segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Guiné 671/74 - P21381: Notas de leitura (1308): “Henda Xala”, de Abílio Teixeira Mendes; Círculo de Leitores, 1992 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Agosto de 2017:

Queridos amigos,

Creio que o primeiro médico a escrever literatura de guerra foi António Lobo Antunes, com o seu inultrapassável "Os Cus de Cudas", no início dos anos 1980. E se não erro foi Abílio Teixeira Mendes o segundo estreante, com este primoroso romance, hoje injustamente esquecido. Na análise que Rui de Azevedo Teixeira fez do seu livro ressaltou a figura do anti-herói, aquele alferes médico, Doc, não dá o peito às balas, não descreve mil e um calvários na vida de ermitão em destacamentos longínquos, não pede qualquer glorificação. Pelo contrário, sai de Lisboa com muitas poucas amarras, e di-lo corajosamente, regressa quase um apátrida, mas inebriado com os esplendores da terra angolana. 

No entrementes, o leitor vai ter acesso a todas as farras e bródios da vida noturna angolana, a todos os bons comes, o autor não perdeu tempo a limpar espingardas, usou até não mais poder, e di-lo sem baixar os olhos com falsa pudicícia. 

Um abraço do
Mário



Henda Xala (fica a saudade) por Abílio Teixeira Mendes

Beja Santos

Abílio Teixeira Mendes
É matéria consabida, sobre a mesma o juízo é consensual, não houve dois teatros de guerra em África com caraterísticas vincadamente semelhantes, daí a prudência em não universalizar as temáticas, os enredos, as próprias encenações da guerra. Dito de outro modo, há sempre distinções profundas nas literaturas de guerra, na Guiné, Angola e Moçambique. 

Contudo, para além de não ser viável comparar o incomparável, uma infinitude de situações aproxima todos os combatentes. Sem querer ser exaustivo: as saudades, o choque da aculturação, a expetativa da chegada do correio, a pedra de gelo que dispara na garganta quando explode o fornilho ou a emboscada, a tensão noturna, a permanente queixa com a alimentação, as febres, o paludismo, o senhor medo.

Não é meu propósito ensaiar um processo de literatura comparada, a Guiné é a questão fulcral da minha investigação. Mas não deixo o crédito por mãos alheias a leitura de obras que se revelam importantes pela narrativa, pela inovação da trama, pelas mexidas e remexidas na construção literária, pela marcada singularidade do autor face aos seus destinatários. 

Tenho para mim que “Henda Xala” de Abílio Teixeira Mendes, Círculo de Leitores, 1992, é uma obra imerecidamente esquecida, se bem que investigadores como Rui de Azevedo Teixeira tenham exaltado o sopro de frescura deste romance de Teixeira Mendes.

Abílio Teixeira Mendes morreu precocemente. Licenciou-se em Medicina e ainda estudante deu prova de militância nas organizações académicas e foi ativista das greves ocorridas em 1962. Entre 1967 e 1970 cumpriu o serviço militar como alferes médico, em território angolano. Após a desmobilização, ingressou no Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria. Além deste seu romance publicou em 1987 um volume de contos: Coisas de África. Arquive-se.

Finda a leitura, fica-nos a convicção que esse alferes médico amou desmedidamente Angola. Na organização da sua narrativa, escolhe como nascente a passagem pela Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde fez aprendizagem militar. Logo, para que o leitor não escape à evidência, marca distâncias sobre a natureza da corporação: 

“O seu ídolo era um major pequeno e magrinho, um rato Mickey que aparecia nos momentos mais desconchavados, olhando os cadetes com manifesto desprezo, e abandonava a cena sem responder às saudações. No seu capote azul, nos olhitos vivos, no rosto moreno, nos lábios pinçados num esgar de amargura, pairava a maldição de um frade-guerreiro, sem uma gota de humanidade. Mesmo o temido comandante de esquadrão se vergava perante ele. Era a consubstanciação daquele terrível militar das bandas desenhadas, sem saudades, sem compaixão, sem amor, sem mulher nem amante, sem legítimos nem bastardos, sem anda para além daquele desentranhado amor à Cavalaria”

E dá conta do seu estado de alma e de quem com ele ali convive: 

“Veterinários e farmacêuticos a beirar os 40 anos, médicos de aldeia e chalengers a professores catedráticos, fardas a faltar aqui e a sobrar além, perfilavam-se, angustiados, enquanto o capitão percorria as fileiras murmurando ‘botas’, ‘barba’, ‘cabelo’ e o cabo miliciano, em seguida, soprava ao pescoço ‘número’. De humilhação em humilhação, a resistência dos nossos cadetes ia quebrando”

Teixeira Mendes lembra muita gente daquele seu curso, discorre da atmosfera do quartel até à sua casa, à sua família, ao círculo de amigos, à Pátria.

Embarca, não perde tempo com muitas observações, já está em Luanda, ao princípio é tudo novidade e paródia, descobrem-se mulheres, cabarés, bons repastos, e vai-nos crescendo a intuição de que naquele caldeirão luandense há muita gente ligada à guerrilha. 

Para quem dúvida deste amor desalmado a Angola, tome-se o discurso que se vai tornando cada vez mais luso-angolano, desordenadamente, nem o glossário constituído pelo autor é suficiente para acabarmos uma qualquer página suficientemente esclarecidos, porque há xingos (ralhos), calcinhas (forma depreciativa de designar os assimilados), biaque ou cangundo (formas insultuosas de designar o branco), monandengue (criança), mangonha (preguiça), malanginhos (designação semi-irónica para os habitantes de Malange), mutopas (espécie de cabaças por onde se fuma), tonga (plantação de café), barona (garota de costumes livres mas não propriamente prostituta, essa é uma quitata). 

Dá-nos quadros muito impressivos da vida airada em Luanda, dos vínculos fortes e fracos da vida social, o leitor submerge na versatilidade de todos aqueles usos e costumes. Ficamos a saber que os mufete é peixe assado nas brasas e que o melhor são os mufete de cacusso, um peixe com mais espinhas que o sável, mufete que deve se comer com a polpa do peixe a esmagar-se num jindungo amassado com sal, a moda de Dalatando, ou azeitando-se com dendém, sente-se a heresia de chamar peixe grelhado a essa iguaria de deuses.

Há aqui qualquer coisa de Jorge Amado nos arrebatamentos amorosos, a Lu deixa-o pelo beicinho. Mas a vida no batalhão também está carregada de peripécias e Teixeira Mendes não perde pitada de trazer o humor à conversa militar:

“- Cada um tem o inimigo que merece – suspirou o Marcelino.
- Se o camarada citasse menos Lenine e cuidasse melhor da sua companhia, talvez a guerra tivesse já acabado – comentou o capitão de operações.
- Quando o camarada quiser saber como eu dirijo a minha companhia, venha para fora do Grafanil. Há de ir ao meu lado, mas, se fizer obséquio, traga um camuflado velho porque com esse que vai levar amanhã, tão vivinho, sem uma chapada de lama, dá um rico alvo e eu não me responsabilizo”.


É um alferes médico que escreve na terceira pessoa do singular, é o Doc, e nada mais, despretensioso, anti-herói. Já estamos na guerra, há colunas, minas e armadilhas, gente que merece nomes depreciativos como o Mirandinha Espalha-Merda, os nomes dos quartéis mal são enunciados, a significação da guerra mal passa pelos dizeres da carta geográfica, o mais importante é não fazer esquecer que a guerrilha, mesmo fragilizada, está ali ao pé da porta, que há aspetos divertidos nas relações humanas que se entabulam, como aquela condessa que vive lá no fundo da mata. 

Inevitavelmente, há as perdas, dentro da contabilidade dos imprevistos, assim vai girando Doc pela sua tão atribulada comissão, regressa sorumbático, em desnorte, vacilante, não sabe a que terra pertence, a família a que regressa pouco lhe diz, foi à guerra, divertiu-se à grande, fez hospital na cidade e em campanha, conheceu o horror. Regressa apátrida e cheio de saudades. É preciso ler esta obra primorosa do princípio ao fim para perceber o seu título: “Henda Xala”.

Bem merecia ser reeditado, este primoroso romance.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de setembro de 2020 > Guiné 671/74 - P21359: Notas de leitura (1307): "Admirável Diamante Bruto e outros contos", por Waldir Araújo; Livro do Dia Editores, 2008 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O prof Mário Humberto Faria,meu amigo, colega da ENSP / NOVA, e o primeiro orientador de doutoramento, falava-me do seu amigo do peito e grande escritor Abílio Mendes Teixeira e deste romance que nunca li. Chamava-lhe o "pena de ouro", ao Abílio...Vi um exemplar autografado, com dedicatória ao Mário Humberto Faria.

Obrigado pela recensão. Vou tomar boa nota desta tua sugestão de leitura, mais uma entre mil.

Mário Humberto Faria (Horta, 1938 - Lisboa, 2013) foi alf mil médico, esteve em Moçambique, na CCac 1798/BCac 1935 (1967/69).

https://ultramar.forumeiros.com/t1021-faleceu-o-veterano-mario-humberto-faria-alferes-mil-medico-da-ccac1798-bcac1935-19abr2013

Falávamos pouco ou nada da guerra colonial. Convivi com ele desde meados dos anos 80, quando entrou para a Escola.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho saudades deste amigo, Mário Humberto Faria (1938-20123):

(...) Médico e Professor Catedrático do Grupo de Disciplinas de Saúde Ocupacional da ENSP/UNL, nasceu na cidade da Horta, Açores, em 14 de Setembro de 1938.

Terminou o seu curso de Medicina, em Lisboa, no ano lectivo de 1964/65. Diplomou-se com o Curso de Medicina do Trabalho da ENSP em 1970/71. Foi então convidado pelo Prof. Artur Costa Andrade para assistente eventual da Cadeira de Higiene e Medicina do Trabalho. Exerceu medicina do trabalho na empresa Central de Cervejas.

Foi bolseiro da OMS, em 1980/81, tendo estagiado no Laboratório de Fisiologia do Trababalho do CNRS - Centre National de la Recherce Scientifique, em Paris, sob a orientação do Prof. Hugues Monod.

Foi regente da cadeira de Saúde Ocupacional (e coordenador do respectivo grupo de disciplinas) entre 1983/84 e 2001, após a jubilação do Prof. Artur Ernesto Moniz. Foi ainda director do Curso de Medicina do Trabalho e, depois, do Curso de Especialização em Medicina do Trabalho, da ENSP/UNL, entre os anos lectivos de 1983/84 e 1998/99.

Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho em três triénios 1985/87; 1989/91; e 1991/93). Foi ainda presidente da Comissão Organizadora do 1º Fórum Nacional d e Medicina do Trabalho.

Fonte: Adapt. de Uva e Graça (2004); Uva (2003)

https://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos18.html

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário (Beja Santos):

Com a tua nota de leitura, desencadeaste, em mim, um mar de emoções... Lembrei-te do outro Mário (Humberto Faria), meu mestre, que me abriu perspetivas na área académica, levando-me a fazer da medicina do trabalho / saúde ocupacional / promoção da saúde no trabalho uma área científica de eleição (onde se viria a doutorar)...

É a primeira vez que evoca aqui o seu nome ? Pensava que sim, mas não, há uma outra referência já antiga, um comentário ao poste:

29 DE SETEMBRO DE 2013
Guiné 63/74 - P12102: Convívios (534): O 1º encontro dos bedandenses em Peniche: 28 de setembro de 2013..., sob a batuta do Belmiro da Silva Pereira (Parte I) (Luís Graça)



(...) Mais uma vez constatei que o Mundo é Pequeno (... e a nossa Tabanca é Grande)... Não é que, num grupo de trinta e tal pessoas, vou encontrar ou descobrir...

(i) um cor inf reformado que nasceu na minha terra (Lourinhã), o ex-cap Renato Vieira de Sousa, comandante da CCAÇ 6;

(ii) um ex-alf mil médico, o João António Carapau, que no Hospital da Estefãnia trabalhou com a pediatra dos meus filhos, na altura ainda interna, e mais tarde com responsabildiades políticas de alto nível na saúde [, a ex.ministra Ana Jorge, minha conterrânea e amiga de família];

(iii) o mesmo médico que era amigo e vizinho, na Portela, do meu amigo e colega da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa, prof Mário Faria, infelizmente desaparecido há pouco tempo ainda [, 19 de abril de 2013];

(iv) um fur mil, do Pel Caç Nat 53, o Victor Calado, que esteve 3 a 4 meses em Bambadinca na mesma altura que eu (entre julho e novembro de 1969) sem que a gente se lembre um do outro;

(ve) e por fim um Belmiro da Silva Pereira que eu conhecia como médico de família, e antigo diretor do centro de saúde local [, Peniche], que tinha amigos na Lourinhã (a quem dei explicações quando putos ...), que estudou em Leiria com amigos meus do tempo da escola primária, e que só há dias descobri que esteve na Guiné na mesma altura que eu (1969/71)...

Há encontros felizes!

29 de setembro de 2013 às 20:54