sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21389: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (20): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Foi de facto um dia excecional, um patrulhamento a Mato de Cão deu origem a uma viagem insólita, dois Unimog saíram de Missirá, em Canturé prosseguiram até Mato de Cão, passeio inédito, há perto de dois anos que era trilho abandonado, para contentamento do PAIGC todo aquele enorme percurso que começa no Jugudul avança para Porto Gole, depois Enxalé, S. Belchior, lá em cima é Missirá e depois Gambiel (antes da guerra prosseguia-se até Geba e Bafatá, só que a ponte foi destruída), não tinha circulação rodoviária. Naquele dia abriu-se exceção, houve surpresa no Enxalé, deve-se ter pensado que ia começar uma operação de monta. Jamais me satisfez a circunscrição do Cuor, tínhamos com Enxalé o mesmo dispositivo do PAIGC em comum, nunca foi utilizada a cooperação, que houvera no passado, basta ouvir os depoimentos do João Crisóstomo, dois anos antes era a mesma unidade militar que se espraiava entre Porto Gole, Enxalé e Missirá. Não interessa agora proferir sentença, mas pesava-me muito um conceito burocrático de cada um na sua quinta, era uma quadrícula medonha que fazia perder a visão de conjunto e que, paradoxalmente, contribuía para que as forças do PAIGC pudessem andar a dizer que havia quase tudo em zonas libertadas.
São águas passadas, já não movem moinhos.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (20): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse, muitíssimo obrigado pela leitura atenta que tu fazes aos meus apontamentos e às imagens que te envio. Observas que há a fotografia em que estou de braço dado com Nhamô Soncó, a mulher de Quebá Soncó, meu colaborador como guia e picador, também na imagem. Fazes-me a pergunta sobre o que escrevi no reverso: no dia em que visitámos o Enxalé, para surpresa de uns, temor de muitos, e alegria de alguns. Como não incluí tal viagem no relato das peripécias dos primeiros meses, faz todo o sentido que te relate um dia que foi festivo, turístico, humanamente enriquecedor. Como tu sabes, o Cuor depende diretamente de Bambadinca. Quando fiz a observação que tenho o mesmo grupo de guerrilha como o Enxalé, e parecia-me que com ele devia cooperar, mais não fosse em patrulhamentos conjuntos, deram-me aquela resposta sacramental que não passa de um atavio burocrático: o Enxalé depende do Xime, não interfira. É absurdo, olho para o mapa, sei onde está a hostilidade, não tenho condições militares para fazer este tipo de operações sozinho, é a mesma hostilidade de que sofre o Enxalé, vivemos em compartimentos distintos. E uma noite, tendo recebido a notificação para estar em Mato de Cão pelas nove da manhã, passaria um comboio de navios de Bambadinca para Bissau, tomei a decisão de a seguir à passagem das embarcações rumar em direção ao Enxalé, ou seja, em vez de fazer 25 quilómetros ida e volta, fazer 50, tudo por estrada. Tinha nessa altura duas viaturas em bom estado, ambas com guincho, o que significa que se houvesse uma avaria, uma delas viria rebocada. Convoquei os furriéis, anunciei-lhes a viagem, pedi para ficarem, levaria um pelotão reforçado, rádio, bazuca e morteiro e dilagramas. Pedi para que todos fossem com abastecimento de água, rações adequadas para os muçulmanos. Conversei depois com os motoristas dizendo-lhes que as viaturas deviam partir atestadas e que levaríamos um suplemento de combustível nos jerricãs, não fizeram comentários.

Minha adorada Annette, o que tem graça nessa fotografia é que a Nhamô está convencida que vamos em direção a Bambadinca, aperaltou-se para ir visitar as irmãs, nem minimamente sabe que vamos a Mato de Cão. Quando se tirou a fotografia já um grupo de picadores partiu com a alva, irão picar até Canturé a partir da Ponte de Sansão, chamei Nhaga Macque e Serifo Candé e disse-lhes que quando chegassem à curva de Canturé virassem à direita, era fundamental picar com muito cuidado aquele troço da estrada, qualquer coisa como quilómetro e meio, findo do qual uma estrada muito alcantilada desce à esquerda para Mato de Cão ou sobe à direita para Cancumba. Eles picariam à esquerda, íamos a Mato de Cão com viaturas, estavam proibidos de referir o itinerário a quem quer que fosse dentro de Missirá e mesmo aos outros picadores, a ordem para virar à direita em Canturé só seria dada em cima do evento.

Saímos, um dia de sol deslumbrante, um calor suportável, quem vai nas viaturas não supõe que vamos a Mato de Cão, é a primeira vez que ali se chega transportado, não há ninguém que ignore a sina que é tudo a pé, por caminhos ínvios, há mesmo um momento da jornada, nos dias muito acalorados, em que se anda a penar, pisando terra empoeirada, mesmo que se leve um calçado cuidado e as calças bem presas com as fitas, toda aquela laterite feita pó de talco sobe até ao tronco, incomoda que se farta, mais a mais a paisagem parece lunar com aqueles cogumelos de baga-baga que parecem não ter fim, felizmente que no termo deste purgatório se atravessa Chicri com o seu frondoso palmar e continuando por caminhos ínvios, sempre a evitar emboscadas, chega-se ao Planalto de Mato de Cão. Hoje é diferente, vira-se à direita em Canturé, há risada geral, a Nhamô e os outros civis estavam convencidos que iam a Bambadinca, não escondem a deceção, ou até o momento em que perguntaram se podiam ir a pé para Finete, havia para ali umas Mauser, fui perentório, iríamos todos juntos.

Os picadores fizeram o seu bom trabalho, os Unimog iam a uma velocidade constante, e assim chegámos à estrada que segue em paralelo o Geba, uma calmaria sem igual, os militares gralhavam, iam felizes, menos canseira, todos sentados como se viajássemos em autocarros de carreira. Pouco tempo após a nossa chegada, e disposto o dispositivo em segurança, passou o comboio de embarcações, acenos de ambos os lados, e nisto digo para o condutor da frente, Mário Dias Perdigão, conhecido por o Xabregas, agora levas-nos ao Enxalé, há uma coluna que vai a picar à frente. A tropa Fula e Mandinga rejubilava, há anos que não se fazia aquele itinerário, aliás, viam-se restos sinistros de pneus destroçados por minas, contavam-se histórias de mortos e feridos, a viagem prossegue, atravessa-se a bolanha de S. Belchior, é um dó de alma ver tanto terreno fértil ao abandono, o Geba quase beija a estrada, avisto um casario ainda de pé, casas esventradas, seguramente far-se-ia aqui comércio antes da guerra, a coluna de picadores vai bem à frente, quem vai confortavelmente sentado nem lhe passa pela cabeça que serão eles a picar no regresso, em três ou quatro pontos sensíveis, entenda-se, não iremos estar no Enxalé a não ser coisa de meia-hora para cumprimentos, quer-se regressar lesto, não dar condições a que venha por aí um bi-grupo armar uma cilada.

Eu quero que a minha amada saiba que é um dia encantador, é evidente que os condutores vão tensos, não me canso de conversar com o Xabregas, ele não me olha de frente, vai com as mãos pregadas ao volante e os olhos pespegados na estrada. E infletimos em dado momento para o Enxalé, se fôssemos em frente iríamos parar a Porto Gole, é uma estrada tão bela, lembra o itinerário entre Finete e Canturé, os poilões e os cajueiros foram sabiamente implantados, não sei quando, só sei que dão uma sombra aprazível, a coluna de picadores já chegou a Enxalé, a tropa e o povo recebem-nos na Porta de Armas. Cumprimento o camarada que se apresenta, está contente mas intrigado, será que vem por aí alguma operação, por que carga de água a gente do Cuor vem de visita ao Enxalé? Dou resposta descontraída, viemos só conhecer os camaradas, topo que toda a gente de Missirá já anda nos cumprimentos, já se chega ao cúmulo de haver gente acocorada frente às cabaças cheias de arroz e mafé, o camarada alferes é gentil, pergunta-me se pode mandar assar uns frangos, agradeço, digo que não há condições, comeremos uma bucha no regresso, a minha tropa branca resmunga, mais uns minutos não fariam mal a ninguém, mas a decisão está tomada, vamos todos beber um copo, entrego umas notas ao Teixeira para pagar uma rodada no bar, converso com o camarada alferes sobre coisas vagas e genéricas, ele leva-me a visitar o quartel e a tabanca, mostra-me mesmo a picada que leva até ao fundo, ao porto onde se abastecem, podendo mesmo viajar até ao Xime. É uma beleza fascinante, todo aquele caminho da picada, verde luxuriante até se afogar nas águas do Geba.

Olho para o relógio, já passa da uma da tarde, convoca-se quem anda em cumprimentos e até visitar familiares, os dois Unimog posicionam-se para o regresso, despeço-me do camarada alferes, agradecido pela hospitalidade, é um regresso em que já não vejo ninguém apreensivo, há imensa conversa sobre quem se encontrou, a própria Nhamô já viaja com menos tensão no rosto, e assim chegamos a S. Belchior, peço ao Xabregas para acelerar, é uma estrada boa, a primeira e única novidade de que por ali passámos e que não éramos desejados na região de Madina foi ouvirmos umas fortes morteiradas em nossa direção, era de presumir que o PAIGC local estava confundido com semelhante viagem, pois não é impossível ir até Madina de viatura.

Pois bem, minha adorada Annette, chegámos a Missirá sem qualquer aborrecimento, será passeio que não se repetirá, infelizmente, não deixei de informar mais tarde o comando de Bambadinca de tal itinerância, houve a advertência de que não se deve sair em circunstância alguma da quadrícula, até parece que você não tem muito que fazer, deixe o turismo para os outros. Foi tudo isto que se passou, o tal dia em que fomos de Missirá ao Enxalé e regressámos. Por mim, teria estreitado a cooperação com aquele destacamento, nem pensar, clamaram os meus superiores. Resignei-me, de facto eu tinha muito que fazer, os patrulhamentos à volta do Geba certificavam a existência de colunas de lá para cá e de cá para lá. Vai começar um período com tempestade de fogo. O terror paga-se com terror. Foi assim que aconteceu. Penso, mon amoureuse, que fica tudo explicado sobre a fotografia. E termino com uma boa notícia, já comprei o teu bilhete para passares comigo as férias de Natal aqui, estou entristecido por teres que regressar a 3 de janeiro, tu não podes imaginar a falta que me fazes, a solidão em que me deixas.

(continua)

Enxalé

Imagem de um documentário do realizador Sana Na N’Hada, dedicado aos Bijagós

O monumento dedicado ao V Centenário da Descoberta da Guiné, Porto Gole, imagem do nosso blogue

Festa Felupe, fotografia de Lúcia Bayan, com a devida vénia

Era neste ponto que vínhamos montar a segurança aos barcos, trata-se de Mato de Cão
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21369: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (19): A funda que arremessa para o fundo da memória

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O que é que é uma estação "liminigráfica", como vem referido naquela legenda da foto de Mato Cão?
Para que serve uma estação dessas?

Um Ab. e bom domingo
António J. P. Costa