1961, mal seria que as coisas, 12 ou 13 anos depois, não tivessem mudado nas fazendas de café em Angola... Refiro-me às relações de trabalho, sociais, tec.
Repara: a história que nos é contada é um "puzzle", incompleto... Falo apenas como leitor, como tu... O fio condutor pode levar ao fazendeiro Lino (nome fictício), que é o homem mais rico e influente de Maquela do Zombo... É apenas uma pista... Não sabemos quem chicoteou ou mandou chicotear o pobre negro, trabalhador da fazenda do Lino ... O que nos pode "chocar" é a atitude de cinismo (calculado) do nosso coronel Figueiredo (nome fictício), e o seu temor reverencial perante os mais poderosos do que ele...´Ele, como comandante do batalhão, deveria ter sido coerente e vertical até ao fim... Mas não foi... Aquele era um caso de justiça: um homem, independentemente da cor, tinha sido chiocteado quase até à morte... Estamos na área da sua jurisdição militar.
(Continua)
Zé Manel Dinis:
(Continuação=
Na Guiné, no nosso tempo, no tempo do Spínola (1968/73), provavelvemente o coronel Figueiredo teria levado a sua missão até ao fim, ou seja, até às últimas consequêcias... Mas na Guiné não havia colonos, apenas meia dúzia de pobres comerciantes portugueses e libaneses, perdidos no mato, e já todos "cafrealizados" (, passe a expressão, que é "racista")...
A administração colonial, toda poderosa, até ao início da guerra, tinha sido completamente ultrapassada pelas Forças Armadas... Era a tropa quem prestava cuidados médicos, assegurava o funcionamento as escolas, construía reordenamentos, administratva a justia, em cooperação ocm os régulos, e inclusive assegurava, muitas vezes, o abastecimento alimentar das populações nas zonas de guerra...
A Guiné estava completamente militarizada no meu tempo, e a haver algum "boom" económico era apenas devido à economia de guerra... Os dois grupos económicos que até ao início da guerra, dominavma a economia (Casa Gouveia / CUF e Sociedade Comercial Ultramarina /BNU estão de rastos... Por outro, os abusos da administração civil, da PIDE e da tropa no passado eram mais dificilmente repetíveis no tempo do Spínola...
Não quer isto dizer que os não tenha havido, no meu tempo... No meu tempo, no BCAÇ 2852, em Bambadinca, usava-se o cavalo marinho para fazer falar os prisioneiros... Por isso, históras da Guiné "com mu(o)ral ao fundo" também se precisam, dos tempos em que lá estivemos, de 1961 a 1974... Mas o nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, cujo amor por Angola e aos angolanos não pode ser posto em causa, terá, por certo, algo mais a acrescentar para a compreensão desta história de que ele foi apenas, em parte, testemunha por interposta pessoa (neste caso, o capitão Alvim)...
Fica bem, e cuida de ti!... Vou-te mandar mais uns jornais de Angola... Lembro-te sempre de ti, e do Rosinha, quando recebo jornais de Angola... Vocês são dois dos camaradas "angolanos" a quem eu costumo reenviar esses jornais, quando me lembro e tenho tempo...
Um alfabravo do Luis
Boa noite Luís,
Muito obrigado pela tua esclarecida resposta. Cheguei à Guiné em Fev/70, e a Angola em Mai/72. Era grande a diferença entre as duas provincias. Na Guiné vivia-se um ambiente com grande intensidade de guerra, e como referes, e a economia era largamente influenciada pela presença militar, apesar das exportações de produtos agrícolas para a metrópole.
Angola vivia com um estrutura civilizacional diferente, cujos padrões variavam entre o urbano das cidades modernas, as pequenas localidades com estruturas urbanas modernas, as fazendas com alguma organização de apoio social, e as pequenas comunidades dispersas pelo extenso território (em grande parte despovoado até o século vinte) que se dedicavam à pastoricia e/ou à agricultura de sobrevivência. Só estas diferenças na estrutura social dão uma ideia das diferenças entre ambas as provincias, e deve considerar-se a ocupação militar onde a quadrícula chegava a distanciar-se por muitas dezenas de quilómetros. Eu morei a cerca de 1200 Km de Luanda, na região fronteiriça com o Catanga.
Senhores Linos poderia haver em função da extensão do território e das conhecidas fragilidades de alguns responsáveis perante um "terrateniente", como foi o caso do referido coronel. E o relato não refere que o Lino tenha intervido na punição, eram s hierarquias que se agachavam perante um poder de influência. Mas convém referir, que na dinâmica social das colónias, «as condições económicas suscitam (entre os europeus), ao mesmo tempo, o racismo e a consciência de uma missão civilizadora».
A talhe de foice, parece que a influência de individuos como o coronel, é que dão consistência a atitudes directas ou indirectas de colonialismo, como também se verificavam e ainda se verificam hoje em dia no nosso País, mas não caracterizavam a presença portuguesa naquelas socieadades.
Abraços fraternos
Caros amigos,
Nao parece haver duvidas de que, casos como este, narrado por um insuspeito ex-oficial do exercito (Fernando S. Ribeiro) em Angola, foram o lugar comum do Sistema colonial portugues nos territorios ultramarinos, com particular enfase em Africa, onde tudo era permitido, em nome da civilizaçao dos indigenas, indolentes por natureza e aos quais era preciso disciplinar, incutir civilizaçao e amor ao trabalho. Era isto que caracterizava a presença portuguesa naquelas sociedades, com leis de trabalho como o Codigo Indigena que permitiam, de forma velada, a continuaçao do trabalho escravo a favor de Ponteiros e grupos economicos ao serviço do Sistema colonial.
Se calhar, o nosso amigo ZDinis tem estado um pouco afastado do Blogue e nao tem acompanhado as cronicas desconhecidas do canal do Geba que o Mario Beja Santos nos tem propiciado sobre a Guiné do inicio do sec. 20 até o inicio da revolta, suas causas e consequencias.
De facto, o colonialismo, tal como estava instituido, era incompativel com a presença de tropas vindas da metropole (na minha terra, quando queriamos fugir dos trabalhos obrigatorios de limpeza das estradas, iamos para o quartel, onde os agentes/Sipaios nao se atreviam a entrar) e, no caso da Guiné, podemos dizer que a partir de 1968/69, ja viviamos numa era nova de Liberdade a que os mais velhos nunca tinham conhecido, graças a nova politica encetada pelo Gen. Spinola na tentativa de acabar com a Guerra.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
Subscrevo na totalidade as palavras do Cherno Baldé.
Não comento mais nada porque desconheço quase em absoluto, não vale a pena escrever aquilo que não se sabe e não se sente.
Ab, Virgilio Teixeira
OLá Cherno, boa noite,
Pois é verdade que venho muito irregularmente ao Blogue, e que li apenas algumas das publicações do Mário Beja Santos sobre as actividades do grupo BNU durante o período que antecedeu a guerra.
Sempre aqui afirmei, que a generalidade das minhas opiniões assentam nos períodos em que vivi em África. Acho que também referi que trabalhei com indígenas angolanos de quem guardo excelentes memórias enquanto homens e trabalhadores. Nesse tempo que lá vivi, posso garantir, que não tinha medo por estar com 200 homens numa mina isolada, nem eles receavam quaisquer perturbações que lhes tivesse causado. Tive um assalto ao escritório onde guardei dois salários, devidos a dois trabalhadores ausentes naquele dia. Entre nós havia boa relação, e o pessoal sabia que não podia abandonar as tarefas para iniciar outras no dia seguinte. Digamos que era exigente, mas também incentivava a que fizessem plantações de mandioca e milho, e não cortava nas rações servidas no refeitório. Igualmente tinha a preocupação de acompanhar trabalhadores ou familiares o hospital para assistência rápida. Outros colegas teriam relações ainda melhores.
O código do indígena foi uma «cópia» de documento idêntico ao que se aplicava nas colónias britânicas. No meu tempo já se aplicava o mesmo Código do Trabalho que vigorava na metrópole, e devia ser aplicado na Guiné. Aliás, isso fazia parte da política integracionista que impunha a igualdade de deveres e de direitos. Acredito que houvesse «Linos» resistentes às orientações oficiais. Convido-te fazeres consultas sobre a época, pois o General Spínola nâo simbolizava uma excepção territorial. Apesar do que refiro, sei muito bem das caracteristicas que citaste do trato de alguns colonos, mas se uns as citavam em paródia (o que nao seria elevado), eu constatei que alguns indígenas aprendiam e mereciam confiança no exercício de actividades técnicas, como manobradores de máquinas, electricistas, ou mecânicos.
O sistema colonial português era pobre e em geral dependia de investimentos ou de cotações dos mercados estrangeiros, tanto sobre a actividade extractiva, como na agrícola, sendo que em geral os nossos produtos eram colocados abaixo do preço, com péssimos argumentos concorrenciais. Também os portugueses eram colonizados por entidades ausentes, na sua condição de colonos presentes.
Também já o referi com grande orgulho, os contactos muito posteriores que tive em Moçambique e na Guiné com as populações locais, quando o pessoal da minha geração me exibia também com orgulho as suas identificações civis e militares de portugueses, condição que ainda reivindicavam. Frantz Fanon estudou a alienação como um factor do colonialismo, e se entrou em desacordo com outros autores, pode dar respostas aceitáveis a esses processos de alienação sobre nativos como sobre os emigrantes das potências coloniais.
Espero que não tenhas memórias desses tempos violentos, mas a violência feudal, que registava muita desconsideração e violência entre portugueses urbanos e rústicos, que durou até meados do século passado em Portugal, talvez não fossem muito diferentes das relações em África, o que inclui humilhações frequentes.
Com um grande abraço
JD
OLá Cherno, boa noite,
Pois é verdade que venho muito irregularmente ao Blogue, e que li apenas algumas das publicações do Mário Beja Santos sobre as actividades do grupo BNU durante o período que antecedeu a guerra.
Sempre aqui afirmei, que a generalidade das minhas opiniões assentam nos períodos em que vivi em África. Acho que também referi que trabalhei com indígenas angolanos de quem guardo excelentes memórias enquanto homens e trabalhadores. Nesse tempo que lá vivi, posso garantir, que não tinha medo por estar com 200 homens numa mina isolada, nem eles receavam quaisquer perturbações que lhes tivesse causado. Tive um assalto ao escritório onde guardei dois salários, devidos a dois trabalhadores ausentes naquele dia. Entre nós havia boa relação, e o pessoal sabia que não podia abandonar as tarefas para iniciar outras no dia seguinte. Digamos que era exigente, mas também incentivava a que fizessem plantações de mandioca e milho, e não cortava nas rações servidas no refeitório. Igualmente tinha a preocupação de acompanhar trabalhadores ou familiares o hospital para assistência rápida. Outros colegas teriam relações ainda melhores.
O código do indígena foi uma «cópia» de documento idêntico ao que se aplicava nas colónias britânicas. No meu tempo já se aplicava o mesmo Código do Trabalho que vigorava na metrópole, e devia ser aplicado na Guiné. Aliás, isso fazia parte da política integracionista que impunha a igualdade de deveres e de direitos. Acredito que houvesse «Linos» resistentes às orientações oficiais. Convido-te fazeres consultas sobre a época, pois o General Spínola nâo simbolizava uma excepção territorial. Apesar do que refiro, sei muito bem das caracteristicas que citaste do trato de alguns colonos, mas se uns as citavam em paródia (o que nao seria elevado), eu constatei que alguns indígenas aprendiam e mereciam confiança no exercício de actividades técnicas, como manobradores de máquinas, electricistas, ou mecânicos.
O sistema colonial português era pobre e em geral dependia de investimentos ou de cotações dos mercados estrangeiros, tanto sobre a actividade extractiva, como na agrícola, sendo que em geral os nossos produtos eram colocados abaixo do preço, com péssimos argumentos concorrenciais. Também os portugueses eram colonizados por entidades ausentes, na sua condição de colonos presentes.
Também já o referi com grande orgulho, os contactos muito posteriores que tive em Moçambique e na Guiné com as populações locais, quando o pessoal da minha geração me exibia também com orgulho as suas identificações civis e militares de portugueses, condição que ainda reivindicavam. Frantz Fanon estudou a alienação como um factor do colonialismo, e se entrou em desacordo com outros autores, pode dar respostas aceitáveis a esses processos de alienação sobre nativos como sobre os emigrantes das potências coloniais.
Espero que não tenhas memórias desses tempos violentos, mas a violência feudal, que registava muita desconsideração e violência entre portugueses urbanos e rústicos, que durou até meados do século passado em Portugal, talvez não fosse muito diferente das relações em África, o que incluía humilhações frequentes.
Com um grande abraço
JD
Eu estava disposto a não deixar aqui qualquer comentário, pois o meu testemunho fala por si, mas vou deixar mais algumas achegas.
A evacuação de civis para Luanda por razões de saúde era relativamente comum em Maquela do Zombo. O hospital da vila tinha escassos meios de tratamento e diagnóstico e o único médico existente na vila, que era o médico militar, não tinha "mãos a medir". Muitas vezes teve ele que embarcar doentes num dos voos regulares da TAAG (empresa de aviação equivalente à TAP), para serem internados num dos hospitais de Luanda, a fim de serem submetidos a tratamentos e intervenções cirúrgicas.
Nada disto seria digno de comentário da minha parte, se Maquela do Zombo não se situasse junto à fronteira com a República do Zaire e se muitos dos doentes que demandavam o hospital local não fossem cidadãos zairenses, logo, estrangeiros, que tinham atravessado a fronteira a "salto". Alguns destes doentes chegavam a Maquela em condições verdadeiramente deploráveis, literalmente mais mortos do que vivos.
O que fazia o médico, então, no caso de algum zairense ter também necessidade de ser evacuado? Uma evacuação para Kinshasa, a capital da República do Zaire, a cerca de 200 km de distância, seria o ideal, mas Portugal estava de relações cortadas com o país de Mobutu e, por isso, uma tal evacuação era impossível. Ela só se podia fazer para Luanda, e era para Luanda que ela se fazia de facto.
Antes de embarcar um doente zairense num avião para Luanda, eram-lhe feitas diversas recomendações (em francês):
- Se alguém lhe perguntar a sua origem, diga que é angolano, natural de Maquela do Zombo. Pela sua rica saúde, não diga nunca a ninguém que é zairense! Se a polícia política descobrir que você não é angolano, pode fazê-lo passar por muito maus bocados. Diga sempre que é angolano, ouviu? Angolano! E já agora: que línguas é que você fala? Fala português?
- Não, não falo. - respondia o doente. - Só falo francês e lingala [a língua de Kinshasa e Brazzaville].
- Então não fala quicongo [a língua do antigo reino do Congo, falada em Maquela]? Nem um bocadinho?
- Um bocadinho, sim, falo só um bocadinho de quicongo também. Português é que não.
- Então, enquanto estiver lá em Luanda, fale quicongo sempre puder, já que não fala português. Quicongo é uma língua angolana e ninguém irá desconfiar de quem você é. Só quando não for capaz de dizer alguma coisa em quicongo, é que poderá dizê-la em lingala, mas a seguir volte a falar quicongo logo que puder. Francês é que não! Por amor de Deus, não fale francês, NUNCA! Você irá desgraçar a sua vida se disser alguma coisa em francês! Entendeu?
- Entendi, sim, senhor.
- Então, pronto. Desejo que tudo lhe corra bem, boa viagem e que Deus o acompanhe.
E o doente lá ia a caminho de Luanda, a bordo de um avião da TAAG (quase sempre um vetusto DC-3, do tempo da 2.ª Guerra Mundial), com um bilhete pago pelo batalhão e debitado no orçamento da Ação Psicossocial.
(continua)
(continuação)
O que acontecia a seguir ao "nosso" doente zairense, em Luanda? Havia sempre alguém no hospital (por exemplo, um trabalhador auxiliar que falasse quicongo), que descobria que o doente não era angolano, mas sim zairense. Em vez de denunciá-lo, prestava-lhe apoio e, quando ele tivesse alta, encaminhava-o para o musseque (bairro africano) Cazenga, onde existiam dois (sub-)bairros, que tinham o nome de Congo Grande e Congo Pequeno e cujos moradores eram falantes de quicongo. O "nosso" zairense era acolhido num destes bairros, onde alguém lhe providenciava alojamento e comida (numa manifestação da celebrada hospitalidade africana), e onde ele podia fazer alguns biscates que lhe permitissem reunir o dinheiro necessário para a viagem de volta para o Zaire. Esta viagem era feita de autocarro (chamado machimbombo em Angola), por ser mais barata, e demorava dois dias, porque o machimbombo tinha que dar uma grande volta, de centenas de quilómetros a mais, para contornar a zona de guerra.
Algumas semanas depois de ter sido embarcado num avião para Luanda, mais morto do que vivo, o "nosso" zairense desembarcava do machimbombo em Maquela, curado, sorridente e até sabendo falar umas quantas palavras em português. Metia pernas ao caminho, atravessava a fronteira a corta-mato para o lado de lá e regressava à sua terra.
Quero ainda fazer uma pequena correção. A Companhia de Caçadores 3536 não esteve aquartelada em Maquela do Zombo, mas sim num quartel do mato relativamente novo chamado Fazenda Costa, a cerca de 30 km da vila. Dependentes desta companhia havia também dois destacamentos, Quimbata (mesmo junto à fronteira com o Zaire) e Mavoio (onde havia uma mina de cobre, abandonada no início da guerra em 1961). Só a CCS estava aquartelada na vila, juntamente com o comando do batalhão, aliás num invejável quartel de "pedra e cal".
Um abraço
Fernando de Sousa Ribeiro
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