domingo, 20 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21376: Blogues da nossa blogosfera (140): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (51): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.




 GUERRA NA GUINÉ (PEQUENAS MEMÓRIAS)

ADÃO CRUZ

A Minha Chegada e os Primeiros Três Meses


O velho Uíge atracou em Bissau no dia 13 de Maio de 1966. Entrámos dentro do forno da cidade. Aí aguardei um mês até ao meu destacamento para o mato. Eu e o meu colega e amigo Gomes Pedro, hoje professor catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa e Director do Serviço de Pediatria do hospital de Santa Maria. Ele seguiu para Cuntima, no norte da Guiné, perto da fronteira do Senegal, e eu embarquei para Canquelifá, no leste, próximo da fronteira com a Guiné-Conackry.



Um velho Dakota levou-me até Bafatá. Dentro do avião, além de mim, ia o piloto, o co-piloto que tinha meia cara feita numa cicatriz, uma mulher negra sentada sobre o caixão do filho e um capitão que eu não conhecia de lado nenhum. Este capitão desembarcara momentos antes no aeroporto de Bissalanca, vindo do Porto, e seguia directamente para o mato. Confessou-me que transportava consigo alguma angústia, pois deixara para trás mulher e nove filhos. Três meses depois encontrámo-nos em Begene, no norte. Reconhecemo-nos e tornámo-nos muito amigos. Era o capitão Brito e Faro. De Bafatá segui numa Dornier (foto) até Canquelifá, fazendo uma curta escala no Gabu-Sara, pequena povoação chamada cidade de Nova Lamego. Permaneci em Canquelifá durante o terceiro trimestre de 1966. Muitas coisas boas e más aconteceram durante esse tempo. Relatá-las levava um livro. Na foto o “corpo clínico”. Eu, o meu furriel enfermeiro Alvim e maqueiros.



Como sempre gostei muito de crianças, deixo aqui apenas três momentos como referência das coisas boas dessa minha estadia, e que são três pequeninos poemas dentre os muitos que em mim floriram nesse tempo.


Fátima Demba, a minha companheira de todos os dias.


Este miúdo, cujo nome já se me escondeu no fundo da memória, percorria semanalmente cerca de vinte quilómetros pelo meio do mato, para me vir consultar, trazendo-me sempre uma velha lata com meio litro de leite. Tinha um fígado do tamanho da barriga.



Os dois gémeos filhos do Anso, dois enternecedores bebés que me preencheram alguns momentos de solidão. O Anso era chefe da milícia integrada na nossa companhia. Emprestava-me, muitas vezes, uma velha espingarda de carregar pela boca, para eu caçar uns patos na bolanha. Constou-me que fora fuzilado após a independência.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21356: Blogues da nossa blogosfera (139): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (50): Palavras e poesia

5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Caro Dr. Adão Cruz.
Belíssimas palavras, quase poesia não fora o miúdo com o fígado do tamanho da barriga.
Também estive em Canquelifá (1969-70) julgo que a casa, que se vê nessa foto do miúdo, lá estaria no meu tempo com um jogo/mesa de matraquilhos à frente.
Em Canquelifá, terra de panjadincas, assisti a umas inesquecíveis festas do final do Ramadão, pese embora ter havido um grande ataque à tabanca com a destruição da nossa messe (tinha um pequeno lago em formato do mapa da Guiné à frente). Até por lá apareceu o 'mauro gorco' com o seu monóculo e de camuflado impecável empolgando os presentes com um discurso para a tropa e civis: estes soldados estão aqui para vos ajudar a amar aquela bandeira, disse ele virado para a população civil e apontando para a Bandeira Portuguesa. Surrealismo

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Cherno Baldé disse...

Caro Adao Cruz,

A dilataçao do figado deve ser o "mal dos fulas", pois é um problema generalizado entre os fulas criadores de gado, muito provavelmente, deve ser um problema derivado do consumo exagerado do leite de vaca "dormido" com um grau elevado de acidez. Em 1985, quando chegamos ao nosso destino, cidade de Kichinev (Moldova), na ex-URRSS, fomos submetidos a exame médico e quando chegou a minha vez, o especialista perguntou-me através de um interprete porque é que tinha o figado dilatado, mas eu nao sabia explicar e ainda hoje nao sei, mas a explicaçao do Adao deu-me uma pista.Curiosamente, nunca me impediu de fazer nada nem me deu qualquer problema.

Caro Valdemar, os Pajadincas de Canquelifa sofreram uma tripla "colonizaçao" ao longo do tempo, pois conquistados pelos mandingas/soninqués nos séc. XIII/XIV foram obrigados a falar e adoptar a cultura mandinga, na segunda metade do séc. XIX os fulas substituiram os mandingas no poder e todos foram obrigados, novamente, a se reconverter e com a chegada dos portugueses, ficaram livres, mas completamente fulanizados ja sob a dominaçao portuguesa. Portanto, na altura em que la estiveste, ja eram mais fulas do que Pajadincas, tendo nmantido, todavia, os apelidos de origem: Sané, Djanté, Badji, Camara etc.

Um grande abraço,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Caro Cherno, então os pajadincas de Canquelifá, e não panjadincas, já estariam fulanizados no meu tempo, realmente eles entendiam-se muito bem com os nossos soldados fulas. Quer dizer que os Camará são descendentes de pajadincas? Eles eram de grande estatura física, o soldado mais velho do meu pelotão Mamadú Camará também era muito alto, mas nas festas do final do Ramadão o nosso 'lutador' Arfan Jau, também do meu pelotão, venceu todos os combates de luta com eles.

Abraço, saúde da boa e cuidado com o cornodovirus
Valdemar Queiroz Embaló

p.s. Cherno, a jovem Dra. Ansaro Baldé passou a ser a minha Médico de Família e tem me tratado muito bem e até me receitou um medicamento que não é incompatível com o consumo de bebidas alcoólicas. ah!ah!ah!

Anónimo disse...

Valdemar só hoje vi o teu comentário ao Graça de Abreu e a mim no post21353.Por isso só agora respondi.
Penso que não leste tudo tudo.Está lá a minha resposta para melhor entendimento, penso eu.
Abraço
Carlos Gaspar

Valdemar Silva disse...

Gaspar, já tinha lido a tua resposta.
Não te lembras-te do Lúcio Lara, o Fernandes desertou da tropa e o resto, logicamente, não podiam ser os ex-colonos a fazer a guerra contra os colonialistas que era assim o que a nossa tropa representava.
O resto, por cá, foram flics-flacs e outros cambalhotas que na altura já eram apontadas como ginástica manhosa.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz