sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23838: Antropologia (44): Armazenamento tradicional de produtos agrícolas: o "flu", o celeiro balanta (excertos de: Oliveira, Havik e Schiefer, 1996, com a devida vénia)


 Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiros para a bianda... O capelão, alferes graduado José Neves é o primeiro, de perfil, à direita... Encostado a um dos potes de barro (onde se guardava o arroz), está o alferes mil, comandante do destacamento, cujo nome ignoramos (deveria pertener à CCAÇ 2587 ou à CART 2411, dependendo da data em que a foto foi tirada, antes ou depois de 5/3/1970, altura em que a CCAÇ 2587 rendeu a CART 2411).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiro para a bianda... Em balanta, chama-se "flu"...


Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Tipos de celeiros balantas. Cortesia de Oliveira, Havik e Schiefer (1996). Com a devida vénia


1. Excertos de  Oliveira, Olavo Borges de; Havik, Philip J.;  e Schiefer, Ulrich (1996) - Armazenamento tradicional na Guiné-Bissau. Produtos, sementes e celeiros utilizados pelas etnias na Guiné-Bissau: Fascículo 1, Beafada; Fascículo 2, Mandinga; Fascículo 3, Nalú; Fascículo 4, Balante; Fascículo 5, Fula deQuebo; Bissau, Lisboa, Münster, IFS 506p. ISSN 0939284X, pp. 415/417. (Disponível em http://hdl.handle.net/10071/1525 )


"Ful", o celeiro balanta

Nome Nativo

Ful

Nome crioulo

Bemba

Formato

Cilíndrico

Serventia

Reservatário de cereais

Capacidade

Variável

Tempo de construção

Uma semana

Época de construção

Véspera das colheitas


O TIPO DE CELEIRO

O “ful” ou "bemba" é um celeiro de formato cilíndrico, assemelhandose a um pote, cujo tamanho pode variar, conforme as necessidades de armazenamento. Os de maior tamanho podem atingir até dois metros de altura.

Este tipo de celeiro pode ter funções distintas, entre elas, armazenamento de produtos de consumo familiar (arroz, fundo, milho-preto,milho-cavalo, milho bacil e feijão, etc.), conservação de sementes, destinadas ao ano agrícola seguinte e, finalmente, armazenamento de cereais, arroz em particular, para fins rituais.

Os "ful" destinados ao armazenamento exclusivo de produtos de consumo, são normalmente os de tamanho maior, sendo os outros dois tipos de tamanho relativamente inferior.

Quanto ão lugar de instalação do "ful" na morança ("pang"), este pode variar. Às vezes, são instalados dentro da casa, ou na varanda, e muitas vezes no quintal. Por uma questão de segurança, podem mesmo ser instalados dentro do quarto de dormir do dono da morança. Isto passa-se, em especial, com os celeiros destinados ão armazenamento de produtos de consumo familiar.

AS TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO

Para a construção deste tipo de celeiro utilizam-se materiais locais e técnicas de construção simples.

A matéria-prima básica para a construção do "ful" é a lama e palhas secas de cereais. São utilizadas, com mais frequência, as palhas de arroz e fundo. Estas palhas são misturadas com a lama e apodrecendo, fazem com que a lama se torne ainda mais resistente.

Só depois desta lama preparada, é que iniciam a construção do celeiro "ful" A sua construção é feita, normalmente, junto do lugar onde vai ser instalado. Primeiramente, é construída a base do celeiro, com uma camada de palhas de.arroz coberta com lama. 

Depois de construída a base, inicia-se o levantamento das paredes por fases. Constroem-se camadas que se deixam secar, antes de se acrescentar nova camada, de modo a evitar a queda da estrutura, durante o período em que são trabalhadas. 

Depois de completa a construção das paredes, deixam-nas secar bem. No mato, colhem as cascas de uma árvore, chamada na língua de origem “rutch”. Estas são piladas e misturadas com água.

Com a. massa quase líquida que daí se obtêm, são polidas as paredes externas do "ful", tornando-o mais resistentes, e protegendo-o contra a entrada de insectos. No fim deste processo, deixam o "ful" secar novamente

Para que a base do mesmo possa ter uma protecção sólida, nunca o fincam em contacto direto com o solo. No local onde vai ficar instalado o celeiro, colocam uma camada de pedras que cobrem com palhas de arroz ou fundo e sobre a qual colocam o "ful"


A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO


A iniciativa de construção do celeiro é da responsabilidade do dono da morança. A sua construção pode ser organizada individualmente, ou então de uma forma colectiva

Em geral, o chefe da morança procura a ajuda de familiares ou vizinhos. Embora seja uma actividade dos indivíduos de sexo masculino, a participação feminina não é excluída nesse processo. As mulheres podem dar o seu apoio, ajudando, por exemplo, a trazer água, lama e outrosmateriais.

O PROCESSO DE ARMAZENAMENTO

A entrada dos produtos nos celeiros "ful", efectua-se logo a seguir às colheitas.

Os cereais depois de preparados, são em seguida transportados pelas mulheres, directamente para a moranças, e armazenados dentro dos celeiros.

Para se evitarem gastos arbitrários dos produtos, é ao dono da morança quem cabe a responsabilidade de controlo da entrada e saída dos cereais nos celeiros. É o chefe da morança que mede a quantidade de produtos a ser entregue à sua esposa, para os gastos diários. 

Se tiver mais que uma esposa, o seu dever é entregar os produtos à sua primeira mulher e esta se encarregará da sua distribuição pelas outras. Normalmente, cada uma das mulheres tem, dentro da sua palhota, um celeiro de tamanho inferior, a que chamam "ftchelé" (pote), onde guarda os produtos destinados ao consumo exclusivo do seu fogão. 

Quando as várias esposas do chefe da morança se dão bem, podem ter um só "ftchelé"para toda a morança,mas isto acontece raras vezes.

AS PRINCIPAIS AMEAÇAS

Os factores que poderiam constituir perigo para os celeiros do tipo "ful"são: as águas da chuva, o fogo e os ratos

Dado que, as casas dos balantas são cobertas todos os anos, os efeitos nocivos da chuva são quase neutralizados.

OS RITOS TRADICIONAIS

Não é costume a realização de rituais específicos na altura da construção dos celeiros.

Os "ful"  destinados exclusivamente à conservação de produtos com fins rituais, são construídos aquando do nascimento de uma criança e esta atingir a idade de desmame (normalmente aos três anos de idade). Nessa altura, os pais são obrigados a instalar um "ful"  de pequenas dimensões dentro da casa, onde vão reservando uma quantidade determinada de arroz, destinado só para as cerimónias a realizar para a criança. Sempre que ela adoece, ou lhe acontecer qualquer coisa, que os pais não possam explicar, tiram deste "ful" um pouco de arroz. Com ele preparam comida, a que misturam óleo de palma e leite de vaca, e procedem a um ritual junto do "ful" da criança, onde pedem a sua salvação.

Existe. também,  um "ful" único para os rituais de toda a morança. Os produtos alí conservados são destinados às cerimónias, que têm a ver com a vida dos membros de toda a morança. Os cereais armazenados provêm de cada um dos agregados familiares, que fazem parte da morança. 

As cerimónias que fazem, na altura do início da época das chuvas e no inicio do ano agrícola, dizem respeito a todos os membros da morança e são organizadas pelo chefe máximo da morança. É na altura destas referidas cerimónias, que se pede ao Irã da morança bem-estar para todos os seus elementos, durante a época das chuvas, e boas colheitas.

(pp. 415/417)


[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos: LG]

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sabia que os povos da Guiné eram bons oleiros...mas imaginava que estes postes (para guardar cereais) fossem cozidos em fornos, fossem ao fogo... Afinal, a técnica é aind mais simples e ecológica: a da secagem,ao sol, da lama misturada com palhas...

Obrigado aos antropólogos que estudam estas coisas... É fascinante o que aprendemos com eles... LG

Valdemar Silva disse...

Na primeira impressão, convenci-me que estas talhas/celeiro eram obras de barristas e que seriam cozidas em fornos feitos de propósito. Calhando, lembrei-me das talhas do Alentejo, que já os romanos utilizavam para fazer/guardar vinho.
Afinal, estes "celeiros" são feitos de lama e palha e secos ao sol.
Muito interessante, e julgo que o formato é assim concebido para evitar que os ratos subam para comer os cereais.


Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, nas minhas andanças pela Guiné nunca vi fornos de cozer barro. ... Nem sei se há argilas para os oleiros.. Mas hoje faz-se carvão para os citadinos.


Cherno Baldé disse...

Caro Luís Graça,

A cozedura ou queima dos artefactos faz-se ao ar livre, com lenha seca a qual se mete fogo. Os Balantas são os grandes produtores dos potes que as populações em geral usam em suas casas para conservar a água de beber, sobretudo no Norte, Leste e Sul do pais. Quanto ao carvão, a técnica é quase igual, mas neste caso os troncos são cobertos com terra e folhas verdes para isolar e proceder a uma queima parcial dos troncos de madeira (pau de carvão).

Cherno Baldé

Anónimo disse...

As técnicas tradicionais de conservação de cereais dos diferentes grupos, também devem ser vistas do ponto de vista cultural e comportamental de cada grupo.

Enquanto alguns grupos (Fulas e mandingas) preferem conservar ao ar livre utilizando poleiros feitos em cima de estacas no meio das moranças, socorrendo-se do sol e do fumo que é feito no chão para a necessária conservação, outros grupos (animistas) preferem usar as "Mbembas" que permitem um melhor controlo do cereal (arroz), muitas vezes no interior da residência do chefe da família. Inclusive, os animais são mantidos dentro da morança, todo o tipo de gado e porcos o que é impensável numa comunidade muçulmana aversa ao cheiro e excrementos dos animais que são mantidos a uma boa distância.

Certamente, certos hábitos culturais, como o gosto pelo alheio, podem ter contribuído para a opção de uma e outra técnica de conservação patrimonial e manutenção dos bens bens materiais como os produtos agrícolas que, muitas vezes, constituem a única riqueza e segurança contra a fome das famílias rurais.

Cherno AB

Valdemar Silva disse...

Luís, os fornos que eu queria dizer 'feitos de propósito' não seriam verdadeiros fornos.
Queria dizer, como por cá também se faz, que é colocar as peças num buraco chão, cobrir com madeira e ramos secos ou carvão, fogo a arder até completa cozedura, como diz o Cherno Baldé.
Nas tabancas que estive mais integrado, em Paunca vivíamos na tabanca com a população e lembro-me de ver potes da água que pensava serem feitos de barro vermelho por oleiros.

Como tens passado da perna? Agora já não vais ao Catar...
Comigo, com a chegada da humidade e do frio fico muito aflito sem poder sair sequer para cortar o cabelo. Hás vezes penso, com 77 anos é quase tudo careca só eu é que ainda tenho de ir ao barbeiro cortar o cabelo.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz