sábado, 31 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21499: Os nossos seres, saberes e lazeres (419): Na RDA, em fevereiro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2020:

Queridos amigos, 

Foi na recolha de todos os materiais que guardei ao longo de décadas referentes à Bélgica, e no intuito de escrever o romance que não o foi, Rua do Eclipse, que encontrei dentro de uma capa que dizia Bruxelas um farto canhenho, abri e encontrei dezenas e dezenas de páginas de notas de uma visita efetuada à República Democrática Alemã em fevereiro de 1987.

Já conhecia Berlim, a Berlim dividida, que visitei em 1981, a RTP representava num festival um dos meus episódios televisivos de defesa do consumidor. Atravessei Checkpoint Charlie, fui obrigado a comprar vinte marcos da Alemanha Oriental, e no final do dia fui obrigado a converter esses vinte marcos num saco de maços de cigarros, deu jeito para prendas, entretanto visitei o fabuloso Museu de Pérgamo, a Galeria Nacional, a icónica torre de televisão em Alexanderplatz. Sempre sonhara visitar Dresden, Leipzig e Erfurt, a ocasião veio imprevistamente, num rigorosíssimo fevereiro percorri locais que me encantaram, e me deu facilmente para perceber que aquele regime de partido único estava a dar as últimas, mas estrebuchava com dinamismo, não escondi a boa impressão de ver os alemães da RDA sem barracas nem bairros miseráveis. 

E o passeio vai continuar.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (1)

Mário Beja Santos

Algures, em finais de outubro de 1986, ocorreu-me escrever para todas as embaixadas do denominado bloco socialista europeu pedindo-lhes informações sobre as políticas a favor dos consumidores em execução nos respetivos países. Recebi respostas de diferente teor, de um modo geral o diplomata que assinava a carta dava-me a saber que era missão do Estado proteger o consumidor nos preços dos géneros alimentícios e todos os bens de primeira necessidade, incluindo a habitação, os serviços de saúde e os educativos. E enunciavam-se os respetivos departamentos responsáveis pela supervisão destas legislações. Não havia associações de consumidores e os problemas ambientais era coisa inexistente, tratava-se de matéria a cargo de diferentes ministérios e das regiões. 

Dentro desta monotonia de respostas, destacava-se um farto documento vindo da Embaixada da República Democrática Alemã, onde se propunha uma conversa com um primeiro-secretário. Nada tinha a obstar, o que me interessava era perceber as diferenças entre as práticas associativas ocidentais e o modelo em curso na então CEE com as políticas do chamado socialismo real. 

Recebido com enorme afabilidade, em dado momento o primeiro-secretário anunciou-me que o Sr. Embaixador me queria conhecer, agradeci a honra e dirigimo-nos para o gabinete do diplomata. Mais afabilidade, notei que era um homem precocemente envelhecido, uma voz estranhamente modulada, ele viu nos meus olhos o que eu procurava esclarecer, e explicou-me que sofrera um tremendo AVC em Maputo, já como embaixador. 

Os minutos passaram, falámos de música e filosofia, do génio alemão em geral, de que sou indefetível admirador, e no termo da conversa o embaixador perguntou-me se eu aceitava o convite para visitar o desenvolvimento e o progresso na RDA, conhecer a política pacifista e ver com os meus olhos a importância dada à cultura. Aceitei o convite, acertou-se numa data, perguntou-me que cidades gostaria de visitar, falei-lhe de Berlim, que conhecera em 1981, Erfurt, Dresden, mas evidentemente estava recetivo a conhecer outras paragens.

E em fins de janeiro aterro em Berlin-Schönefeld, tinha intérprete e motorista à espera. Seguimos diretamente para Dresden, a temperatura muito abaixo do zero, neve por toda a parte, uma jovem intérprete encantadora, para conversar com Gerald era preciso que Petra traduzisse. Chegámos ao anoitecer, à boa maneira alemã Petra deu-me conhecimento do programa em Dresden. Na manhã seguinte, ao raiar da aurora, um tal Dr. Steiner apresentava-me Dresden e a Saxónia, a seguir um arquiteto, de nome Globisch, falaria sobre a reconstrução da cidade, que fora altamente devastada pelos bombardeamentos de fevereiro de 1945.

Pontualmente às oito da manhã, com um frio de rachar, fomos recebidos num escritório e tornou-se inequívoco, vendo estandartes e as fotografias dos altos dirigentes da RDA, que me seria dada informação histórica e política. Registei num caderno o que o Dr. Steiner entendia que eu devia conhecer. Que data de 1206 o primeiro documento que menciona Dresden colonizada pelo Suábios; no século XIV foi capital dos Vetinos; que no século XVIII, no período de Augusto, O Forte, que foi também rei da Polónia, se construíram o Zwinger e todas as joias barrocas merecem admiração mundial. 75% deste riquíssimo património foi destruído pelos bombardeamentos de fevereiro de 1945 em que morreram trinta mil pessoas.

E entram na conversa o arquiteto Globisch, que descreveu os programas de reconstrução iniciados em 1946, possuíam-se todas as plantas e fotografias da Dresden destruída, aproveitava-se a oportunidade para reconstruir aquele património único alterando as redes de tráfego, quer junto do rio Alba, quer no interior da cidade, quer melhorando a área pedonal. Projetava-se reconstruir o lado medieval do velho mercado, e que o convidado ilustre que vinha de Portugal soubesse que o 8.º congresso do Partido decidira em 1970 acelerar a construção de habitações de modo que na década de 1990 não houvesse uma família alemã na RDA que não tivesse um apartamento condigno. 

E choveram os números sobre as construções e reconstruções em Dresden, seguiu-se uma longa apresentação dos desafios postos aos projetistas, eu devia ir visitar o estado em que estava a Igreja das Mulheres e tomar nota de que a conceção urbanística estava absolutamente atenta às necessidades sociais, culturais e económicas do povo socialista. Despedimo-nos com largos sorrisos, recebi imagens e desejos de boa estadia.

A etapa seguinte foi o Museu da Higiene, confesso que gostei do que vi, o objeto fundamental desta entidade promotora de saúde e da cultura era a educação para a saúde em múltiplas vertentes, tais como o alcoolismo, o tabagismo, a planificação familiar e os estilos de vida saudáveis. E logo veio à baila os prodígios do atletismo alemão-oriental, os grandes nadadores; fizeram-se rasgadas referências às creches e jardins de infância, às campanhas na comunicação social, aos programas escolares dedicados ao nutricionismo. 

Esta promoção para a saúde, tal como me foi referida, contava com a cooperação de todas as regiões da República Democrática Alemã. Na altura, o Museu da Higiene preparava programas para cozinheiros nas cadeias hoteleiras e materiais para os estabelecimentos escolares. Havia já restaurantes onde era proibido fumar, a médica de Saúde Pública (fixei o nome de Helga) não deixou de referir que apesar de não haver publicidade, um terço da população fumava, e o mais preocupante era a alta percentagem de jovens e de mulheres. A estratégia antitabaco recusava o proibicionismo, centrava-se nos aspetos positivos das vantagens de não fumar. 

Passámos a visitar o museu, ouvia-se perfeitamente uma ranchada de crianças divertidas a ver figuras de seres humanos e animais em material plastificável, alguém explicava o corpo humano e o interior de uma vaca. O entusiasmo dos professores nestas visitas era tal que logo pediam que dali a dois meses voltassem e tivessem um novo programa. E foi-me dado conhecimento do trabalho de investigação e dos materiais divulgativos, fundamentalmente filmes de 35 mm, diapositivos e brochuras. Aquele material pedagógico que me tinha impressionado em material plastificável corria o mundo, era considerado altamente inovador.

Já passa das onze horas, o visitante não veio para se divertir, Gerald tem o carro à porta, vamos para os arredores de Dresden, para Radebeul, visitar a Planeta, uma empresa de vanguarda, aqui produzem-se máquinas de impressão a cores, maquinaria computorizada. Antes de partir, o visitante tem direito a um espesso café preto e a uma fatia de tarde de maçã. Vamos ao trabalho!

(continua)

Imagem de Dresden destruída após bombardeamentos maciços, fevereiro de 1945
Imagem do princípio da reconstrução da Igreja das Mulheres, em Dresden
Altar-mor da Igreja das Mulheres depois da reconstrução
Obra de um dos artistas iconográficos de Dresden, Bernardo Bellotto
Cartaz de 1911, já se anuncia a Arte Nova
Museu de Higiene da Alemanha
Os materiais pedagógicos mais populares do Museu da Higiene, percebe-se porquê

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21478: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, também estive no início dos anos 90 na RDA... Quando se ia a Berlim, em congressos, dava jeito ficar, na parte "oriental" de Berlim, da ex-RDA, os hoteis e restaurantes eram muito mais baratos...

Voltei lá vinte e tal anos depois, de férias, Berlim e arredores, achei Berlim uma cidade aberta, mas ainda com vestígios, mais ou menos traumáticos, do "muro do de Berlim" e dessa perversa divisão do mundo em dois blocos... que nos obriva a tomar partido: ou és por mim, ou és contra mim!...(acho que foi a pior época das nossas vidas, em que estivemos à beira da III Guerra Mundial!).

Mas eu tinha sempre presente, em Berlim, quando lá estive, uma em trabalho, outra me férias, de que a Alemanha, a grande Alemanga, a "capitalista" e a "comunista", fazia parte dos nossos pesadelos na Guiné: a G3, o Fiat G-91, o obus Krupp, a metralhadora Dreysen, a metralhadora MG-42, a pistola Walther 9 mm... eram tudo "alemão"... E do outro lado, do lado do PAIGC, que nos matava, havia a RDA, a República Democrática Alemão, que era, para mim, uma recauchutagem da Alemanha Nazi...

Por isso, quando falas no "Museu de Higiene" e na "Promoção da Saúde", à moda da RDA, eu sinto um calafrio pela espinha acima...

Para mim, que tenho um doutoramento em Saúde Pública, especialização em Promoção da Saúde no Trabalho, tudo isso me provoca uma alergia de todo o tamanho... E eu não tenho alergias físicas quando respondo àqueles intermináveis e chatos questionários hospitalares quando vamos à faca ou entramos na carva dos radiologistas...

Ainda ontem fui fazer uma medonha ressonância magnética, no IPO, 40 minutos metido num tubo claustrofóbico, com máscara na cara, e sendo martelado durante 40 minutos com sons que me remetiam dramaticamente para Guiné e as emboscadas que lá sofri: l vinha a maldita e irritante costureirinha, a temível Kalash, o medonho RPG, o brutal morteiro 82, o hediondo canhão sem recuso, e o resto da infernal metralha da tropa fandanga do Amílcar: a metralhadora ligeira Deghtyarev, a metralhadora pesada Guryanov... Em suma, um pesadelo que um gajo tem que aguentard e dentes cerrados e de olhos fechados, como se estivesse, de olhos vendados, e as mãos atadadas atrás das costas, frente a um pelotão de fuzilamento!...

Já fiz várias ressonâncias magnéticas, são sempre os mesmos sons e imagens que me vêmc cabeça!...

Regressei a Lourinhâ às 20h00, com um papel passado pelo IPO, autorizando-me a circular pela A8, caso a polícia me intercetasse, tendo em conta os condicionamentos de trânsito impostos pelo Governo para, em desespero de causa, conter esta maldita pandemia que vai marcar a nossa geração tal como a guerra da Guinéd e 1961/74 nos marcou...

Tudo isto para dizer o quê ?...Quando o Estado, totalitário ou liberal, decide "o que é bom" para mim, eu grito: "Fascismo sanitário ?!,,, Não, muito obrigado!"...

O termo pode ser "caricatural", mas o espantalho do "fascismo sanitário" não faz mal agitá-lo, sabendo nós que muitas das ideias que são por detrás da higiene social, da cultura física, da exaltação do corpo são em mente sã, do culto da beleza ariana e do eugenismo, da proclamação da supremacia da raça (, branca ou amarela, ou de qualquer outra cor...) tiveram no passado grandes cultores como Hitler e os seus rapazes do partido nazi, ou Mussolini e os seus fascistas...mas na URSS, da RDA, na China, em Cuba, e por aí fora...

antonio graça de abreu disse...

Em 1969, depois de quase um ano na Alemanha,trabalhando e estudando em Hamburgo, dos dezanove para os vinte tenros anos,nos meus tempos antes da Guiné, nos anos a. C.(antes da China), também meti os pézinhos ao caminho, por minha conta e risco, rumo à DDR, a Alemanha comunista, Berlim Oriental, Dresden, Magdeburgo. Uma decepção total no jovem idealista que ainda sonhava com a transformação do mundo em sociedades melhores e mais justas.
Valha-nos o Mário Beja Santos que nos premeia agora, num blogue da Guiné, depois da sua exaustão por Bruxelas ou por Ponte de Lima,nos premeia com as suas infindáveis crónicas das viagens, desta vez pagas pela República Democrática Alemão, que era, como acertadamente o Luís Graça define , "uma recauchutagem da Alemanha Nazi... "
Abraço,

António Graça de Abreu

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Nunca fui à RDA e também nunca fui a Dresden. Sobre o bombardeamento em FEV45 tem-se escrito muito. Nem os americanos que têm tentado demonstrar que nada tiveram a ver com "aquilo", se safam. Surge a corrente de dizer que a cidade não tinha interesse estratégico e, se calhar não tinha. Mas teria outros... Como sempre, net serve para nos confundir e cada um ficará com a sua opinião. Só falando com gente da nossa idade assentaríamos ideias.

Mas, Dresden é uma cidade cheia de História. Gomes Freire de Andrade andou por ali e lá se rendeu no final das guerras napoleónicas.
Tenho seguido a sua pista e contactei o arquivo da cidade à procura de elementos sobre a sua passagem. Se alguma vez obtiver algo de consistente entrarei nos nossos "Seres, saberes e lazeres" e direi. Para já apurei que tinha funções na polícia(?) local e que se rendeu quando se dirigia com uma força de franceses em direcção a Oeste.

Um Ab.
António J. P. Costa

António J. P. Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Valdemar Silva disse...

Ainda bem que Beja Santos nestes 'seres, lazeres e fazeres' não ter sido duma visita à China, com certeza daria uma infindável crónica e com a publicação agora num blogue da Guiné, estaríamos todos sujeitos a uma covidela da grossa. Uf, disto sim é que era de ter cagufa.
Contava-me a minha mãe, que um meu tio, canteiro de campas e cruzes no cemitério, emigrado em meados dos anos 50 para a Alemanha, teria ido para trabalhar em cantarias de igrejas, numa cidade que tinha sido bombardeada no tempo da guerra. Provavelmente teria trabalhado na reconstrução de Dresden, dava poucas notícias e nunca voltou.

Abracelos
Valdemar Queiroz