segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21481: Casos: a verdade sobre... (13): a "Montanha Cabral", como chama a população local, de maioria fula, à colina Dongol Dandum (cota 171), a sul de Madina do Boé


Foto nº 1 > Guiné > Região de Gabu > Setor de Boé > Colinas do Boé > s/d>  Detalhe de imagem reproduzida, com a devida vénia, da página do Facebook de Catarina Marcelino) > Marco com a inscrição "1958"... Local: colina Dongol Dandum (cota 1971), também  conhecida pela população local como "Montanha Cabral" 


Foto nº 2  >  Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete > Marco com a inscrição "1951"...


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete > Marco com a inscrição "MGHG" (sigla de Missão Geo-Hidrológica da Guiné", e não MCOG, como  regista a antropóloga Lúcia Bayan


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete >  Marco com a incrição "LN 2 0” e “R”.


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Chão Felupe > Estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete >  Marco, sem inscrições.

Fotos (e legendas) (2, 3, 4 e 5): © Lúcia Bayan (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Caros/as leitores/as:

Parece-nos ter "descoberto" o mistério do "marco", atribuído a Amílcar Cabral e à sua passagem pela colina, que hoje teria o seu nome, "Montanha Cabral" [, Foto nº 1]. A "tradição" ou a  "crença popular local" fpi aproveitada pela ONGD Afectos com Letras, para ali erigir, a pedido da população local, de maioria fula,  um pequeno memorial da luta pela independência,... 

Recorde-se o que diz a página do Facebook da Catarina  Marcelino, deputada à Assembleia da República Portuguesa  (*):

(...) "A Associação Afetos com Letras está a construir um pequeno espaço de memória na Montanha Cabral, junto ao marco ali colocado por Amílcar Cabral em 1958 e que mais tarde se torna o local de encontro com os seus homens e onde muita da estratégia militar era definida". (...)

Há tempos publicámos aqui um poste com fotos de marcos semelhantes ao da Foto nº 1,  para os quais a antropóloga Lúcia Bayan procurava uma explicação, agradecendo a eventual a ajuda.


2. Escreveu a antropóloga Lúcia Bayan [Vd. aqui o poste P20584 (**)]

(...) Que marcos são estes? [Fotos nºs 2, 3, 4 e 5]

Na ponta noroeste da Guiné Bissau, em pleno chão Felupe, existe uma estrada, com cerca de 14 km de extensão, que liga Cassolol ao porto de Budjedjete, onde a população, para as suas idas ao Senegal, em especial Kabrousse, apanha a canoa para atravessar o rio com o mesmo nome. 

Esta é uma estrada de terra, por vezes plana e lisa, outras vezes irregular e “com dois andares”, que atravessa floresta, campos agrícolas, bolanhas secas ou com água, de acordo com a época do ano, e também as tabancas Caroai, Basseor, Tenhate e Sucujaque.[Vd. carta de Varela.]

Entre as tabancas Sucujaque e Tenhate (...) , a estrada, com uma extensão de cerca de 2,5 Km, é muito bonita, ladeada de floresta, como se de um parque ou jardim se tratasse (...).

Nesta estrada existem dois marcos de pedra que não sei identificar. Serão marcos geodésicos? Delimitações da administração colonial? Militares? Propriedade de terrenos?

Um dos marcos, que nomeei Marco 1, está situado junto à estrada, a 12° 20’ 48,27’’ N e 16° 38’ 32,01’’W (valores recolhidos por mim no local), e tem inscrições em três dos seus lados. Na face virada para a estrada está inscrito “M C O G” [,. Foto nº 3], na face traseira “1951” [, Foto nº 2 ], numa das faces laterais encontra-se inscrito “L N 2 0” e “R” e nada na outra (...)

O Marco 2, situado a 12° 20’ 48,56’’ N e 16° 38’ 11,09’’ W, está também muito perto da estrada, mas escondido no mato e, apesar de idêntico ao primeiro, não tem qualquer inscrição (...) , provavelmente devido ao desgaste do tempo. [Foto nº 4]. (...)

[Nota do editor LG: na foto nº 3. a sigla não é MCOG, mas sim MGHG leia-se: Missão Geo-Hidrográfica da Guiné:  Vd. Decreto-lei n.º 33609 de 14 de Abril de 1944: em 1944, o Ministério das Colónias organiza e envia à Guiné uma missão geo-hidrográfica encarregada de proceder ao levantamento geodésico e cartográfico da colónia, e seguidamente ao seu levantamento hidrográfico.]

3. Só o nosso "mais velho" António Rosinha  respondeu,  na altura,  ao repto da antropóloga,  Lúcia Bayan, fazendo uso da sua grande sabedoria, experiência, africanismo e inteligência emocional... Afinal, os nossos "mais velhos" veem sempre muito mais longe, mesmo quando estão sentados na base do poilão, do que os "djubis", os putos, dependurados lá no cocuruto da árvore sagrada!...

O Rosinha, com o seu apurado "olhar clínico", não teve dúvidas: "não, minha senhora, esses marcos não podem ser marcos geodésicos"... Afinal, ele foi um experiente topógrafo em Angola e depois na Guiné-Bissau (,aqui ao serviço da famosa TECNIL).

Foi ele que nos deu uma "pista preciosa" que,  juntando à informação da antropóloga. nos levou à MGHG - Missão Geo-Hidrográfica da Guiné... ("E não MCOG, senhora doutora!... Veja com mais atenção as fostos dos marcos que tirou no chão felupe"...).

Escreveu o nosso querido amigo e camarada, o "cólon" António Rosinha:

(...) Um vértice (ou Marco) geodésico é um sinal que indica uma posição cartográfica exacta e que forma parte de uma rede de triângulos com outros vértices ..

Aqui na "Metrópole" os marcos geodésicos são normalmente troncos de cone e em Angola, eram troncos de pirâmide em geral.

Normalmente todos com alturas de mais de metro e meio em locais altos e se possível intervisíveis com outros vértices directamente, caso contrário usando torres metálicas centradas sobre esses marcos.

Também nas minhas andanças guineenses, junto de um canal, (que já não me consigo recordar onde) encontrei um marco de cimento igual aos das fotos.

Não é possível que esses marcos da foto e o tal que eu também encontrei há mais de 25 anos, pertencessem a uma rede geodésica principal.

Para mim, foram marcos coordenados por oficiais da marinha, em levantamentos geográficos parciais, para posterior ligação a uma futura rede geodésica.

Nem compreendo para que outra coisa serviria construir uns marcos com fundações tão frágeis.

Era muito caro e muito custoso fazer cartografia na Guiné, havia a MGA, Missão Geográfica de Angola, mas aí, terra muito rica, eram enormes marcos para toda a vida.

Guiné, cuitada!

23 de janeiro de 2020 às 18:38


4. Comentário do nosso editor LG:

O Patrício Ribeiro, lá da sua "ponta do Vouga", acaba de nos mandar um texto, documentado com  fotos, sobre as diversas viagens que já fez à região do Boé. Não se esqueçam que ele está há manga de luas a viver e a trabalhar na Pátria de Cabral.

Sobre a "Montanha Cabral", diz-nos que nunca ouviu falar desse lugar, ou dessa designação. Falou, de resto, com  com "dois  investigadores portugueses,  que tu conheces, o Geólogo, Paulo Aves,  e o Biólogo, Luís Catarino, que também fizeram trabalhos no Boé":  mas também eles não conhecem essa "Montanha Cabral",

 E depois acrecenta: "Parabéns à Joana Benzinho e sua equipa, que com muito sacrifício, andam a levar a língua Portuguesa a locais de difícil acesso. Depois da AMI nos anos 80  com a sua equipa médica, chega mais alguém a falar Português ao Boé, esta língua é pouco falada naquela zona."

Em resumo,  nenhum de nós, nem o Cherno Baldé, nunca tinha ouvido falar da tal mágica e sagrada "Montanha Cabral"... E se o Cherno Baldé não conhece, poucos guineenses conhecerão...

Mas também, e como escrevemos ao Cherno, é importante associar o território à memória das gentes... Também nós, portugueses, temos as nossas "lendas e narrativas", desde Ourique a Alcácer Quibir, passando por Aljubarrota e os Montes Hermínios... Afinal, um povo que as não tenha, as tais "lendas e narrativas", é um povo morto ou moribundo...

 A ONGD Afectos com Letras está no seu direito de ir ao encontro das necessidades expressas ou sentidas pela população local,  com esta iniciativa de erguer, nas colinas do Boé,  um pequeno memorial ao papel histórico do Amílcar Cabral como líder de um movimento nacionalista que levou o território à independência. 

Que a população local, de maioria fula, chame "Montanha Cabral" à colina Dongol Dandum, está no seu legítimo e pleníssimo direito. 

No tempo da guerra colonial, essa designação não existia. Sobre isso, acaba-nos de falar ao telefone o ten gen ref José Nico que teve protagonismo na "guerra de Madina do Boé", travada em meados de 1968 (***). 

Para ele, só pode tratar-se da colina Dongol Dandum, base de fogos do PAIGC nos ataques e flagelações contra o quartel de Madina do Boé. E onde se posicionavam também os "snippers", os temíveis franco-atiradores, diz o Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CCAÇ 1589, que ia lerpando,,,

Afinal, estamos aqui, numa boa, não para "fazer história", que é uma coisa chata e enfadonha, que deixamos aos senhores historiadores diplomados, mas tão simplesmente  para partilhar memórias... E, já agora, também para nos divertirmos e cuidar da nossa boa saúde mental... 

De facto, mal de nós, antigos combatentes, quando um dia viermos aqui reconhecer em público: "Eh!, malta, já não me lembro do que me esqueci!"... 

Quem nunca conheceu a "Montanha Cabral", não pode lembrar nem esquecer... Infelizmente foi palco de alguns sangrentos combates onde morreram ou ficaram feridos portugueses, guineenses, cabo-verdianos e cubanos (***)... Esta é que foi a verdade, nua e crua, a de uma guerra que nunca deveria ter acontecido  (****)

 Mantenhas. Cuidemo.nos!

PS1 - Nunca é de mais reiterar, publicamente, a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartas do chão felupe / região do Cacheun(Varela, Susana, São Domingos, etc.) da Guiné resultam do levantamento efectuado em 1953 pela Missão Geo-Hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do Mandovi, daí a razão de ser dos marcos assinalados pela Lúcia Bayan. O mesmo se passa com as cartas de Madina do Boé (1958), Béli (1959), Jabiá (1959)...

PS2 - Em 1958 Amílcar Cabarl já não estava na Guiné. Em 1953, foi contratado como engenheiro agrónomo pela Repartição Prvincial dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa e, nessa qualidade, foi o rsponsável pelo planeamento e execução do Recenseamento Agrícola da Guiné. Teve então ocasião, em 1953, de percorrer quase toda a Guiné, incluindo a região do Boé. Em 1956/60 foi colaborador eztraordinário da Junta de Investigações do Ultramar, bem como da Direção Geral dos Serviços Agricolas (1958/60), ambas com sede em Lisboa. 


Excerto do "curriculum vitae" profissional do engº Amílcar Cabral, redigido em francês, s/d.
 

Citação:
(s.d.), "Curriculum Vitae - Amílcar Lopes Cabral", Fundação Mário Soares / Arquivo Mário Pinto de Andrade, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84145 (2020-10-26)


(***) Vd. poste de 30 de abril de  2018 > Guiné 61/74 - P18585: FAP (103): Pedaços das nossas vidas (3): Madina do Boé, "O Algarve na Guiné", por TGeneral PilAv José Nico (José Nico / Mário Santos)

(****)  Último poste da série > 1 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21406: Casos: a verdade sobre... (12): O mistério das ruínas de Ponta Varela e Mato Cão... Afinal, tratava-se de estações liminigráficas instaladas pela Brigada dos Estudos Hidráulicos da Guiné (1956-1965)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Talvez o nosso amigo Cherno Baldé tenha uma explicação para esta "apropriação" do marco com a inscrição "1958", na colina Dongol Dandum (cota 171, vd. carta de Madina do Boé, 1958, escala 1/50 mil)...

O setor do Boé deve ter hoje mais de 12 mil habitantes, de maioria fula...No tempo da guerra colonial, havia muitas poucas tabancas. Hoje parece que são 85, e a pressão humana sobre o Parque Nacional do Boé é muito grande... Dizem que parte desta população veio da Guiné-Conacri, de resto não fala português. A apropriação do marco e a criação da lenda que teria sido colocado ali por Amílcar Cabarl, não deixam de ser um tema de estudo interessante para os antropólogos...

Raros serão já os habitantes do setor do Boé do tempo da luta pela independência. Já se pssaram mais de 60 anos. Em 1958 Amílcar Cabral estava bem longe do Boé...Voltará lá mais tarde, ao que parece e terá acompanhado, com apreensão, a "batalha de Madina do Boé"que se travou, em meados de 1968, ao tempo da CCAÇ 1790, do cap inf Cap Inf José Ponces de Carvalho Aparício, hoje coronel reformado, e a quem já em tempos convidei para integrar o blogue. Enfim, uma "batalha", que é preciso recordar, um dia destes...

Antº Rosinha disse...

Quem teve oportunidade de localizar e imortalizar o lugar mítico da proclamação da independência no dia 24 de Setembro foram aqueles que participaram na cerimónia, especialmente os que aparecem nas fotografias, caso aquele que foi tantos anos Presidente da Guiné, Nino Vieira.

Não quis? Não se lembrou enquanto viveu? O lugar era inacessível a viaturas?

É quase inexplicável esta "omissão" da parte do homem que aparece nas fotos a fazer um discurso atribuido à cerimónia da independência do dia 24 de Setembro.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Começo pelo texto do Luís: "Dizem que parte desta população veio da Guiné-Konacry, de resto não fala português". Era de calcular! Deverão falar crioulo (língua comum), francês (idioma da sua terra de origem) ou a variante de árabe que os fulas falam. Português não, o que é perfeitamente aceitável.
"A apropriação do marco e a criação da lenda que teria sido colocado ali por Amílcar Cabral", podem ser um tema de estudo interessante para os antropólogos. Só se foram os que inventam trabalho...
Mas não passam de uma patranha à qual a investigadora dá cobertura.
O rigor científico não pode aceitar estes devaneios. Estamos a tempo de salvaguardar a verdade e não alinharmos em "construções folclóricas".
Pode ser que migração de populações para aquela área seja uma medida positiva. Mas não creio que os fulas que para ali se dirigiram não tenham sido indirectamente canalizados pela impossibilidade de ser fixarem noutras regiões.
Creio que policial "O Caso do Marco 1958" da inspectora da ONG fica assim encerrado.

Um Ab.
António J. P. Costa