terça-feira, 29 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23828: Notas de leitura (1525): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte V: VPV: "O grande significado do livro, de Spínola, Portugal e o Futuro, era vir a público dizer que a guerra estava perdida"...


1. Vasco Pulido Valente não gostava dos militares, nem dos capitães de Abril, nem muito menos do general Spínola. (Quanto aos antigos combatentes, ignorava-os, pura e simplesmente.) 

Nas entrevistas que dá ao jornalista João Céu e Silva não trata bem nem uns nem outros. Referimo-nos ao livro "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), de que já fizemos cinco notas de leitura (com esta) (*)

Algumas das suas declarações, que ficam agora para a posteridade, mostram como ele tinha tendência, apesar da sua formação académica (e científica), para usar e  abusar do cliché, do estereótipo, do juízo algo sumário. Talvez defeito da sua prática jornalistíca, da "escola de O Independente" (onde fez tandem com Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso e outros)  , do gosto pela parangona,  o "título de caixa alta",  a frase bombástica, as letras garrafais...  Panfletário, afinal, coisa que não deve ser um historiador.

Veja-se o que ele diz sobre o Spínola (mais o político do que o militar, e muito menos o comandante-chefe e governador-geral da Guiné): "o homem era muito estúpido, mesmo bronco" (pág. 184). (Provavelmente, ainda há hoje portugueses que  pensam assim, num juizo a preto e branco, mesmo que publicamente não o manifestem; VPM tinha fama de dizer em voz alto aquilo que alguns ou até muitos pensavam em voz baixa, da nossa elite dirigente, política, de Spínola a Cavaco, de Otelo a Cunhal, mas também social, económica e cultural).

Não tenho ideia de, ao longo do livro, ele citar outros historiadores que estudaram ou analisaram o mesmo período (o fim do marcelismo e o 25 de Abril) ou as mesmas figuras (como o Spínola e o Costa Gomes, de que há já biografias "académicas" e livros de memórias)... 

No caso do Spínola, por exemplo, poderíamos citar o Carlos Alexandre Morais, que foi seu íntimo colaborador na Guiné ("António de Spínola. O Homem. Lisboa, Editorial Estampa, 2007) (**) ou o seu biógrafo, Luís Nuno Rodrigues ("Spínola: biografia". Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010) (***).

Em suma, VPM não parecia gostar do contraditório e tinha tendência para desvalorizar o trabalho de outros historiadores, seus colegas, de "outras escolas" (teóricas ou institucionais): afinal ele vinha de Oxford ...Para ele, os historiadores portugueses, mesmo os bons, eram "amadores" e a universidade portuguesa não lhes oferecia as necessárias condições para trabalhar a sério: a biografia de Salazar, por exemplo,  para ser um trabalho sério, teria que levar uns bons... quinze anos, uma vida!...

Mas VPM não dizia sempre mal dos militares: afinal, pagavam bem quando estes o convidavam, no pós-25 de Abril. para fazer conferências (por ex., no Instituto de Altos Estudos Militares), tinham sítios seletos onde não entravam "saias",  com bares bem  recheados e requintados...

2. Vejamos então o que VPV (em final de vida, ele devia ter consciência disso, do seu "prognóstico reservado"...)  disse ao João Céu e Silva sobre Spínola e o seu livro ("Portugal e o Futuro", lançado em fevereiro de 1974),  além do seu papel no "fim do regime" e no pós-25 de Abril..

(Confesso que também li o livro, na altura, sem entender grande coisa da "solução política" que o autor propunha para as colónias..., mas tive logo a sensação  que era, pelo menos, uma pedrada no charco do marcelismo; devo tê-lo, ao livro, algures guardado no sótão, já roído pelos ratos... Sim, como diz o VPV, toda a gente foi comprar e ler o livro, sem entender patavina do que o homem dizia e sobretudo do que iria acontecer a seguir...)

Spínola e O Spínola que eu conheci são dois descritores do nosso blogue: temos cerca de 450 referências, o que é obra... Apesar de ser (ou ter sido) uma figura controversa como militar e como político.

 

(i) Spínola, Portugal e o Futuro  (1974) 




P- O livro de Spínola, Portugal e o Futuro, foi a machada final no regime ?


R- Sim, porque se o vice-comandante das Forças Armadas em todos os territórios em que se está em conflito vem a público dizer que a guerra está perdida, então a guerra está mesmo perdia.

Foi isso que Spínola fez, esse é o grande significado do livro Portugal e o Futuro [lançado a 22/2/1974] e não o que lá estava escrito, que era uma quantidade de dislates que não convenciam (pág. 150) ninguém. 

O livro não tem qualquer importância e é um dislate, pois defendia uma comunidade de estados portugueses em África governada por um centralismo democrático!

(…) Fazia-se uma federação com todas as colónias e depois, para evitar que houvesse negros independentistas nas assembleias, governava-se aquilo com centralismo democrático. Isto são ideias de um partido estalinista, à PCP.

O verdadeiro significado do livro, no entanto, era o de que a guerra estava perdida e essa verdade simples era dita pelo vice-chefe do Estado-Maior – General das Forças Armadas – portanto, estava perdida” (pág. 181).(… )

Ficou marcada a posição de Spínola, que resultou depois na presidência da Junta de Salvação Nacional – foram buscar Spínola por causa do livro. (pág. 183).

 Spínola: imagem à direita,  retirada da capa do livro de Luís Nuno Rodrigues, "Spínola: biografia",(Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010), com a devida vénia...



(ii) E depois,  o  Mário Soares ainda lhe dará uma comenda...


(…) A PIDE sabia disto tudo [a preparação do 25 de Abril] e, segundo Otelo, não investigou nada, não os seguiu, não atrapalhou a conspiração, porque, se não tinham medo dos civis, já dos militares tinham e muito, e também não sabiam como é que estes iriam reagir. Sabiam de tudo mas não tocaram em nada (pág. 183).

(…) As tropas milicianas mercenárias eram uns tipos que estavam aparafusados a nada senão a um regime que lhes pagava para combater, não eram as Forças Armadas de Portugal. Estas tinham uma legitimidade e um sentido que os milicianos nunca poderiam ter.

O Spínola é a peça principal para o fim do regime mas não tem o poder. Esse está nas mãos dos capitães desde o princípio.

(…) Os golpes do Spínola [depois do 25 de Abril] têm aquele ar de touradas: “Eu sou muito valente, eu é que pego o touro”. Foi assim no 28 de Setembro e foi assim no 11 de Março, uma exibição do marialvismo português. Eu li um relato de um capitão que lá esteve e que conta esses episódios de Spínola: “Vou eu,vou eu” (pag. 184)

(…) Aquilo era uma coisa totalmente improvisada, o homem era muito estúpido, mesmo bronco, e não havia qualquer organização… (pág. 184)

(…) Os capitães [conseguem toureá-lo], coletivamente, são mais espertos do que ele. O homem não via realmente o que estava a fazer. Pode-se dizer que ele era um exemplar que vinha de um regime caduco e que não estava no seu tempo” (pág. 185)

(…) [Soares ainda lhe deu uma comenda] , mas foi por outras razões. Quando Soares quis elimibar o poder militar que havia em Portugal, ou seja, o Conselho da Revolução, pediu ajuda aa Spínola para ver se provocava os capitães, e pô-lo nos festejos de abril. Foi a provocação máxima que se podia fazer aos capitães. (pág. 183)

João Céu e Silva recorda um escrito de VPV de 1993 (sem citar a referência bibliográfica):

(…) Quando entrei no Instituto Superior de Economia para dar umas vaguíssimas aulas no outono de 1973, compreendi, aliás sem dar grande importância à coisa, que o homem [Marcello Caetano,] estava perdido.

O retrato de Amílcar Cabral ornamentava a cantina, os “exames” consistiam em trabalhos coletivos, os professores eram marxistas-leninistas e a classe média explorava, com aplicação, os prazeres do sexo

O mundo autoritário e austero do Estado Novo morrera e com ele a guerra colonial. (pág. 185).

 [Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos e itálicos, para efeitos de publicação deste poste: LG]

___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 28 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23825: Notas de leitura (1524): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Sobre o VPV, vd a última notas de leitura de LG:


(***) Vd. poste de  6 de maio de  2010 > Guiné 63/74 - P6329: Notas de leitura (101): Spínola, a biografia de Luís Nuno Rodrigues (2) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

Mais uma a juntar aquela do 'estava tudo combinado e nem traziam balas a sério(*)', com esta da
"A PIDE sabia disto tudo [a preparação do 25 de Abril] e, segundo Otelo, não investigou nada, não os seguiu, não atrapalhou a conspiração, porque, se não tinham medo dos civis, já dos militares tinham e muito, e também não sabiam como é que estes iriam reagir. Sabiam de tudo mas não tocaram em nada"
Desculpas dos finórios e outros praí virados, que ainda hoje, não conseguem explicar o baile que levaram com uma revolução para acabar com 'ao estado a que chegamos' feita por um levantamento militar sem um único morto.

Saúdinha do boa
Valdemar Queiroz

(*) E aquelas balas disparadas contra o Quartel do Carmo?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Spínola pediu autorização superior para publicar o seu livro... O Marcelo lavou as mãos e passou a bola ao Ministro da Defesa...que terá dito "Não"... Claro, o Tomás também era contra...

Espantoso: era o princípio de uma rebelião, ninguém (do regime) teve t...para mandar prender o Spínola... Claro que funcionou a censura à imprensa, mas o livro vendeu-se legalmente e foi um "best-seller", tanto quanto me recordo. (A editora era a Arcádia.)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Spínola em 1973/74 é uma das grandes "vedetas" da imprensa (escrita), "Expresso", "Diário de Lisboa", etc. E os coronéis da censura fazem-lhe uma barragem sistemática... O regime entrou em pânico, em histeria, que é o sinal do princípio do fim das ditaduras... Vasco Pulido Valente não valorizou isto e maltrata Spínola (pelo seu comportamento futuro, no 28 de Setembro de 1974, 11 de Março de 1975, MDLP, etc.).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pena é que a pasta do "Expresso" com os cortes da censura em fevereiro de 1974 tenha desaparecido... As cópias do "Diário de Lisboa", correspondente às edições de janeiro e fevereiro de 1974, na coleção Ruella Ramos, também desapareceram...

O que é um galo do caraças!... Não se pode saber, com detalhe, o que os pesporrentes e prepotentes coronéis da censura do Marcello Caetano deixaram ou não deixaram publicar na altura do lançamento do livro "Portugal e o Futuro"... Para mais, deviam ter um grande pó ao Spínola!...Ter um lápis azul naquele tempo era como ter uma G3... Mas morreream todos na cama, os censores, tal como outros energúmenos do regime...